sábado, 9 de novembro de 2019

Quantos-queres

Armada com o origami preso aos polegares e indicadores, a minha neta mais velha, apanhando-me distraído, perguntou-me quantos quer? Sete, respondi-lhe inconsciente das consequências, e ela lá manipulou o dispositivo de papel para trás e para frente de modo a que o número cabalístico se cumprisse. Que cor quer? Verde, repliquei incauto. Ela desdobra a maquineta e diz: feio, o avô é feio. É grave, pergunto-lhe. Não, mas o avô é lindo. Esta minha neta tem uma propensão indisfarçável para a correcção social. Eu agradeço-lhe, mais vale uma bela mentira do que sentir o estilete da verdade a sair-lhe da boca. Está uma tarde lacrimosa, batida pelo vento, propícia a um stabat mater. Levá-las a andar de bicicleta ou de hoverboard na rua está fora de causa, mas elas não se importam. Quem paga são as folhas A4, vítimas de uma súbita inclinação para o desenho. Daqui a pouco chega o outro neto, mas esse ainda não quer papel para dar vazão à veia artística, ocupado que está em consolidar os passos para poder explorar a casa e semear o chão com livros e CD. O sábado escorre em direcção à noite, para desaguar num domingo de inverno, imagino.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O terceiro-excluído

Pensava que o terceiro estava excluído, mas não é verdade. Afinal o velho princípio do terceiro-excluído é contingente. A revelação aconteceu inopinadamente, como todas as verdadeiras revelações, ao abrir a conta da água e, por curiosidade mórbida, ter olhado para as parcelas que a compõem. Contas de água, constas de saneamento e contas de terceiros. Quando menos se espera descobrimos que o que pagamos são formas de solidariedade muito activas e capazes de sacrificar os velhos princípios lógicos em nome duma luta contra a exclusão. Alguém menos caridoso dir-me-á que já devia ter há muito lido a factura para ver o que dela consta. É verdade, mas nem tenho propensão para esse tipo de literatura nem sou excessivamente cioso das coisas que o mundo me impinge. Sofro-as sem grande protesto ou particular curiosidade. Um caso perdido. O que vale é que hoje é sexta-feira, a noite caiu e eu espero que o silêncio se propague pelo mundo que me envolve. Depois hei-de sentar-me e, sabendo que não passo do terceiro que é excluído, bendirei quem tal exclusão ditou.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Desengano

Por vezes, vejo num jornal ou numa revista a fotografia de uma mulher e penso que poderia apaixonar-me por ela até que o coração se desengonçasse e o peito rasgado oferecesse ao mundo o espectáculo do amor, pois o mundo nunca o viu, a esse castelo derrubado pelo tempo, a essas ruínas onde crescem ervas daninhas, as entranhas reviradas e o sangue seco e malcheiroso de tudo o que é sentimento. Quando acordo, a fotografia lá está, espera o meu olhar sem a súplica do meu amor. Olho-a e na legenda descubro que a beleza daquela mulher feneceu há muito e o seu corpo foi devolvido à poeira de onde veio. Depois procuro outro retrato da mesma mulher e ao descobri-lo vejo o amor a desvanecer-se ali mesmo, na falta de coerência com que os fotógrafos manejam a câmara, semeando ilusões e desenganos, apenas porque o tempo passou e lhes falta o talento para apagar os vestígios do crime. É assim que o amor está pendente do acaso e da pérfida desatenção do retratista. Não faço ideia por que razão o autor me faz dizer estas coisas, pois o nosso contrato tinha uma cláusula, escorada num direito a rescisão, que o impedia de me dar uma vida privada ou fazer-me falar de coisas para as quais o meu ser não foi criado.

Desinscrição

Em cima da secretária está uma ficha de inscrição. Por certo irei inscrever-me em qualquer coisa, pois assim determina o fado. As pessoas gostam muito de pertencer e não haverá caminho mais fácil para ser parte do que inscreverem-se. Inscritas, logo serão chamadas e o desejo diz-lhes que hão-de ser escolhidas. Olho para a rua e vejo um sol tímido com vergonha de refulgir nas paredes, avisto as folhas agitadas pelo vento nas árvores que por aqui há. Em tudo o que observo há uma tristeza, uma hesitação, como se a realidade não soubesse que caminho tomar na encruzilhada que um deus colocou diante dela. Não tarda terei de abandonar o lugar onde estou para ir para outro onde me esperam. No caminho não há encruzilhadas, apenas rotundas e cruzamentos. A encruzilhada encontrei-a há muito e escolhi o caminho errado, mas nunca sabemos se, mesmo numa encruzilhada, há um caminho certo. O melhor é preencher a ficha e inscrever-me antes que seja tarde, embora eu pratique a despertença e de tudo me desinscreva. Parece que hoje não chove. Uma pena, as barragens precisam de água como eu de me calar.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Errata

Sentei-me para fazer alguma coisa que me alivie do facto de estar vivo. É preciso não levar este tipo de declarações a sério. Quando se escreve um texto, e quando ele é em si mesmo irrisório, temos de começar de alguma maneira. O pathos do começo pode ser uma coisa deplorável, mas se eliminássemos do mundo tudo o que é deplorável, ficaríamos com quê? Comigo não. Sentei-me, dizia, mas esquecera-me que hoje é quarta-feira, o dia em que o grupo de baile da escola vizinha aproveita para a sua sessão de reviver o passado em Brideshead. Cada um tem o Brideshead que pode. Essa é a justiça do mundo e não há outra, foi o que me ocorreu. Estou perturbado. Andei dois dias para me lembrar de uma palavra para título de um singelo documento e, por mais que porfiasse, a memória nunca me deu o que lhe implorava. É uma senhora caprichosa e recusa-se a conceder os seus favores ao primeiro idiota que apareça a cortejá-la. Quando já não necessitava da palavra, ela caiu-me do céu. Errata. Era por esta a palavra que suspirava há dois dias. Que faço agora com ela? O melhor é fazer uma errata, escrever onde se vê (a minha fotografia) deve-se ver (uma outra fotografia corrigida e melhorada), e depois distribuí-la por aí. O grupo de baile silenciou-se, já tem que chegue da sua Brideshead, ou talvez não. O problema dos seres humanos é que eles só aparecem no lado a substituir da errata. Se não os outros, pelo menos eu.

terça-feira, 5 de novembro de 2019

A verdade pela mentira

Acabei de comprar um presente para uma das minhas netas. Já lhe tinha dito várias vezes que não lho daria e ela sempre fingiu acreditar. O avô finge, a neta finge e é nessa ficção que se aprende a lidar com a realidade. Talvez um dia estes jogos em que se diz a verdade através da mentira sejam proibidos e um avô terá de dizer brutalmente a um neto que já lhe comprou o que ele deseja, impedindo o divertimento que ensina a ver para lá das aparências, a lidar com a frustração e, acima de tudo, a ser civilizado ao aprender que o prazer está na incerteza e no diferimento do gozo. Enquanto pensava nisto ia olhando pela janela e via a luz diminuir lentamente como se estivesse ainda na sua mão evitar a chegada da noite, adiá-la para que ela venha festiva e seja o mais desejado dos convidados. Também a natureza ama a verdade dita sob a forma da mentira e, por isso, ela é tão enigmática para aqueles que escondem a estultícia na proclamação que são muito directos e manejam a verdade como se fosse um punhal a cravar nas costas distraídas do próximo. Quando vir a minha neta e ela me falar do presente, dir-lhe-ei “nem pensar” e ela há-de pensar que tudo se encaminha para o seu destino, enquanto diz com ar resignado “está bem”.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Incongruência

As persianas tamborilam nas calhas por onde correm, tocadas pelo trote do vento, inquietas e temerosas de alguma tempestade que venha tirá-las do sossego bonançoso em que vivem. Uma réstia de sol perfura o negro das nuvens para desabar na humidade das paredes e reverberar, enchendo de luz o campo de jogos e de esperança os jogadores que se batem com o ardor da sua inocência culposa. O que escrevo é de tal modo exaltante que adormeci depois de escrever a última frase, para acordar agora com uma dor no pescoço. Nem a mim o meu verbo anima. Apesar das bolas continuarem a saltitar, a luz de há pouco recolheu-se para que as paredes perdessem a reverberação que lhes dava alma e embaciadas permanecessem na quietude que é a delas. Com um tema destes não admira que adormeça de novo antes de dar por terminado este texto. Pessoas há que têm muito para contar, as suas vidas são aventurosas e elas heroínas que hão-de permanecer na memória dos vindouros, mas eu quanto mais vivo menos tenho para dizer, apesar do palavrório que me ataca aqui ou ali. O mundo é feito destas incongruências e se não é o mundo, sou eu. A palavra incongruência brilhou dentro de mim e, por instantes, entrevejo a verdade do que sou. Tocaram à campainha. Levanto-me e vou espreitar. Não era ninguém ou talvez fosse eu.

domingo, 3 de novembro de 2019

Um rio brando e sem água

A solidão cresce como uma sombra, mas não há coisa que provoque mais deleite, quando pelo Verão o sol se abate sem piedade sobre o corpo, do que uma sombra. Ao acabar esta frase o CD que estava ouvir calou-se e eu pensei que o pathos que nela se manifesta não é meu mas da música que me envolvia. Agora que o silêncio voltou com o seu império de mundos possíveis, a frase perdeu o sentido e eu já sou outro, sem ter deixado de ser quem era, sem chegar a ser alguma coisa. Os pássaros que esvoaçam diante da minha janela ignoram a sua fragilidade. Voam e poisam sobre os muros das varandas. Os homens pelo contrário sabem alguma coisa e julgam-se frágeis por possuírem a ciência de que vão morrer. Puro engano, a fragilidade está nesse constante mudar, nesse deixar de ser contínuo, nesse nunca chegar a ser. A morte livra-nos de tudo isso, menos das anáforas que caiem sobre o texto com a altivez de uma prótese. O domingo corre triste, um rio brando e sem água. Ao longe, não se passa nada e, por isso, nada tenho para contar. Volto ao CD e à música que desenha uma casa de solidão no campo raso da alma. É domingo.

sábado, 2 de novembro de 2019

Memórias no Dia de Finados

Nos últimos anos não há Dia de Fiéis Defuntos que não me recorde de um poema que se cantava na adolescência para fingir que se era rebelde. Não me lembro do texto completo, mas apenas de alguns versos que ficaram na memória como um refrão: Era dia de finados, / E os mortos muitos animados / Lá andavam a dançar. / Tudo estava forrado a preto, / No centro havia um coreto / Feito dos ossos da testa. E o cântico continuava neste tom até que nos cansássemos e, desconfio, nos reconciliássemos com a nossa natureza mortal. Estas recordações não são um desrespeito aos que se foram, mas uma mensagem que recebo de mim mesmo para que não me esqueça que mais do que rir da minha morte devo rir-me de mim e das coisas que me atravancam a memória. Hoje já fui às compras e, devido às inutilidades que me povoam o cérebro, esqueci-me de algumas coisas que tinha de comprar. Valia mais ter feito uma lista do que andar por aí a alvitrar sobre o que se passa num coreto forrado a preto.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Os Santos e os mortos

É com desconsolo que olho para as broas dos Santos. Em tempos eram para mim motivo de perdição eterna. O pecado da gula atirava-me sem freio sobre elas, arrastando-me para o mar das múltiplas espécies que por aqui se cultivam. Depois a vesícula começou a queixar-se e a satisfação do desejo foi sendo diminuída até proporções frugais. Liberto do órgão malfazejo, não me livrei da frugalidade. Os Santos deixaram de ser o que eram. Hoje passei duas vezes perto do cemitério e não faltavam pessoas com pequenos ramos de flores na mão, nem sempre crisântemos, para homenagear os seus mortos. Também eu tenho os meus mortos, mas não vou ao cemitério, nem lhes compro flores. Trago-os nos meus genes e nos meus pensamentos. Com alguns, converso. Falo por eles e falo por mim. Eu sei o que eles me diriam e eles, estou certo, sabem o que lhes estou a dizer. Talvez devesse também ir amanhã ao cemitério, não por eles, mas para que as tradições não morram por falta de comparência. Sei que não vou, até porque espero o meu neto. Um dia, se me for possível, falar-lhe-ei dos meus mortos, que hão-de também ser os dele.

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Fine tuning

Apesar de tudo, os dias passam rapidamente. Amanhã já é dia de Todos-os-Santos e daqui ao Natal o tempo correrá à desfilada e eu, como um cavalo enlouquecido, há quem me ache um burro demente, correrei com ele ou arrastado por ele num turbilhão de coisas insensatas. De o pensar, estou já cansado. Correr não é a minha especialidade e cheguei àquela época em que preferia avançar para trás, mas não muito, já que não teria paciência para mim se tornasse ao que fui. Seria penoso. Escureceu há muito. Para surpresa minha, ao final da tarde uns adolescentes quiseram falar comigo sobre os argumentos do fine tuning e do mal, com derivações sobre o determinismo da conduta humana. Poderia pensar que as coisas não estão tão críticas quanto se anuncia. Provavelmente, não estarão.  Recebo uma mensagem no telemóvel. É um convite para uma masterclass de Tequila & Mezcal e começo a pensar que o argumento do fine tuning não será assim tão disparatado. Salva-me amanhã ser dia santo de guarda, um dia onde a santidade se multiplica, como se o regulador destes festejos, cansado, tivesse cedido à paixão da hipérbole. Vou roubar uma broa à cozinha.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Retorno do mesmo

Na escola aqui ao lado, o seu grupo de baile persiste em ensaiar canções que fizeram furor há mais de vinte, trinta ou quarenta anos. Esta obstinação pelo passado não deixa de ser comovente e faz-me lembrar as pessoas que, quando era adolescente, tinham a idade que eu agora tenho. Também elas estavam presas a músicas incompreensíveis, sons que pareciam vir de um planeta distante, e nas quais tinham um prazer que era para mim um enigma. A ideia do eterno retorno do mesmo acabou de me tentar. Resisto à tentação, enquanto, vindo de fora, oiço menina que estás à janela com o teu cabelo à lua. Hoje já não há meninas à janela e os cabelos à lua, também andam ao sol e à maresia do crepúsculo. Dói-me a garganta, recorro a um spray. Logo tenho uma cerimónia à minha espera, embora eu não a esperasse, nem a ela nem a qualquer outra coisa. O carro avariou-se de manhã e tenho de ir ver se já o posso ir buscar. Uma chuva fina diante da janela faz-me lembrar o fumo que se evola dos carros dos assadores de castanhas, mas é só água a descer dos céus. Uma bênção, oiço dizer.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Desvios e mistérios

Hoje li um poema que começa assim Já o gargalo das pedras adormece e fiquei mais tempo do que devia sem saber o que fazer com aquele verso. O poeta, dir-me-ão, pratica o desvio porque esse será o seu ofício. O meu, se é que se pode chamar ofício, fica-se pelo perscrutar da noite, olhá-la no fundo dos olhos para que surpresa revele os seus segredos. Ela porém sorri e olha-me com benevolência e segue o seu caminho, respeitando as estritas regras da gramática que governam o dia e a noite, a passagem das semanas, o devir compassado das estações. O mistério da noite é como o das palavras. Compramo-las presas a um significado, mas se as olharmos longamente, começam a emancipar-se e tornam-se mariposas descuidadas que o vento, à falta de peso, arrasta para onde quer. Hoje escrevi centenas ou milhares de palavras, todas elas pesadas de sentido, todas elas inúteis como uma bóia de salvação nas areias do deserto.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Serei maniqueísta?

Um comentário insinua que estou a caminho do ultra-romantismo. Talvez esteja mais perto do solipsismo mas a carapuça do ultra-romantismo também não me há-de ficar mal. A culpa, assevero-o, não é minha, mas do autor destes textos que teima em fabricar-me deste modo. Eu bem me inclino para os factos e acontecimentos, mas ele, com uma rigidez inesperada, tende a cerrar-me dentro de mim mesmo, fazendo-me crer que a realidade é uma coisa pesada e pouco benévola. Desconfio que pretende fazer de mim um discípulo de Manes e ele mesmo será um cátaro, mas os seus desígnios e pensamentos são-me insondáveis. Se ele quer que eu seja um solipsista ou um romântico ou um maniqueísta, o que posso fazer contra a prepotência da sua vontade? Um dia fosco o de hoje. Olho pela janela e vejo sombras a caminhar na avenida e os ciprestes que abundam por estes lugares. Um silêncio nega a realidade, que logo acorda na figura de uma mensagem a informar-me que alguém partilhou documentos comigo. Um dia ainda acredito que sou maniqueísta e que toda a realidade é fruto de um demiurgo pouco frequentável. Que me salvem da heresia, é aquilo que peço, mesmo que essa seja a vontade daquele que me cria.

domingo, 27 de outubro de 2019

Distâncias

Ontem estava um belo dia de sol. Passeei no jardim da Parada com o meu neto ao colo, depois de ele ter sido submetido à provação de comprar a roupa com que vai ser baptizado. Como os baloiços do parque infantil estavam ocupados e havia gente à espera, andámos a mexer nos troncos das árvores. Desde cedo se deve compreender a rugosidade do mundo e que uma parte da beleza vem dela. Depois, cansado de experimentar a realidade, trocou-me pela mãe. Hoje não tenho neto, nem estou em Campo de Ourique, nem está sol. Oiço o ronco de uma moto, cujo proprietário deve contribuir para que os portugueses tenham o QI mais baixo da Europa Ocidental, e contemplo a luz flébil que se desprende do céu, como se uma elegia descesse das nuvens. Aguardam-me algumas horas de escrita de coisas inúteis, uma especialidade em que tenho o meu melhor desempenho. Tornei-me um especialista em inutilidades e, fique claro, não é pretensão minha possuir outra qualquer especialização. Podia ir ler a primeira elegia de Duíno, à qual há dias alcunhei sub-repticiamente de ode, mas há coisas muito mais inúteis que aguardam com dentes afiados o meu tempo. É a distância que vai da ode à elegia.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Da circularidade semanal

Está a chegar o fim-de-semana e já o vejo a escoar-se, perdido nem se sabe como. As semanas são círculos viciosos, em que se parte de uma sexta-feira para chegar a outra, sem que um sentido para tudo isto se desenhe. Quando oiço falar no território encantado da infância, apesar da expressão me provocar uma certa náusea, lembro-me sempre daqueles anos longínquos em que não havia semanas, com os seus dias fastos e nefastos. Lá em baixo, no parque infantil, um bando de crianças grita. Parecem felizes e, por certo, ainda não descobriram que existem semanas, com a sua corveia e a ilusão de algumas horas de liberdade, para que o jugo férreo pareça mais leve. Eu sei que a civilização tem um preço, as comodidades outro e que nada cai do céu. Isso, porém, não nos deve impedir de increpar a ordem das coisas ou de maldizer aquele descuido de Eva e Adão que nos atirou para a deplorável situação de à sexta-feira já sentir o odor mascavado da segunda. O sol ainda brilha, mais intenso que nos últimos dias e o arvoredo perfila-se imóvel com os seus dedos de azougue voltados para o céu. Bem podia ter evitado o pathos da última frase, mas fui obrigado a dizê-la.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Penúria de realidade

Dentro de mim há uma enorme sombra. Faço dela a casa de onde raras vezes saio. Vejo o mundo por uma janela e aquilo que nele se passa cada vez me interessa menos. Demorei muitos anos a ligar a comédia humana ao que Aristóteles disse da comédia clássica, mas isso são contas de outro rosário, pelo qual já ninguém ora. O dia passou e é o que tenho a dizer dele. Não se trata de escassez de imaginação, mas penúria de realidade. Vivo cercado de pessoas cheias de realidade. Habituei-me à condição de ilhota nebulosa perdida num oceano vigoroso, a transparecer certezas e particular inclinação para a exuberância da felicidade. Mares destes, sempre navegados, cansam-me. A noite chegou, uma ambulância cavalga pela estrada em direcção ao hospital e tanta realidade é insuficiente para me sequestrar à ruminação que crepúsculo abriu em mim. Já é tarde, digo e volto os olhos para o lugar onde a escuridão nasce.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Mudar de vida

Cheguei a casa quando o crepúsculo já se anunciava no descolorido do sol. Sentei-me e os meus olhos embateram numa tradução inglesa de um livro de um pensador alemão contemporâneo. Os alemães são particularmente competentes para encontrar títulos dramáticos que soam ora como uma sombra arremessada pelo infinito, ora como um imperativo a que se deve obedecer, embora não se saiba porquê. Este pretende resumir a religião através do imperativo You must change your life. Peguei no livro, folheei-o lentamente e pensei que mais que mudar a minha vida, o acertado era ter mudado de vida há muito. Há equívocos que se tornam numa condenação perpétua. Os pássaros meus vizinhos sublinharam o meu pensamento com um trilo equívoco e eu sorri agradecido. As vozes lá em baixo calaram-se de súbito, como se um anjo tivesse poisado e a sua beleza fosse sentida como a presença do terrível, tal como nos ensina certa ode. Destemido, o vento empurra os ramos do arvoredo, desenhando murmúrios coloridos na praça vazia. Mudar a sua vida, que penosa injunção para aquele que se prendeu na teia dos seus hábitos.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Sobre as oliveiras

Na escola aqui ao lado há umas quantas oliveiras. Vejo-as envoltas em folhas verde cinza, indiferentes ao vento, esquecidas dos anos. Lembraram-me do tempo em que por aqui ainda era fácil, ao caminhar sem destino, ser invadido pelo cheiro que se desprendia dos lagares. Estes foram morrendo uns atrás dos outros, como pessoas velhas e sem família a que já ninguém conhece. Levaram com eles os aromas quentes que anunciavam o azeite novo, abriam o caminho que ia dos santos ao natal, e deixaram órfãs as oliveiras que escaparam à voragem sem medida dos homens. Conheci oliveiras que tinham, supunha-se, mais de mil anos. Imagino-as indiferentes ao espectáculo da história, ao cortejo de esperanças e desgraças que tocaram esta terra. É possível que já tenham sido arrancadas, levadas pelo despeito daqueles que não têm mais que uma vida breve, risível, impotente para enfrentar o tempo e enganá-lo numa faena de arte consumada. Talvez o touro que os homens lidam nas arenas não seja outra coisa senão o tempo, mas hoje tornou-se perigoso falar de touros e de lides, pois todos têm medo do tempo, dos cornos que ele alça para nos varar, pobres peões de brega.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Um desajustado

Não deixo de ser um enigma para mim mesmo. Gostei da frase mal surgiu não porque ela refira a minha natureza especial mas por ser um exercício inócuo de banalidade. Não há quem não se ache enigmático aos seus próprios olhos, embora os outros vejam com acintosa transparência, e não menor perfídia, aquilo que o próprio julga ser a obscuridade das obscuridades. A nossa verdade reside nos olhos dos outros. Em vez de enigmático pressinto que sou anacrónico. Lancei a mão a três CD para me acompanharem a tarde. Não escolhi, deixei que o acaso revelasse aquilo que eu quero ouvir. Um CD de música Sufi, outro de música tradicional japonesa e para completar um outro de canções de amor trovadorescas do norte de França. Só um desajustado poderia ser contemplado com tal combinação. Estou fora do tempo e do lugar. Poderia ter sido um trovador ou então um monge em busca da realização espiritual. Só não posso ser o que sou, que é a única coisa que posso ser. São difíceis certas segundas-feiras depois do almoço.