A praceta aqui em baixo silenciou-se. O bando de adolescentes guardou a bola e foi para casa. Fiquei agradecido. Assim, nesta ausência do estilete do ruído, posso meditar a passagem quase inaugural de um dos romances de Julian Green, Partir avant le jour. Traduzo: Escrever não importa o quê é talvez o melhor meio de abordar os assuntos que contam, de ir ao mais profundo pelo caminho mais curto. Dir-se-á simplesmente o que passa pela cabeça, ao sabor da memória. Também eu escrevo não importa o quê, mas o resultado nunca é ir ao mais profundo. É nisso que medito, a constatação de uma falta. Talvez não tenha memória. Talvez me falte profundidade. Ou, então, a minha profundidade é muito superficial. Isto pode ser um falso dilema. A razão pode não ser a falta de memória nem de profundidade. Posso achar obsceno revelar o que vai no meu abismo interior. Por pensamentos destes, descubro-me deslocado no tempo, anacrónico. Tudo terá começado com o nudismo. As pessoas vão para certas praias para andarem despidas. A seguir, considerando que o exercício era irrelevante, começaram a trazer as peripécias da sua vida para a praça pública. Agora – mas este agora pode ser já antigo – o exercício é o de revelar a interioridade, desocultar a profundidade, não apenas a dor, mas também o mal praticado. O mundo tornou-se um confessionário. As televisões, as redes sociais, os podcasts. Enquanto a Igreja Católica – pelo menos, no mundo ocidental – vai definhando, a prática da confissão universaliza-se. Cada um quer mostrar a profundidade que tem, as dores que sofreu, o mal que praticou. Imagino que as mesmas pessoas que um dia abominaram a confissão no segredo do confessionário, a pratiquem agora na praça pública. Que razão as moverá? A confissão religiosa colocava-as perante o errado, que como tal era reconhecido para ser perdoado. Agora é mostrado não para ser perdoado pela sociedade, mas para ser reconhecido como marca de glória. A exposição pública da interioridade é a glorificação da gesta do indivíduo, é o momento em que transforma em grandeza aquilo que foi vil. A confissão pública transforma o vilão em herói. O melhor, penso, é que se evitasse, a todo o custo, ir à profundidade – pelo menos publicamente – seja por caminho curto, seja por um longo. Poupar os outros da nossa interioridade deveria ser um imperativo. Categórico, como o de Kant.
A profundeza estará, talvez, no que o eu lírico não diz?
ResponderEliminarTalvez. É uma hipótese.
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