Um dos Contos de São Petersburgo, A Caleche, de Nikolai Gógol, tem um começo que desencadeou em mim uma memória ancestral. O texto diz: A cidadezinha de B. animou-se muito quando nela se aboletou o regimento de cavalaria ***. Antes disso, pasmava num tédio mortal. A palavra gatilho da minha rememoração foi aboletou. Ora, a memória não é a minha, claro, pois ela provém das Invasões Francesas. Numa delas, o exército invasor esteve aqui aboletado. A memória veio através da minha mãe, que a ouviu da sua avó – uma das minhas bisavós. A história narra a pilhagem da casa de família por parte da soldadesca francesa. Conta como se esconderam e como os soldados destruíram o que não conseguiram levar. Ora, essa minha bisavó não podia ter vivido o acontecimento, pois nasceu mais de cinquenta anos depois da passagem por cá dos franceses. Também a mãe – uma das minhas trisavós – não podia ter vivido o evento. Embora fosse possível que um dos meus tetravós fosse a origem do relato, o mais plausível que aqueles que o viveram tenham sido os meus pentavós do lado materno. O que sempre me impressionou foi a persistência da narrativa, onde não deixou nunca de ressoar um certo ódio aos invasores, que chegou até à geração dos meus filhos e se prepara para continuar. Conheci pelo menos outra pessoa que, na sua família, tem uma história semelhante, o que indicia uma prática contumaz do invasor. Ora, a transmissão genética pouco relevo terá caso não seja acompanhada por outro tipo de transmissão, a narrativa. A passagem dos franceses por aqui deve ter sido de tal modo inaceitável que, passados mais de duzentos anos, ainda há recordações do seu aboletamento.
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