A fazer de acompanhante, enquanto espero vou abrindo, no tablet, ficheiros antigos. O objectivo é fazer uma limpeza. Num deles, cuja designação omito, encontro o seguinte: Este é o romance que dá voz à única minoria que conheço; e, se a conheço, então ela existe. A única cuja voz transposta em si um sentido compreensível para qualquer um. Que minoria é essa, perguntará o leitor. Uma pequena palavra desvendará o mistério: Eu. Desconheço outra que seja menor. Todas as outras, a meus olhos, por pequenas que sejam, são já para mim uma multidão opressiva. Fiquei a contemplar aquele montão de disparates em meia-dúzia de linhas. Quem terá escrito isto, perguntei-me. O autor teve o bom senso de não continuar. Quem se poderia interessar pela história de um Eu? Ninguém, por certo. Ora, o que me terá levado a escrever aquilo, pois sei muito bem que ninguém, a não ser eu, tem acesso aos meus ficheiros? E, se ele está lá, foi porque eu — talvez num ataque de sonambulismo, que nunca descobri sofrer — o escrevi. Arrependo-me de o ter escrito? Podia responder como um qualquer poltrão travestido de corajoso que não, que não me arrependo de nada do que fiz. Seria faltar à verdade. Arrependo-me de muitas coisas, entre elas o de ter escrito aquelas palavras. Não pelo seu conteúdo, mas pela miséria da sua forma. Se o conteúdo é mau, isso deve-se à natureza deplorável da forma. Foi assim, nesta meditação, que passei o tempo de espera. Exames efectuados, fomos almoçar com o meu filho, que, por um acaso, se encontrava também na capital de distrito onde decorreram as provações médicas. A conversa de almoço evaporou o meu arrependimento, que volta agora. Um dia destes apagarei o texto miserável. Talvez não, talvez lhe dê continuidade, pois, na verdade, a única minoria que conheço sou eu. As outras oprimem-me e, por isso, desconheço-as. O problema do mundo é haver minorias e maiorias. Se apenas existissem singularidades, se fosse impossível dizer nós, vós ou eles, tudo seria mais cordato. A vida seria um encontro de singularidades e não um passeio de rebanhos. A singularidade, meu idiota, é um luxo, oiço dizer. Calo-me, perdido na perplexidade de me escutar.
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