sábado, 24 de maio de 2025

Devolvam as mudas

Tenho um contencioso inultrapassável com o acordo ortográfico de 1990. Objectivamente, parece-me uma causa perdida. É só uma questão de tempo e a ortografia vandalizada será a única a ser conhecida pelos escreventes portugueses. Como não sou linguista, não tenho argumentos dessa ordem para contrapor, mas custa-me que o antigo espectador se tenha tornado num cruel espetador. Depois, as coisas vêm por arrasto. Quando se transforma a concepção em conceção, abre-se o caminho para que o conceptual se torne concetual. Estamos perante um terrível exemplo de perseguição da deficiência. As consoantes mudas, pela sua mudez, foram abolidas, excluídas. Quem o fez não percebeu uma coisa central: a figura estética das palavras. As letras que nelas estão formam uma totalidade visual. Quando se amputam as consoantes mudas, altera-se drasticamente a palavra escrita, pois elas têm uma natureza visual, para além de suportarem emissões sonoras. As consoantes mudas são o vestígio da história da língua, um vestígio inscrito na própria língua. Talvez já o tenha escrito aqui, mas a abolição dessas consoantes é um acto idêntico ao que seria destruir as ruínas históricas, os vestígios do passado que já não têm qualquer utilidade social. A destruição terá começado em 1911 na simplificação ortográfica. O jacobinismo da época não esteve com meias medidas e, com o vão desejo de, ao simplificar a ortografia, tornar a escrita e a leitura mais fáceis a um povo de baixo QI (só podia ser isto o que os simplificadores pensavam dos portugueses), trataram de desfigurar as palavras. Não contentes, os jacobinos dos finais do século passado acabaram a obra. Custa-me muito ver a velha palavra acção – descendente da actiōne latina – transformar-se em ação, que já muitos leitores pronunciam como a São. Devolvam as consoantes roubadas às palavras a que pertencem. Uma questão estética. Sei que isso não acontecerá, mas há que não esquecer a barbárie. Trata-se de barbárie, pois o que se esconde através dos actos dos reformadores ortográficos é o desprezo pela antiguidade clássica, de onde a nossa língua provém, mesmo que por vias populares.

1 comentário:

  1. Meu caro, aqui do Pindorama consumo seus Camilos, Anteros, Baruchs, e mesmo tu, que és torrente. Acho um charme essas consoantes, mas aqui as gírias e os vícios de linguagem, por ser um país continental, são evidência das nossas origens, em certos lugares pronunciar um português correto é tido como pedante, de mal tom. A língua sendo esse músculo maleável, pode nos trazer, se abrirmos conceções, novas cores, concordo que a substituição de uma palavra por outra podada é trágico, qual solução? Poderiamos fazer como os japoneses, que dividem seu idioma de acordo com a necessidade?

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