quinta-feira, 11 de abril de 2019

Enlouquecer

Ainda há pouco, as árvores da Sá Carneiro tiritavam despidas e melancólicas, tolhidas numa penúria ancestral. Ao espreitá-las agora descubro-as envoltas em cintilantes vestidos verdes, tomadas por uma sensualidade jovial, esquecidas da frugalidade que os dias frios e cinzentos lhe impunham. Indiferentes à verdura tépida que cobre as ramadas, os homens seguem o seu caminho. Vão descarnados e o seu andar, ao contrário do tremor irrequieto do folhedo, parece já devorado pelo efémero que as garras viscosas do tempo vão fiando sem parar. Se eu enlouquecesse, pensei nesse instante, tudo seria mais fácil. Do parapeito onde habitam, as orquídeas, lúbricas e castas, abrem aos olhos o fausto das suas cores e apontam-me o dedo acusador de não as olhar. Perdido neste mundo vegetal, faço contas à vida e penso no IRS como quem pensa nas penosas tardes de tédio de um Verão no Ribatejo. Enlouqueço lentamente, enquanto desfolho uma a uma as pétalas da minha razão.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Golo

Na praceta entre os prédios, um bando de rapazes joga à bola sob o sol de Abril. Como eu, as nuvens esparsas param e olham-nos estupefactas. Também joguei inúmeros e decisivos jogos de bola na rua, com regras inventadas e jogadores preocupados apenas que passasse um polícia e que, para assegurar o princípio da sua autoridade, nos ficasse com a bola. A folhagem das árvores da escola ao fundo da rua inclina-se, tocada pelo vento, batida pelo sol. Um cão ladra, pessoas entram e saem do café, e eu penso nesses jogos onde todos os sonhos eram possíveis e toda a honra estava ao alcance de um pontapé certeiro ou toda a perdição no estilhaçar de um vidro atingido pelo excesso de empenho do jogador. Um poema de Eugénio de Andrade diz-me que em abril / os dias são /frágeis, impacientes e amargos, mas eu já não acredito. Aqueles rapazes, uma projecção perdida no tempo da minha infância, julgam os dias de Abril gloriosos e eternos, pois toda a glória e toda a eternidade se resumem ao momento em que o pé encontra a bola e a garganta grita golo.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Desencontros

Uma mulher caminha contra o vento, os cabelos parecem querer voar em sentido contrário ao do corpo, enquanto a roupa, tornada indiscreta pela impiedade de Éolo, lhe desenha, sem propósito, os contornos, já tocados pelo passar dos anos. Um casal atravessa a passadeira, arrasta atrás de si duas malas como se fosse apanhar o avião, mas aqui não há aeroporto, lembrei-me de imediato. O desejo de partir é tão grande que as pessoas não conseguem impedir-se de ostentar pelas ruas os sinais de quem se liberta. A melancolia da província é tomada de assalto pela tristeza do dia e as duas dançam dentro dos meus olhos. Eu, enquanto observo tudo isto, luto por me lembrar de uma palavra que viria a propósito do que queria dizer, mas ela foge-me, corre, dança e, depois, ao longe, acena-me e torna a esconder-se. Hei-de apanhá-la quando já não precisar dela. A vida é feita de desencontros, consolei-me. Os pombos voam em círculos, os carros passam sem pressa, e eu vivo o êxtase de me ver roubado das palavras que fui comprando, o mais certo em saldo, nesses grandes armazéns onde se compra tudo aquilo que nos há-de escapar.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Ociosidades

Talvez tenha sido por ver o sol brilhar uns instantes, talvez por um súbito assalto de nostalgia, talvez devido a outro motivo qualquer, mas na minha cabeça começou a ressoar uma canção francesa – uma versão de outra portuguesa, na verdade – que tem por título Avril au Portugal. E enquanto atravessava a cidade, embalado pelo ronronar do carro, a canção fazia finca-pé e não me abandonava. Não sem vergonha mas com a atenuante de ir sozinho, confesso que cheguei a trauteá-la. O mês de Abril parece fadado para a mitologia, pensei. As mitologias mais antigas, com o avançar da idade, tendem a sobrepor-se às mais recentes, digo-me. E a cançoneta, que tinha desaparecido no fundo da minha memória há décadas, persistia sob um céu que estava longe de ser de Verão. Quando a realidade se torna absurda, é possível que o organismo se defenda e produza idealizações ou clame pelo mito. Tudo isto, porém, são pensamentos ociosos. E se o ócio, no tempo dos gregos era o lugar da sabedoria, hoje é a fonte de todos os vícios. O melhor é dedicar-me às coisas absurdas que me competem e deixar que Maio venha manso com as suas garras de calor para me sufocar, culpado que sou do amor ao ócio e dos vícios que ele acarreta às suas perversas costas.

domingo, 7 de abril de 2019

A Sulamita

Descobri num artigo de Vargas Llosa que, apesar de fazer parte do Antigo Testamento e de ser recitado na Páscoa judaica, o Cântico dos Cânticos, com as suas imagens voluptuosas e a sacralização da sensualidade, só podia ser lido pelos judeus depois dos quarenta anos. Enquanto olhava pela janela as águas de Abril não deixava de meditar não sobre a atracção de Salomão pela Sulamita, mas na sapiente interdição que impediria a leviandade de cair sobre os tortuosos rios do desejo. Se naqueles dias só aos quarenta anos se estaria apto para ler o Cântico dos Cânticos, hoje em dia, apesar da sexualização da sociedade e da precocidade das experiências amorosas, nem aos sessenta se estará capaz para ler o texto bíblico. Uma coisa é a mecânica dos corpos alimentada pelo fluxo hormonal, outra é a sabedoria que permite perceber que também no desejo se manifesta qualquer coisa que está para além daquilo que é meramente humano. E ao pensar em tudo isto não deixei de me rir. Não do mundo ou do poema de Salomão, mas de mim mesmo. Quem, neste tempo feito de impulsos e certezas primárias, quer saber daquilo que é mais que humano? O melhor, sinto, é não pensar em nada e deixar Salomão, ele que teve setecentas mulheres e trezentas concubinas, preso nos encantos da Sulamita.

sábado, 6 de abril de 2019

Sacralidades

Ontem, numa daquelas hamburguerias da moda na baixa lisboeta, um jovem padre e, presumidamente, a sua mãe jantavam. Denunciava a condição sacerdotal o cabeção, o que não deixou de me espantar e acabou por os fixar na minha memória. Interroguei-me se ele teria comido um hambúrguer de carne, já que era sexta-feira e estamos na Quaresma. Os presumidos mãe e filho estavam muito bem vestidos para jantar num daqueles sítios. Tornei a vê-los quando terminou o concerto, comemorativo do 150.º aniversário do nascimento de Calouste Gulbenkian, na Igreja de S. Roque. Como a generalidade dos espectadores, eu estava de traje casual, como agora se diz, mas senti, perante aquelas duas figuras, que alguma coisa se perdeu na democratização das roupas em certas actividades culturais. O Lamento de Adão, de Arvo Pärt, e o Requiem, de Tigran Mansurian, encontraram em S. Roque um lugar perfeito para a sua audição. Mesmo ao lado do Coro da Gulbenkian, estava o andor do Senhor dos Passos, carregando a cruz e o roxo das vestes, e durante a execução das duas peças muitas vezes se percebeu que a arte tem uma dimensão de sacralidade que não se coaduna com a displicência do vestir. Quando saí para o frio da noite lisboeta, pensei que só o jovem padre e a sua mãe se tinham preparado devidamente para o que iria acontecer.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Sem metafísica

Ainda há pouco a chuva dava às árvores uma aura que o declinar da luz apaga. A noite nunca deixa de se rebelar contra a santidade do dia, penso. Espreito a rua e deixo a tristeza do entardecer fazer o seu caminho para os meus olhos. Um homem atravessa vagaroso a passadeira e entra no bar do outro lado da avenida. Podia ser o Esteves sem metafísica, aquele que entra e sai da Tabacaria, mas não é. Esse já terá morrido há muito, e sem metafísica pode ser outro qualquer. Um casal corre emparelhado, fugindo da água, mas logo se separa para cada um entrar no carro pela porta que lhe cabe. A vida é feita deste modo. Uns entram dentro dos bares, outros correm para dentro de carros, outros saem das tabacarias, quando as há, e o mais importante é que a cada um seja dada uma porta por onde possa entrar e sair. O pior é quando se fecham todas as portas e a metafísica definha à falta de luz. Também a minha metafísica, constato, definhou à falta de luz natural da razão. Resta-me comer chocolates e olhar o crepúsculo neste mundo sem tabacarias, que se apaga no fundo dos meus olhos como a ponta de um cigarro esmagada contra o fundo do cinzeiro.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Sinestesias

Ainda hoje vejo aquela voz perturbante, oiço ao passar por um grupo de pessoas e fico encadeado pela sinestesia. Ouvem-se coisas extraordinárias nos sítios mais improváveis. O que faria daquela voz algo visível não deixou de me amofinar durante a curta caminhada pela avenida. Era ainda nisso que pensava quando entrei no café. Se tivesse espírito de coleccionador, coisa de que careço por completo, coleccionaria sinestesias. Ver o cheiro de uma rosa ou saborear o amarelo de um limão, isso sim mereceria ser coligido, arrumado em prateleiras, para depois ser mostrado ao público em grandes exposições, para as quais imagino já catálogos multissensoriais. E enquanto escrevo isto, o computador informa-me que as definições de um programa estão desactualizadas. Respiro fundo, pois também eu estou desactualizado, incapaz de ver vozes ou de ouvir a fragrância que ressoa no corpo daquela mulher ali ao fundo. Um upgrade era o que precisavas, digo-me não sem complacência, enquanto aguardo que o programa se actualize, nesse seu mistério digital de onde foram banidas todas as sinestesias.

terça-feira, 2 de abril de 2019

Improbabilidades

Num dos livros que comprei num alfarrabista encontrei um daqueles papéis que os bancos enviam aos seus incautos clientes com o código secreto pessoal de um cartão multibanco, presumo. Pela coloração do papel, esse cartão já deve ter sido desactivado há muito. Tudo isto é irrelevante, como todas as coisas sobre as quais escrevo, mas não deixa de haver um fascínio nessa tira envelhecida de papel. O código tem a extraordinária sequência de algarismos 1234. Ao vê-la fiquei a pensar que essa sequência é tão improvável como qualquer outra. E perdido nestas divagações sobre improbabilidades ocorreu-me que, provavelmente, o dono do cartão já terá morrido e que os herdeiros lhe terão vendido os livros. Na verdade, nem uma sequência improvável nos livra da morte. Depois de uma breve hesitação, tornei a colocar o papel entre as páginas do livro, para que um futuro proprietário o encontre e tenha um motivo para escrever sobre improbabilidades e outras coisas inúteis com que, à falta de melhor, preencho a vida. Como eu, o dia declina para se esconder no esconso desvão da noite.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Troveja

Um dia para esquecer, digo entre dentes e rio. Qual dos meus dias não foi para esquecer? Talvez meia dúzia, uma dúzia será já um excesso. Todos os outros saíram pela porta por onde entraram sem que eu me lembre deles. Sento-me à secretária e, para me lavar das necessidades da vida, pego num livro de Nuno Júdice, onde leio “Nenhum pássaro regressou do sul / aos seus ninhos vazios”. Esta poética do abandono, porém, não me comove e fecho o livro. Troveja, mas parece coisa longínqua. Ah se chovesse torrencialmente, que bom seria, murmuro. Como tudo ficaria mais limpo: as ruas, as casas, os carros, a vida e as almas, tão suadas que elas estão, tão fora do jejum que a Quaresma obriga, tão exaustas de serem almas e de arrastarem atrás de si a vileza do corpo. Oiço outra vez o ribombar de trovões. Talvez a trovoada se esteja a aproximar. Há nuvens negras, mas o horizonte é de um azul pálido que se suspende sobre as serranias. O dia despede-se ao toque do tambor e eu entro na noite pelo desfiladeiro maculado do silêncio.

domingo, 31 de março de 2019

Vergonha

A certo passo, no romance A Pele, Curzio Malaparte diz «É uma coisa humilhante, horrível, é uma necessidade vergonhosa lutar para viver. Só para viver.» Leio estas palavras não sem uma inquietação, não sem uma suspeita. Talvez a suspeita tenha nascido da escuridão da noite ou das tarefas a que durante o dia tive de me entregar para, isso mesmo, viver. A suspeita soletra dentro de mim que a vida não é outra coisa senão a luta pelo mero viver. Esse é o combustível que a anima e, para um ser racional, a vida não é mais do que um exercício de humilhações, uma vergonha que disfarçamos porque não suportamos a ostentação sem fim do acanhamento que tolhe a alma. O domingo não tarda a acabar e virá uma semana de afazeres. Não terei tempo de pensar nisso, reparo não sem alegria. Talvez seja por falta de tempo que perdemos o decoro, meditei, enquanto pensava no que iria fazer a seguir.

sábado, 30 de março de 2019

Resistência

A tarde desliza impudente, abre o seu caminho por entre as muralhas do dia e, como um rio quase seco, parece serena e melancólica. Como nos enganamos, pensei, perante estas paisagens bonançosas. Trazem nelas o rastejar frio das serpentes e uma ameaça de tempestade. O sábado trouxe-me um manto de inquietação, mas resisto impávido, calculando as horas que ainda faltam para que o dia acabe. Conto as pessoas que passam na rua, sigo-lhes os passos, o bambolear das ancas de uma ou outra mulher, o andar quebrado dos homens, ajoujados à inércia deste tempo sem destino. Um dia também eu gostei da exaltação das horas. Hoje rio-me dos exaltados que vendem sacos de promessas aos incautos que passam. Se tivesse tempo, passou-me pela cabeça, inventava um mitologia. Deuses e deusas, as suas obras e as suas desgraças, as pequenas vitórias e as grandes traições. És um caso perdido, sussurra-me a consciência maltrapilha. Quem quer saber de deuses se se pode entrar no supermercado? Levanto-me e preparo-me para sair. Há ainda alguém que me espera.

sexta-feira, 29 de março de 2019

Uma nuvem

Uma pequena nuvem macula a pureza azul do céu. Os dias crescem e trazem com eles punhais de fogo e um ondular trémulo da folhagem das árvores, pensei. Esta é uma Quaresma a anunciar um Estio de lástima e devastação. Depois de almoço, adormeci e acordei a cabecear, empurrado por um sonho que logo se furtou à memória. O meu velho anseio de escrever um longo poema sobre o passar das horas caiu da árvore onde, como frutos, os desejos se penduram. Medito nas coisas que tenho para fazer, enquanto oiço um arranjo para piano de uma peça de Bach entrecortado pelo cântico dos pássaros meus vizinhos. As orquídeas já floriram, constato, enquanto o tempo desliza por mim, sem que que as minhas mãos tenham força ou decisão para o parar. A nuvem desapareceu, Bach deu lugar a Mendelssohn e os pássaros calaram-se. Resta o anil dos céus e o que tenho por fazer. A eternidade é feita de pouca coisa.

domingo, 17 de março de 2019

Bavardage

Ainda tenho o hábito de ler jornais, já não em papel, mas digitais. Apiedei-me, por certo, das florestas ou, então, assumi-me como um moderno, mesmo que o não pareça. Os jornais, por um espírito de misericórdia, nunca deixam de me surpreender com o que me dão a conhecer. Um deles informa-me que os alunos portugueses querem educação sexual menos vaga e mais interessante e eu não sei como interpretar um desejo tão vago e tão pouco inesperado. Não me passa pela cabeça que currículo tornaria a educação sexual concreta e interessante. O mundo é um repositório de desejos que se cruzam e entrechocam, meditei sorumbático por me ter deitado tarde. Se se dá ouvidos aos desejos, nunca mais se há-de parar nessa peregrinação em busca do santo graal que há satisfazer a desordenação hormonal dos adolescentes. A tarde aproxima-se velozmente da noite. A escuridão há-de chegar e talvez em mim se ilumine a necessidade de tanta bavardage, para utilizar um termo francês e assim aparentar cultura. Não há idiotice que uma boa aparência não cubra.

sábado, 16 de março de 2019

Um bom conselho

Hoje dediquei o início da tarde a fazer compras. Nessa altura, quase não há gente nos hipermercados. Hipermercados, digo bem, pois vivo num concelho que tem cerca de três dúzias de milhares de habitantes, mas a que não faltam grandes superfícies, onde as nossas necessidades se vêem acolhidas e saciadas. Somos um concelho feliz, penso eu, com tanta liberdade de escolha para podermos escolher em tantos sítios diferentes as mesmas coisas. E não há ironia nas minhas palavras, até porque pude ir, numa dessas superfícies comerciais, à lavandaria levantar – e não lavar – a Nova Gramática do Latim, do Frederico Lourenço. O mundo tornou-se uma coisa bizarra, dirá o leitor. Não sou eu que irei desmenti-lo. Eu não sei Latim nem tenho esperança de o aprender, mas só a "Introdução à língua latina" do autor vale o investimento. E essa Introdução começa da melhor forma lembrando uns versos intraduzíveis da Eneida, onde Anquises, já morto, comunica a Eneias o destino futuro dos romanos. Ora uma gramática que começa com uma comunicação de um morto merece ser lida do princípio até ao fim, mesmo que não se perceba nada do que vem no meio. Eu sei, sou um caso perdido. Comecei a falar de compras de detergentes e batatas, e ainda não me calei, misturando gramáticas e mortos que falam, com concelhos despovoados e lavandarias onde se levantam livros. Vou ver se está a chover, um conselho que não havendo quem mo dê, dou eu a mim mesmo.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Glória

Esta indecisão que tolda as tardes de sexta-feira corrói o prazer com que o fim-de-semana se apresenta no horizonte. O mal das expectativas, ocorre-me de imediato, não é a sua realização, mas a velocidade assombrosa com que se cumprem, para logo entrarem no território inexplorado do passado. Não és particularmente virtuoso, diz-me a consciência, mancomunada com o espírito deste mundo. Esse desejo de parar o tempo nos dias de ócio ainda te há-de perder. Eu encolho os ombros e viro as costas à consciência. Perdido estou eu há muito. Naufrágio por naufrágio, ao menos que seja em dia de descanso, remato a controvérsia e mergulho no intrincado raciocínio de um pensador que faz da obscuridade a porta por onde entra para o reino da glória. As sextas-feiras são pouco propícias, comprovo-o de imediato, para conviver com coisas obscuras e fecho o livro, deixando o pensador encerrado na reputação que é a sua. A minha única glória, constato miserável, era aquela que, na infância, alcançava, se a alcançava, num jogo da Majora, em que lançava dois dados para poder mexer a minha marca, numa corrida cheia de precipícios, infernos, purgatórios, mortes e aquilo que já não me lembro, para chegar à casa da Glória, onde encontrava sentado o tal pensador cujo livro fechei há pouco, e que eu não sabia que era pensador e um amante de coisas obscuras. A vida está cheia de surpresas e de encontros inesperados, concluí.

quinta-feira, 14 de março de 2019

Serenidade

Na conversa, depois de almoço, alguém, que nunca vira dado a confidências, diz: tirando uma ou outra paixão amorosa, e mesmo essas de curta duração, nada no mundo me provocou esse estado de efervescência a que se dá o nome de paixão. O vinho não era mau, pensei ao ouvir essa declaração inusitada de serenidade. Não tenho propensão para a febre, acrescentou, e quando ela se torna iminente tomo um antipirético. Não me ocorreu perguntar qual. O início da tarde fazia já pressentir as primeiras florações do tempo quente e talvez isso me tenha feito sorrir da ironia. As paixões são exercícios difíceis, pensei, de consequências muitas vezes funestas. Na rua, passava gente desapaixonada, carros com destino obscuro e um cão vadio. Um pombo pousou no chão e caminhava plácido e tranquilo, batido pelo vento leve vindo da serra. Este desapaixonamento pelas coisas do mundo tem a vantagem de evitar certas calamidades que os corações fervorosas não hesitam em espalhar quando uma causa os abrasa, meditei, enquanto bebia o resto do vinho e a porta abria-se para dar entrada a um casal tocado pelo espírito primaveril.

quarta-feira, 13 de março de 2019

Encantamento

Estava a arrumar uns livros antigos. Entre eles havia dois romances, comprados em segunda mão, da George Eliot, Rómula e Encantamento nas Trevas (Silas Marner), ambos da Livraria Romano Torres, edições dos anos cinquenta do século passado. Quando compro livros usados procuro sempre marcas de anteriores proprietários, como se esses sinais os dotassem de uma sobrevida e os tornassem mais dignos de serem lidos. Em Rómula havia uma dedicatória datada de 4 de Agosto de 1954: Recordando mais um dia 4, o “nosso dia”, ofereço-te esta pequena lembrança, a tua, e seguia-se a assinatura. E esta marca do passado, de um passado no qual eu nem sequer existia, alegrou-me a tarde e devolveu-me um sentido de realidade que o dia se encarregara de me levar. Essa realidade, porém, resvalou de imediato para uma longínqua memória. Os primeiros livros que vi da Romano Torres, ainda criança, eram vendidos numa mercearia, onde, ao lado das montras das fazendas e das utilidades domésticas, havia uma com livros para crianças e adultos. Por vezes, o passado tem destas coisas. Habita nele uma perfeição que o tempo dissolveu, como por certo terá dissolvido o laço mais-que-perfeito entre quem ofereceu e quem recebeu o livro da Eliot. A noite aproxima-se exposta no escaparate de uma montra de cristal, trazendo no seu bolso um encantamento nas trevas.

terça-feira, 12 de março de 2019

Da insignificância

Olho o calendário com um gesto inconformado de desdém. Março vai já no décimo-segundo dia. Irrompeu inexorável pela malha crespa do tempo e, não tarda, deixa-nos à porta translúcida de Abril. Não há assunto no mundo mais glorioso que o passar do tempo, que, com as suas garras de algodão, vai abrindo um serralho de rugas onde vivem, encerradas e esquecidas, as antigas esperanças. Fico fascinado com as aliterações em erre da última frase, mas logo um desânimo sobrevém e me devolve ao raio da realidade, e assim, sem vergonha, continuo a aliterar. Muito gostaria de ter, juro-o, assuntos elevados sobre os quais discorrer e partilhar com os outros a indústria da minha sabedoria, mas não tenho propensão para a melancolia meditabunda e raramente me ocorre alguma coisa digna de nota. És frívolo, digo-me a mim próprio. Com tantos assuntos importantes, prossigo a acusação, e preenches o espaço e o tempo com bagatelas e minúcias que nem ao mais indigente dos mortais ocorreriam. Se fosse Homero, respondo-me, escreveria uma Ilíada e uma Odisseia, mas não sou. Basta-me a babugem da insignificância.

segunda-feira, 11 de março de 2019

Um fardo

É um fardo que se leva aos ombros, pensei, enquanto me dedicava a um jogo de estatísticas e comentários avulsos sobre dados que tinha ajeitado não sem critério. É deste modo ínvio que os mortais consomem a existência, enquanto a tenaz do relógio não deixa de apertar o pobre pescoço da vida. O telemóvel não pára de piscar, insiste em ter alma. Comunica-me que hei-de ter uma reunião. Agradeço, mas não me sinto obrigado. A vida moderna é um desastre ocioso, de tal maneira que as ociosidades se tornaram um exercício duro e implacável. Talvez fosse a isso que, noutros tempos, se referia a ambígua expressão de alegria no trabalho. Uma porta bateu com violência e depois o silêncio cresceu sobre mim, para me perder e deixar-me a falar só comigo mesmo. Por vezes, embora raras, chego a concordar com o que me digo e tenho uma fundada inveja daqueles que estão sempre de acordo consigo mesmos. Deles será o reino dos céus, presumo.