quinta-feira, 15 de maio de 2025

Amor de perdição

Este ano tenho-me livrado de um Maio tórrido. Aqui há uma propensão para as temperaturas, a partir de certa altura do ano, tresloucarem e pensarem que se está em África. Não está, nem sequer abaixo da linha do Tejo. É certo que esse rio corre mesmo ali em baixo, a meia dúzia de quilómetros de distância. É um rio que amo, acima de todos os rios — mesmo do rio que por aqui corre e que, na sua pequenez, se desliza para esse outro que recebe, descubro-o com espanto, a inclinação dos meus sentimentos. Quando está enfurecido e se precipita em direcção à foz, é belíssimo: grandes cheias que cortavam estradas, fechavam povoações, fertilizavam as terras — mas faziam parte de quem nascia perto dele, era um dos símbolos que, no silêncio de um orgulho inconfessável, se gravava no peito. Hoje, porém, o Tejo é um touro castrado. As barragens domesticaram-no, prenderam-lhe as águas, que só são libertadas em caso de necessidade. Durante quase todo o ano, corre sorrateiro, em murmúrios leves, quase vazio, quase morto à míngua de água, sedento e bonacheirão. Se chove, como este ano, enche-se de brio e parece o velho Tejo. Então, recebe as visitas como um velho senhor decaído, mas a quem não se hesita em prestar a homenagem devida, pois tudo o que foi grande — mesmo que a grandeza tenha ficado encerrada no sarcófago do passado — merece, por direito consuetudinário, homenagem. Descobri, ao escrever isto, um amor sobre o qual nunca tinha pensado: o desse rio que é o maior da península. Talvez todos nós tenhamos amores escondidos, que nem sabemos que os temos, e que num momento, sem significado especial, descobrimos — e descobrimos com a força de uma evidência. Estarei a entrar naquela fase da vida em que se fica particularmente sentimental. Tudo é possível, para minha perdição. Pois, não há amor que não seja de perdição.

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