quarta-feira, 2 de julho de 2025

Ajustes e desajustes

Fechei a janela e o barulho da rua desvaneceu-se. Aqui, onde me encontro refugiado, as temperaturas são-me favoráveis. Até os olhos que esbraseavam caíram na rotina e deixaram de ser o prenúncio de um fim do mundo pelo fogo. Agora são apenas olhos, um pouco cansados, talvez a precisar de serem revistos – coisa que acontecerá em breve – para ajustar as lentes. Aliás, a partir de certa altura da existência, não são poucas as coisas que precisam de ir sendo ajustadas, mas nem sempre a tarefa é tão fácil de realizar quanto a afinação dos olhos. Se se pensar bem, a vida começa sempre em desajuste: são necessários muitos e muitos anos para se chegar a alguma precisão. Alcançada esta – quando é alcançada –, logo vem a hora em que as coisas começam a desafinar-se. Então inicia-se a saga do recurso aos afinadores. Estes são legião. Tenho passado estes últimos dias na companhia de um livro de um dos mais célebres filósofos do século XX – célebre por boas e por más razões. Reconheço, na obra, elevadíssima engenhosidade na sua fabricação, mas há qualquer coisa que me irrita. Trata-se de uma espécie de batota sub-reptícia. Aparentemente, o autor estaria comprometido com a verdade, mas o que se percebe – ou eu percebo, devido a uma mente enviesada – é uma preocupação com a persuasão de um certo auditório, composto pela elite intelectual, explorando estados de alma pouco razoáveis. Há, para falar segundo as categorias de Aristóteles, um excesso de pathos, o recurso a emoções, ainda que refinadas, de acordo com o auditório. Dito de outra maneira: há um desajuste entre a enunciação do que se pretende e aquilo que efectivamente se pretende. Isto, porém, é uma suspeita – muito provavelmente injusta –, resultado das coisas que se vão desafinando na minha mente. Daqui a pouco vou espreitar o mar. Nele, tudo se ajusta para ser aquilo que é: a tempestade é ajuste, a bonança é ajuste. Se recua, é ajuste; se avança, é ajuste. No mar, não há nada de humano, apesar do desajuste humano o invadir, mas ele persiste em ser o velho mar que sempre foi.

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