Apesar de tudo, sou um cidadão comprometido. Voto desde as primeiras eleições do regime em que vivemos. Só uma vez, em todas estes actos eleitorais, deixei de cumprir o dever de votar. Sei que foi numas eleições autárquicas, mas já não sei quando nem a razão. Não terei chegado a tempo. Pelo menos é essa sombra que dança na minha memória. Como é habitual, fui votar a meio da manhã. Uma coisa que me espantou foi ver pessoas que se dirigem ao local de voto com um traje guardado para as coisas importantes. Têm já uma certa idade e talvez tenham vindo da ou vão à missa dominical, mas é possível que não. Contudo, a generalidade dos eleitores estava vestido de modo habitual, para um domingo tido como dia de descanso. Duas leituras são permitidas. Por um lado, olhar para aqueles que se vestem de modo formal para ir votar permite perceber que vêem no acontecimento algo de excepcional, talvez como fazendo parte de uma liturgia cívica digna de um reconhecimento superior a outros hábitos da vida social, algo que em tempos foi um bem escasso. Por outro, o facto de as pessoas integrarem o voto nos seus habitus sociais de domingo, com a trivialidade que lhes está associada, torna patente que essa participação faz parte da própria vida, não como um caso extraordinário, mas como decorrente de uma vida normal, em que pessoas, comprometidas minimamente com a comunidade, escolhem um caminho para esta. Da janela do meu escritório vejo as pessoas dirigirem-se para a assembleia de voto. Só não vejo a mesa onde votei porque as paredes exteriores do pavilhão me impedem de ver o que lá se passa dentro. Neste momento, há mais eleitores a virem de lá do que a irem. Já falta menos de uma hora para as urnas fecharem. É o tempo dos retardatários, cujo voto tem o mesmo valor do que os que votam mais cedo. Seria interessante o voto ter um quociente de valorização conforme a hora em que o eleitor vai votar. Contudo, nem tudo o que é interessante é bom. Mal abrissem as urnas, as diversas militâncias partidárias estariam à porta, o que poderia provocar engarrafamentos eleitorais. Foi para evitar esse problema que o legislador decidiu que qualquer voto – independente da hora – teria o mesmo valor. Passam, agora, três retardatários. Uma vai apressada, quase corre. Um sol triste rompe o cerco das nuvens. Estamos em Maio, mas a Primavera ainda não foi um primeiro Verão.
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