Há pouco, na rua, estavam trinta e oito graus. Os corpos amolecem e quase derretem. A partir de certa altura do ano, por aqui, o calor lança uma intifada contra a pobre população. Munido de pedras ferventes, esse deus sem tino lança-as sobre a cidade. As pessoas protegem-se como podem de um agressor sem rosto nem voz. O melhor, porém, será escolher o exílio junto ao mar. Ora, isso nem sempre é possível. Não seria má ideia os poderes municipais tentarem negociar com o inimigo. Fazer algumas concessões e obter temperaturas mais amenas. Falta-lhes, aos poderes municipais, iniciativa. A escassez deste bem está ancorada na penúria de um outro: a imaginação. Em Kant a imaginação assume duas faces. Uma, reprodutora; outra, produtora. A imaginação que reproduz – isto é, que copia – não falta a esses poderes. O que lhes falta é a outra, a criadora. Se a tivessem, encontrariam modo de negociar uma baixa de temperatura como quem negoceia uma baixa de juros ou de tarifas, tema que agora está na moda. Para que servirá um poder municipal se nem é capaz de tratar de uma coisa destas? Enquanto isso, os corpos, depois de derreterem, correm o risco de se evaporarem. É muito desagradável para uma cidade perder assim os seus cidadãos. O que lhes aconteceu, pergunta-se. Evolaram-se devido à onda de calor. Os poderes públicos – não apenas os municipais – andam atarantados com o problema da demografia. Retorcem os neurónios para encontrar uma solução. Contudo, como podem encontrar a solução se não conhecem – ou não acreditam – na causa: a evaporação dos cidadãos devido ao calor? Há uma correlação evidente entre a subida das temperaturas e a diminuição demográfica. Pensa-se que é por nascerem poucas pessoas. Uma desculpa com a finalidade de não enfrentar o problema. Por vezes, passam nuvens carregadas de gente evaporada, mas como não chove cidadania, não há devolução. Resta-nos esperar que os poderes públicos, locais e nacionais, deixem de se comportar como sonâmbulos e acordem para o problema. Que é real, como se pode ver pelo estado do meu cérebro. Os cérebros são a primeira coisa a volatizar-se.
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