quarta-feira, 31 de julho de 2019

Bolas de Berlim

Num sítio que no Verão costumo frequentar havia umas bolas de Berlim que me habituei a comer sem que a consciência me acusasse de qualquer delito. Alguém mais maldoso sempre pode censurar-me de ter uma consciência frágil, mas havia, claro, atenuantes. Só comia bolas sem creme e estas, apesar de fritas, pareciam que quase não tinham passado pelo óleo. Não há nada como a nossa capacidade para fantasiar. Eram muito boas, em resumo. Constou-me que o estabelecimento fechou e ao cerrar portas levou com ele as bolas de Berlim. Tudo o que é perfeito neste mundo acaba, foi o que constatei ao ouvir a notícia e daí extraí a conclusão que o paraíso não pode ser na Terra. Acontecem muitas coisas péssimas neste mundo, eu sei, mas agora nem sei se hei-de voltar ao sítio. Gosto imenso de praia, desde que não haja muito sol, pessoas e areia. No entanto, ainda não compreendi o que iria fazer a uma praia se o sítio das bolas de Berlim se finou, levado pela voragem do tempo, deixando-me a rememorar a glória de antigas expedições para incrementar o colesterol. A saúde é uma dura penitência.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Lugares para medíocres

Estava a ler a apresentação de As Lojas de Canela, de Bruno Schulz, feita por Aníbal Fernandes, quando deparo com a resposta que terão dado ao escritor polaco perante a oferta que este fez dos seus préstimos literários à revista Novos Horizontes: “Não precisamos cá de Prousts”. O engenho da estupidez humana, apesar de tudo, nunca deixa de ser espantoso. Uma revista literária que não quer um Proust é como uma equipa de ciclismo que só aceite quem mal saiba andar de bicicleta. A analogia não é brilhante, eu sei. Que coisa essa de misturar as belas letras com um desporto popular. Foi, porém, o que me ocorreu. Se eu tivesse capacidade de fazer analogias soberbas seria um Proust. Com esta minha falta de talento, porém, talvez tivesse sido aceite na revista onde Schulz foi rejeitado. Não há lugar onde um medíocre não possa entrar.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Coisas de avô

Ao mexer no telemóvel deparei-me com uma fotografia minha com o meu neto ao colo. Eu olho para a câmara, um pouco formal; ele, para o lado, como se nos seus oito meses já soubesse demasiado do mundo e não estivesse para se submeter aos ditames do fotógrafo de ocasião. É a vantagem da inocência. Estar voltado para a frente ou para o lado é indiferente. O importante é que não o deixem cair e saibam que ele existe. Não sei se foi a visão da foto que desencadeou as saudades ou se foram estas que, sem eu dar por isso, me conduziram àquela. Ser avô é uma condição especial que, antes de se ser, é inimaginável. Mal se vêem, avô e neto estabelecem laços secretos de continuidade, que depois têm de ser cultivados com esmero e persistência, mas que são uma afirmação exuberante da vida. Aquela que começa a declinar sente-se redimida por aquela que acaba de chegar. Não se trata de uma espécie de justiça cósmica à maneira do célebre fragmento de Anaximandro, mas do estabelecimento de uma continuidade que rompe as densas paredes do futuro. Para o que me haveria de dar, por causa de uma fotografia? O melhor é fazer-me à vida. Enquanto os pássaros meus vizinhos continuam as suas cantatas nupciais, eu ponho o telemóvel no bolso, arrumo uns papéis e preparo-me para enfrentar o dia. Julho apresta-se para entregar a alma ao criador, não tarda receberá a extrema-unção e dará o último suspiro entregando-se nos braços descarnados e ressequidos de Agosto. Nesse momento, do herbário do tempo, cairá mais uma folha morta.

domingo, 28 de julho de 2019

Atrasos

Hoje acordei confuso. Havia uma ânsia em mim motivada, por certo, por um daqueles sonhos matinais que têm o condão de serem sonhados num estado em que vigília e sono se misturam, o que lhes dá uma mais forte aparência de realidade. Havia qualquer coisa para fazer, muito urgente, mas desconhecia o quê e o onde. Sabia apenas que deveria ser agora, mas agora estava na cama, despreparado para tarefa tão imperativa. Isso acrescentava desnorte à confusão. O barulho de uma sirene, porém, devolveu-me à realidade e pensei que era domingo. Suspirei e levantei-me. Tudo começou a entrar no grande castelo do esquecimento até que, ao chegar aqui, vejo uma velha fotografia de um jogo de futebol realizado muitos anos antes de eu nascer. Uma reminiscência, porém, começou a desenhar-se em mim e o sonho voltou-me à memória. A urgência de me levantar talvez estivesse ligada a esses tempos iniciais em que, ao domingo, tinha de ir à missa da catequese e, depois, a esta. O que tem isto a ver com a fotografia? Tudo. A partir de certa altura troquei as injunções à santidade do catequista pela visita ao campo que aparece na fotografia, onde rapazes um pouco mais velhos do que eu lutavam com denodo – e pouca santidade, diga-se – por uma bola de couro, que, por vezes, caía no rio. O que me entristece é não saber se, no sonho, estava atrasado para a missa ou para ir ver o jogo de futebol.

sábado, 27 de julho de 2019

Uivar à lua

Os dias de sábado nem sempre são dos mais promissores. A esplanada estava composta, na mesa ao lado uma família fazia-se ouvir. A rapariga não sem desenvoltura falava nos concertos a que queria ir. A maioria dos nomes eram-me desconhecidos, mas o que recebeu um maior ênfase foi o de Quim Barreiros. É universitária, pensei, não sem que uma sombra de tristeza me invadisse. Ao que se chegou, meditei, para que um universitário seja reconhecido por este tipo de gosto. Mais à frente, a conversa confirmou-me o prognóstico. Encolhi os ombros e abri o jornal. O mundo nunca nos desilude. É constante na sua venalidade. Houve um tempo em que se teve a ilusão de que uma maior educação tornaria as pessoas mais civilizadas, refinaria o gosto e, em momentos de maior fantasia, até se pensou que as tornarias melhores. A realidade, porém, resiste. A família continuava a declinar as suas preferências, com o orgulho de uma velha estirpe que rememora antepassados. Fechei o jornal, paguei e saí para o silêncio que há dentro de mim. Talvez tenham razão, porventura a realidade não será mais que umas brejeirices debitadas ao microfone. Um anjo passou. Dei por ele porque um cão começou a ladrar desaustinado. Também a mim me apetece ladrar ou uivar à lua.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

On s'habitue c'est tout

“On s’habitue c’est tout”, foi isto que pensei enquanto bebia um copo de sumo de toranja. Quando introduzi este ritual na minha pacata existência, o sabor agreste – para não dizer amargo – da toranja era ainda uma revelação que me dava um prazer especial. Os anos passaram, a cerimónia matinal consolidou-se e, hoje em dia, confesso que o sabor do sumo começa a parecer-me demasiado doce. Foi por causa disso que me lembrei do verso da canção de Brel. Uma pessoa habitua-se e é tudo. Como sou um tipo anacrónico, quando era novo, enquanto os outros rockavam por tudo e por nada, eu ouvia música francesa e, entre todos os grandes da canção francesa, o de que mais gostava era do Brel, que por acaso não era francês, mas belga. Ainda hoje gosto bastante, mas aquele pathos do “ne me quites pas” não me comove ou não cai bem com a minha disposição de ânimo. Tudo isto pertence a um tempo em que eu tinha tão pouca idade que pensava que era existencialista. Lia os romance do Sartre e do Camus, sonhava com a rive gauche e achava que não poderia haver melhor coisa no mundo do que estar condenado à liberdade. Isto alguma influência teve na minha vida, mas é melhor nem pensar nisso. Agora, bebo sumo de toranja pela manhã e lembro-me de restos de canções do Brel. “On s’habitue c’est tout”.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

A nova santidade

O tempo não deixa de ser um motivo inesgotável de conversa. Saber das suas metamorfoses talvez seja a mais alta sabedoria que se pode adquirir. Hoje, porém, não vou falar dele. Não é que tenha outro assunto, não tenho, mas não se deve dar demasiada atenção a S. Pedro. Parece estar a perder as suas qualidades como gestor meteorológico. Compreende-se. Não é só o peso da idade. São todas as outras actividades que são distribuídas aos santos. Tendo em conta o elevado número de pecadores e o diminuto número de santos, até almas pouco caridosas perceberão que eles, os santos, sempre dados ao sacrifício, estão à beira do burnout. Deixemo-los então em paz. Hoje de manhã pus-me a caminhar. Consta que faz bem, o cardiologista recomendou-me, embora eu não tenha percebido lá muito bem o sorriso escarninho que arvorou. Ajuda a controlar a tensão arterial, combate o colesterol, elimina os males provocados por uma vida sedentária, escutei. Incrédulo, diga-se. Animado pela bondade do exercício, mas sem amor por ele, lá pus os pés ao caminho. De vez em quando passavam por mim crentes da mesma religião, um sorriso seráfico e a esperança de chegar ao céu da boa saúde. Só espero que eu não ostente tal estado patético na cara. Já basta o que ela é, quanto mais ter nela estampada a beatitude dos altares. Enquanto caminhava, ia meditando sobre esta nova religião. O pior são os radicais, disse para mim mesmo. Esses não caminham. Correm, correm, de rosto contorcido, a língua de fora, um aparelho ligado ao braço, parece que vão explodir. Esperarão também eles setenta virgens quando chegarem ao paraíso? Sempre que via um desses candidatos a mártires, eu abrandava o passo. Há que ter cuidado, já não tenho idade para me radicalizar.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

O pedalador

Que dia este de Julho, exclamei para mim mesmo. Almocei tarde e deixei-me ficar em frente da televisão a ver a etapa do Tour. Um ciclista fugia, fugia, embrenhava-se estrada fora. Ia sozinho, como se um monstro tortuoso o perseguisse. Talvez a ideia de ser devorado por um dragão lhe desse forças nas pernas e lá ia ele, a subir e a descer, curva e contracurva, indiferente à paisagem, surdo para os incentivos, os olhos no futuro e um medo terrível do passado. Se fosse S. Jorge, por certo, esperava o dragão e matava-o, mas hoje não abundam heróis como aqueles que havia noutros tempos. Os heróis de hoje pedalam, que ped’alma, como escrevia o O’Neil. E enquanto o semideus pedalava eu adormeci em frente ao televisor, adormeci com o meu “passado a tiracolo”. Eu dormia e o ciclista, um italiano, dava às pernas, abandonado, afogueado, “com o provir na pedaleira”. Parecia que lhe tinham chegado fogo ao rabo. Talvez fosse uma baforada do dragão, admito agora que penso no assunto, e o pobre, que não era S. Jorge, toca de se despachar, para chegar à meta que deve ser uma espécie de coito, onde, a quem nele se abriga, nada pode acontecer. Terei sonhado? Terei ressonado? Não ouvi protestos. Quando acordei, lá estava o italiano no coito, protegido contra dragões, à espera que chegasse o camisola amarela, que tinha perdido o comboio e se atrasara vinte minutos, pois também os camisolas amarelas chegam tarde quando os comboios cumprem horário. O melhor é não sair de casa. Pode ser que apareça por aí um dragão e não tenho santidade suficiente para o enfrentar nem força para dar ao pedal, que a pedaleira está enferrujada e o passado a tiracolo pesa-me mais que o futuro.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Generalizações precipitadas

A dado passo da entrevista, um historiador e agora romancista, diz que o D. Carlos era um esbórnia. Faria mais sentido dizer que andava na esbórnia, mas sejamos sensíveis às liberdades poéticas. Dado ou não à pândega, teve um destino cruel que sempre julguei imerecido. Quem parece que ficava muito bem no lugar de rei era o último incumbente. As raparigas estavam todas apaixonadas por D. Manuel, o que não deixaria de ser um sinal da sua capacidade política, embora seja possível pensar que há nesta frase uma generalização precipitada. Imaginemos as pobres camponesas do interior, aquelas que nunca puseram os olhos numa folha de jornal, como poderiam imaginar o jovem rei em uniforme militar para que o seu coração se enternecesse e, por causa de sua alteza, se entregasse, tremente, ao sonho melancólico de um amor impossível? A verdade é que todos nós gostamos de fazer generalizações. Pessoalmente, esse prazer nasce-me da inclinação para a hipérbole. Talvez o meu gosto em exagerar a realidade se deva a algum defeito de visão em que nunca tenha reparado. Nem sei por que motivo me pus a escrever sobre os últimos Braganças que ocuparam o trono deste país. Julho nunca é um mês fácil. Também ele é dado a hipérboles e o exagero será a sua razão de existir. Como eu, Julho também terá um secreto defeito na visão.

domingo, 21 de julho de 2019

Sonâmbulos

Os longos domingos de Verão. Os almoços tardios prolongavam-se pela tarde, o calor zunia e as pessoas enfrentavam com estoicismo os desmandos do lugar e do clima. Nesses estios inacabáveis tudo parecia mais perfeito. A inocência do olhar transformava as coisas mais simples em acontecimentos memoráveis. Depois, enquanto o olhar perdia a inocência, a realidade desfazia-se da perfeição, como se, para nos experimentar, um deus nos obrigasse a essa dupla perda. Será isso a que se dá o nome de queda. Olho para as minhas netas e ainda vejo nos seus olhos, tão ávidos de realidade, essa doce ilusão, aquela que faz de um simples nada um grande acontecimento. Também o almoço de hoje será tardio e elas hão-de lembrar-se dos domingos de Verão, dos seus almoços, dos pequenos nadas, das corridas de bicicleta, como eu me lembro de uma entoação de uma tia-avó, de uma sombra que a certa altura se desenhava no quintal da casa onde nasci ou do vento a soprar as folhas das roseiras que ali havia. Na infância, somos sonâmbulos, doença que a adolescência nos há-de curar. Depois, quando a vida começa a declinar tornamo-nos de novo sonâmbulos, evitando, sempre que for possível, que a realidade nos incomode em demasia.

sábado, 20 de julho de 2019

Trabalhos manuais

Peguei num romance que começa com uma descrição de soldados de papel. Os primeiros são os couraceiros cabeças-redondas de Cromwell, os quais acabaram por ajudar ao funesto desenlace que levou Carlos I ao cadafalso. Talvez a decapitação faça parte das prerrogativas reais, pensei. A história está cheia de regicídios, mas hoje é sábado e o melhor é não pensar em coisas dessas. Voltando aos soldados de papel, lembrei-me que havia quem coleccionasse soldadinhos de chumbo. Talvez existisse gente que coleccionava soldadinhos de papel ou, melhor, de cartão. Por falar nisto, lembrei-me de um fatídico acontecimento da minha existência. No meu tampo, havia, para além do exame de admissão, um exame da quarta classe. O mais difícil para mim era, de longe, a prova de trabalhos manuais. Tínhamos de apresentar uma obra construída pelas nossas próprias mãos. Havia quem fizesse navios em madeira e outras coisas que eu nem imaginava serem possíveis. Eu, pobre de mim, não sabia o que as minhas mãos poderiam fazer. Não sei como nem porquê, calhou-me construir um moinho de cartão. Tinha de recortar as figuras e montá-las, fazendo dobragens e colando. Uma tortura. O pior foi que não conseguia colar aquela geringonça. A professora ao aperceber-se da minha inépcia, perguntou-me que cola estava a usar. Ao constatar que o problema não era da cola, deu-me três estalos na cara. Nesse momento devo ter tido pena que ela não fosse Carlos I de Inglaterra e eu, no abandono dos meus nove anos, um Cromwell justiceiro. Não sabia, porém, história de Inglaterra e limitei-me a ficar calado. A verdade, porém, é que a senhora não perdeu a cabeça no cadafalso e eu lá consegui colar o moinho. Nunca deixei de odiar os trabalhos manuais.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Ó sôtoura

Ó sôtoura, como está? E a família? Silêncio. Tudo bem, tudo bem. Ah sim, sim. Silêncio. Tem razão, tem razão. Silêncio. Também sou da sua opinião. Avançamos assim. Silêncio. Claro, claro. Acho que é o melhor, sôtoura. Nada a perder. Silêncio. A minha mulher é da mesma opinião. Silêncio, a mulher ao lado faz um esgar de concordância. Avançamos, avançamos. São indecentes. Silêncio. Pois, pois, logo se vê. Silêncio. Se achar melhor, passo por aí um dia destes. Silêncio. A sôtoura é que sabe. Silêncio. Cumprimentos lá em casa. Prazer em ouvi-la. Silêncio. Nada melhor que estar numa sala de espera de uma daquelas clínicas onde vão pessoas que só se dão com sôtouras e sôtoures e têm negócio entre mãos ou sabe-se lá entre quê, pensei enquanto deixava correr o tempo até que me libertasse da missão que ali me prendia. Nunca deixa de me espantar um certa casta de pessoas que insiste em partilhar com os outros a sua vida, talvez porque julguem que os outros não existem, ou por considerem a sua vida tão gloriosa que nos oferecem o relato para que, nós pobres mortais, sejamos iluminados e participemos, ainda que só por ouvir dizer, daquela glória mundana. Estas pessoas estão sempre a avançar, com tanta edificação, enquanto eu não avanço nem recuo. Mantenho-me parado, tão parado que, ao pé desta gente que avança sem parar, sou uma autêntica e genuína estátua. Ó sôtoura, também eu posso avançar?

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Do estado de ânimo

Os ânimos andam agastados por esse mundo fora. Talvez as pessoas não saibam o que hão-de fazer com a vida que receberam e então, para passar o tempo e enquanto a morte não chega, agastam-se umas com as outras, com a pátria e o mundo. Entregam-se a vitupérios e exprobrações, parecem prontas para lançar frondas por tudo e por nada. Nunca na vida imaginei, é curta a minha imaginação, que houvesse tantos cavaleiros andantes. Cavaleiros e amazonas, diga-se, pois também há por aí umas senhoras exaltadas, de prosápia em riste, que, como os justiceiros masculinos, estão dispostas, se crermos no que dizem, não só a tornar patente a estupidez dos outros como a ocupar o lugar da padeira de Aljubarrota, mas agora montadas a cavalo e brandindo a espada da sua inexcedível superioridade. Pensava sobre tudo isto enquanto caminhava pelas ruas aqui perto. Esperava-me uma daquelas tarefas a que não nos podemos eximir ou que decidimos que não nos podemos eximir porque a queremos executar. Contrariamente ao estado do mundo, as pessoas por aqui andam de ânimo calmo, não se lhes nota outras motivações senão aquelas que decorrem das necessidades que a vida impõe. Vão às compras, falam de futilidades, adornam-se conforme podem e caminham devagar sob a luz solar. Daqui, parece-me certo, não partirão exércitos para pôr o mundo nos eixos nem gente para endireitar o que está torto, e isso, confesso, deixa-me feliz e tranquilo. É melhor deixar passar o tempo com bonomia do que entregar-se à exaltação que sempre anima os cavaleiros andantes e as padeiras de Aljubarrota que pululam nesse estranho espaço virtual a que se deu o desditoso nome de redes sociais.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Vida civilizada

Se as pessoas não fossem tão susceptíveis, diria que hoje está um dia glorioso. Uma luz suave, um céu densamente nublado e, acima de tudo, sem o calor sufocante de Julho. Sento-me à secretária e faço o que tenho de fazer. Num dia como o de hoje é um exercício menos penoso, quase sou levado a crer que o que faço merece ser feito. Sei que não, mas a capacidade que o tempo me deu para me iludir parece ser um recurso inesgotável. Se não me iludisse, penso de imediato, a vida seria insuportável. A realidade é um monstro malcheiroso e a verdade tem um peso para o qual os ombros humanos não foram feitos. Isto lembrou-me aquelas pessoas que dizem sou muito frontal, digo a verdade na cara de toda a gente. Eu sou um caso perdido. Dispenso frontalidades e evito dizer a verdade sempre que posso. Não é por mal, nem por cobardia, mas por delicadeza. Por que razão hei-de submeter os outros à minha sanha de dizer verdades? A vida civilizada não é mais que um exercício prolongado de esquecimento da verdade. Será que estou a dizer a verdade ou estou, civilizadamente, a mentir? Ainda bem que as nuvens continuam firmes no seu lugar.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Esperança

Fui à caixa do correio e não havia nada. Espera-se sempre alguma coisa, mas a esperança, o mais das vezes, é infundada. Um dia não haverá caixas de correio, nem correio, nem gente que faça esse trabalho de trazer aquilo que a esperança espera. O futuro é uma incógnita, digo-me para me consolar. Olho para a rua e o céu está cinzento e sinto a opressão da atmosfera. Também aqui o corpo reclama, com esperança, uma tempestade. Não daquelas que chega e, num ápice, destrói meio mundo. Queremos sempre coisas à medida, nunca nos contentamos com aquilo que há. Uma tempestade ligeira, com chuva, relâmpagos e trovões, e a opressão desapareceria. Seria libertadora. Tenho de me despachar. Alguém está à minha espera daqui a pouco. Eu não sou mensageiro de boas notícias, constato. Que mania de dividir as coisas em boas e más. A vida passa indiferente às minhas pobres avaliações. É apenas um pulsar cego, sem causas nem desolações. Não espera nada e ri-se de quem, perante o seu império, fala de esperança.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Questões de igualdade

Os irmãos têm uma propensão inextinguível para a igualdade ou, talvez seja mais acertado, um sentido fino e doloroso para as desigualdades que sofrem. Ontem, depois de se combinar com a neta mais velha o almoço de hoje, a irmã, excluída por razões espácio-temporais, reivindicou de imediato o direito de ir almoçar sozinha com os avós. Exclusão com exclusão se paga, pensei. Ficou prometido. Não há nada que requeira mais cuidado e sensibilidade que a gestão das diferenças entre irmãos. Hoje, quando saí para o almoço combinado, o sol caía sobre a pele como uma lâmina afiada, abrindo sulcos por onde o calor penetrava no corpo, para explodir por dentro, liquefazendo o sangue e inundando a pele com um suor insuportável. Não nasci para este tipo de temperaturas, pensava, enquanto a neta exultava com as actividades da manhã, bendizia o facto de estar a jogar à neta única e, para meu pesar, cantava loas ao Verão. Agora que ela voltou para onde estava, tenho de lhe ir comprar um livro, mas já não me lembro do título. As pessoas arrastam-se, procuram as sombras e, apesar da inclinação estival que trazem no coração, talvez tenham uma leve nostalgia dos dias em que o inferno não fazia propaganda na Terra.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Cirurgia ocular

Passei a manhã como acompanhante – honni soit qui mal y pense! – de paciente que, na ânsia, sabe-se lá se fundada, de ver melhor o mundo, decidiu submeter-se a uma cirurgia aos olhos, a um, para ser mais exacto. A exactidão, nestas coisas da medicina, é essencial, como logo nos apercebemos mal entramos em contacto com um desses seres mitológicos a que, por reverência, se dá o nome de médico. E enquanto aguardava o desenrolar das operações, para poder executar a função a que me propusera, fui adentrando-me na vida dos outros. Coscuvilhar, para ser mais fiel à atitude que foi, durante a manhã, a minha. Preocupei-me, não sem condescendência, com as hesitações e as dores das primas Garman, Rachel e Madeleine. Cansado de desventuras no feminino, passei para o destino do garboso e recém promovido capitão Giovanni Drogo. Quando o rescaldo da intervenção cirúrgica terminou, estava eu a pensar que este interesse pela vida de terceiros, ainda por cima gente de papel, não prognostica nada de bom sobre a minha índole. Uma pessoa decente, por parcos que fossem os seus talentos, empregá-los-ia na criação de riqueza, ou na libertação da humanidade ou, mesmo, na salvação do mundo. Todas estas nobres actividades, porém, não estão no meu horizonte. Olho-as e não consigo ver nada. Talvez também eu precise de uma cirurgia ocular.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Ainda é cedo

Combinando esplendor e volúpia, as árvores da avenida lançam uma sombra lenta e furtiva sobre a brancura calcária dos passeios. Vejo-as de cima, a exuberância da copa batida pela aragem, o verde tisnado pelo sol de Julho, e respiro fundo. A tarde caminha como uma rameira fugitiva, mas muito ainda terá de penar até se entregar, não sem prazer, nos braços da noite. São assim os dias por aqui. O peso do céu esmaga a terra e as pessoas vão rua fora, oficiando paciências, esperando que a vida resolva o que nunca resolverá. Perambulo pela casa como se fosse personagem de um romance de Xavier de Maistre e descubro sempre um motivo de interesse. Um livro de que me esquecera fora do lugar, um CD que não oiço há muito, a fotografia de algum neto, outra em que estou ao colo da minha avó materna. Entre avó e neto vão cinco gerações, penso enquanto me aproximo de outra janela. Na praceta, lá em baixo, não se vê vivalma. Ao longe, os carros estacionados no Hospital reverberam, enquanto as paredes do edifício escurecem sob o peso das colónias de fungos. Encaminho-me suavemente para o sítio onde, benevolente, a loucura me aguarda. Ainda é cedo, digo ao olhar para o relógio.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Estados de alma

O mais assisado é não ter estados de alma. Este tipo de pensamento acomete-me muitas vezes, principalmente quando sou confrontado com as coisas inúteis que o destino me destinou. Ora, se o destino as destinou, quem és tu, pobre mortal, para te insurgires? Nada de insurgentes, diz-me a consciência. Então, antes de me irar, recorro à ataraxia, essa tranquilidade de ânimo ou ausência de inquietude. Faço-o, não porque o ânimo me seja tranquilo por natureza ou porque, em verdade, não seja inquieto. Faço-o porque gosto da sonoridade do vocábulo. Os antigos cultores da ataraxia tinham um objectivo moral. Eu tenho uma razão estética, o som da palavra. Por outro lado, com esta idade, irritar-me é uma coisa desagradável. Por isso, levanto-me e, à janela, fico a olhar demoradamente o horizonte. Este não me defrauda. Mantêm-se inalterado e não me pede nada que não seja olhar para ele. Ali em baixo, as pessoas passam e também elas desejam não ter estados de alma, mas não sabem o que é a ataraxia e a alma, tomada de inquietações, logo lhes salta dentro do corpo.

domingo, 7 de julho de 2019

Novas pedagogias

Entardeço nesta tarde de domingo. O corrector ortográfico do Word solidariza-se comigo e sublinha a vermelho a palavra entardeço. Um erro. Ainda bem que já não estou na escola primária, onde a partir de três erros o professor se entretinha a aplicar uma reguada por cada nova ofensa à ortografia, uma senhora então muito digna de respeito. Era um exercício didáctico da melhor qualidade, que o digam aqueles – eram sempre os mesmos – que cada vez que calhava haver um ditado saíam de lá com as mãos a arder. A eficiência era nula, mas o prazer – prazer pedagógico, note-se – do professor devia ser imenso. O corrector do Word pertence já a uma nova mentalidade educativa, talvez influenciada pela OCDE. Sublinha a ortografia desviada a vermelho e a sintaxe inovadora a verde. Dá conselhos em vez de reguadas. Na verdade, é um corrector patriótico e republicano, preocupado em que não esqueçamos a bandeira nacional, admoestando-nos com bonomia e espírito liberal. Seja como for, tenho de lhe agradecer. Não me reconhece a possibilidade de me tornar tardio. Eu que sempre fui serôdio em tudo, que tenho por sina chegar tarde aonde os outros só chegam cedo, não posso entardecer. No entanto, o mesmo corrector permite-me escrever amanheço sem sublinhar o vocábulo. Talvez haja aqui uma insinuação, cujo significado prefiro ignorar.

sábado, 6 de julho de 2019

Uma tarde de Julho

O telemóvel informa-me que aqui mesmo estão 28º e o céu parcialmente nublado. É verdade, pelo menos as nuvens cobrem o sol. Num sábado de Julho as coisas não estão más. O normal seria estarem uns 38º ou 40º, as pessoas afogueadas, a arrastarem-se pelas sombras e a maldizer S. Pedro, o verdadeiro mentor dos estados do tempo. O santo tem sido condescendente. Talvez ele próprio ande um bocado desregulado, tenha perdido a tramontana e esquecido as noções básica de espaço e tempo. Mesmo que seja grande a sua santidade, também os santos se gastam. O que eu queria dizer é que estou grato pela amenidade climática. Esta temperatura só me dá sono, mas não me desregula o humor e não me faz pensar em coisas que uma pessoa de bem nunca deve pensar. Enumero as tarefas inúteis que ainda tenho para fazer. São algumas, constato. Hei-de fazê-las, pois o bem da humanidade depende delas. Oiço os latidos de um cão. Oiço palavras cujo sentido me escapa. Oiço a arenga de um pássaro que não se cala. A tarde desliza devagar e, não tarda, a cabeça vai pender, os olhos fecharem-se e hei-de ressonar em harmonia com o que oiço. Longínquas estão as tarde de Verão em que uma voz imperiosa me mandava dormir. Eu fechava os olhos, contava os minutos, cheio de inocência, e nunca dormia. Abominava a tortura. Agora é o que se vê.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Das semelhanças

Passei por uma pessoa conhecida, uma mulher que se aproximará da casa dos cinquenta, que não via há muito. Surpreendeu-me que se tivesse tornado tão parecida com a mãe, como se o tempo se aplicasse a seleccionar aqueles traços que, durante décadas dissimulados, estabelecem uma relação com o passado e assim tentasse eliminar os que diferenciam e são arautos de um salto na estirpe. A natureza, ponderei enquanto trocava algumas palavras de circunstância, é mais cuidadosa do que se pensa e tem horror ao desconhecido. Poderia ter evitado este antropomorfismo, mas não me apetece. Hoje acordei e ao ver a paisagem coberta por uma bela neblina comecei a atribuir sentimentos e objectivos humanos à pobre natureza, pura e inocente de todos esses pecados. Uma pessoa prudente evitaria atribuições dessas, passou-me pela cabeça, enquanto me despedia. Logo segui o meu caminho e esqueci as semelhanças, a natureza e a própria prudência. Na paisagem árida da minha mente, talvez motivadas pelo vazio, passam muitas ideias que melhor fora nunca tivessem vindo à existência. O pensamento, porém, é um cavalo selvagem e a mim faltam-me os dotes e a paciência para o domesticar.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Inconstância

Chego à janela e olho lentamente o céu. Os dias continuam nublados e isso é uma bênção. As pessoas protestam porque o Verão parece ter sido adiado. Protestariam se ele tivesse vindo exuberante, aninhando-se no desconchavo dos dias e daí lançasse uma cortina de fogos, que haveria de lembrar o inferno, com anjos caídos, horrendos, negros como baratas. Por falar em anjos caídos, sempre poderia dedicar-me a escrever uma angelologia. Dividir os anjos entre fiéis e rebeldes, e discutir a magna questão se Adão foi criado ou não para que os homens substituíssem no céu o lugar daqueles anjos que se deixaram levar pela empáfia e sofreram, mesmo destituídos de corpo, os efeitos terríveis e inexoráveis da gravidade. Como se vê, sou inconstante de objectivos. Comecei a propor-me falar de anjos e logo mudo de opinião e quero discutir a origem dos homens. Desconfio que, a continuar assim, ainda acabo a perguntar-me sobre a génese dos percevejos. Seja como for, o céu continua cinzento. As nuvens não deixam que se avistem os anjos bons e os maus, como se sabe, andam demasiado ocupados a sugestionar os pobres mortais, semeando-lhes searas de armadilhas para que eles, levados pelo descaso, se percam e a sua alma fique mais escura que um tição.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Julho

Só hoje dei por Julho ter chegado. Sabia que o calendário indicava que estávamos em Julho, mas este ainda não se apresentara diante de mim, mostrando-me credenciais e comprovativo de existência. Esta frase fez-me lembrar uma peculiaridade da burocracia nacional, a certidão de nascimento. Apresento-me, identifico-me com o bilhete de identidade, mas alguém diz: prove que nasceu. É um exercício difícil provar que se nasceu. Vale-nos a certidão. Também Julho apresentou a sua certidão de nascimento. Isto não torna as coisas mais fáceis. Pelo contrário. Há pouco peguei num livro onde um filósofo actual me informa que “jamais poderemos ter a esperança de tornar as nossas palavras perfeitamente precisas”. As pessoas esperam pouca coisa, pensei. A minha esperança é que as palavras se tornem perfeitamente imprecisas. Assim ao dizermos uma coisa, o leitor suspeita que estamos a dizer outra e isso parece-me muito consolador. Acabariam os mal-entendidos. Olho o céu, e uns cirros mancham a pureza do azul. Cá em baixo, na terra, os homens apressam-se pela avenida. Temem chegar tarde ao comboio que os há-de levar a Agosto.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Ares de família

Respiro fundo e penso que este é um belo exercício para clamar a vinda da paciência. Estou há horas numa tarefa repetitiva, destituída de sentido, fabricada por gente misericordiosa, sempre activa na descoberta da melhor forma de fazer da vida dos outros um exercício de penitência. Talvez eu mereça, mais que qualquer outro, essa penitência. A estupidez é um pecado capital que se paga caro e eu não me distingo particularmente pela inteligência. Decidi acompanhar o ir e vir do látego com as sonatas para piano de Beethoven. A certa altura, estas tornaram-se também elas repetitivas. Não percebia já o movimento da música, apenas ouvia, como se viesse de outro mundo, o martelar ameaçador das teclas. Parei. O Youtube ofereceu-me, então, as sonatas de Schubert pelo Claudio Arrau. Olho para a fotografia deste e acho o seu rosto, marcado pela idade, uma estranha combinação entre Nietzsche e Arnaldo Matos. Não estou bem, pensei. Levanto-me, esfrego os olhos, dou uns passos pela casa. Chegou a hora das alucinações. Troco o Beethoven pelo Schubert e volto à expiação. Antes de recomeçar ainda me pergunto: Nietzsche, Arrau e Arnaldo Matos seriam primos? As voltas que a vida dá.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

A verdadeira arte

Podia vir aqui contar a história do faroleiro Richard Garman, mas não o faço. Há que evitar o excesso de ficção e, desse modo, propagar histórias falsas por esse mundo fora. Já basta o que basta. Também é verdade que não haveria quem a ouvisse. Inspirado por Santo António, sempre a poderia contar aos pássaros meus vizinhos, mas estes parecem-me demasiado ocupados para se entreterem com o que lhes pudesse dizer. Esvoaçam diante da janela, poisam no parapeito, fazem tangentes arriscadas à esquina do prédio. Acima de tudo, não se calam e eu não sou santo o suficiente para lhes fazer entender a minha língua. A luz desta segunda-feira tem o condão de me irritar. Há nela um sintoma de falsidade, uma mancha esbranquiçada que alastra pelas paredes e telhados, um odor a trevas mascarado de brilho. Não sou daqueles que na natureza vêem o metro da virtude. Também ela é dissimulada, pronta a fazer-nos cair numa armadilha. Eu sei que o que estou a escrever não tem nexo, mas também eu perdi há muito o norte. Acima de tudo, esforço-me por adiar aquilo que tenho de fazer. Ainda oiço o sagaz conselho que estava num daqueles livros de instrução pública que me calharam em sorte: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Pobre sagacidade e infeliz conselheiro. Há coisas que o melhor é nunca as fazer. Procrastinar é uma arte. A verdadeira arte.