terça-feira, 30 de janeiro de 2018

O promontório e a charneca

A luz de Inverno é um promontório de onde espreito o mundo. As casas vacilam no meu olhar e as pessoas, tão pequenas se vistas daqui, caminham oscilantes, com o pensamento ocupado em sabe-se lá que demandas. Protejo-me nestas escarpas luminosas, tudo o que vejo imagino-o como um oceano matinal, perdido no ir e vir da ondulação, a rumorejar bravio na pressa do trânsito. O melhor que a idade traz, penso, é poder confundir tudo, o mar com a cidade, as pessoas com cristas das ondas, o fluxo do trânsito com o ribombar das águas salgadas ao bater na escarpa. Quando a luz de Inverno se transformar em luz primaveril, o mundo começa a tornar-se plano. O promontório de onde espreito será então uma charneca polvilhada de pedras e desolação.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Bênçãos

Quando levantei as persianas, a manhã já ia alta, deparei com um sol melancólico, apesar do brilho que os seus dardos faziam cair sobre o casario. Pensei: é um sol matinal de domingo igual a tantos outros dos domingos de Inverno. Então, recolhi-me e deixei os raios solares dardejarem ao abandono. Quando me sentei à secretária, peguei em O Prelúdio, de William Wordsworth, comprado ontem, numa tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Leio o primeiro verso “Oh, uma bênção existe nesta doce brisa”. Então, lembrei-me do meu virar de costas ao sol dominical. Também eu deveria ver ali uma bênção, mas não vi. Depois, olhei a rua através dos vidros da janela. Os carros reluziam e percebi que o tempo do romantismo que permitia ver bênçãos nos elementos naturais acabara há muito. Um carro apitou e ao longe vibra uma sirene. O sol persiste preso à sua melancolia.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Chegar e partir

Chegou como se tivesse vindo de muito longe. Parou, rodopiou com calculada lentidão sobre os tacões, sorriu ao sentir o sol a iluminar-lhe o rosto e sentou-se. Não pretendo nada, respondeu quando o empregado lhe perguntou o que desejava. Nada, exclamou este atónito. Isto é uma esplanada. É uma esplanada, confirmou ela. E logo se levantou, o sol bateu-lhe no rosto, tornou a rodopiar com calculada lentidão sobre os tacões. Parou por um instante e partiu como se fosse para muito longe.