Não sei o que me deu, mas contra os meus hábitos – e esses hábitos não são meras rotinas, mas devoções de uma tradição arreigada no fundo do meu ser – decidi ir à praia. Perguntaram-me se estava bem. O melhor possível, respondi, embora não possa jurar que estivesse a dizer a verdade. Estive por lá cerca de duas horas, das quais há que descontar uma meia hora no bar. Caminhei, vi o mar, observei as pessoas. Não contei gaivotas, pois não vi nenhuma. O que reparei foi que o mar estava cheio de surfistas. Perguntei-me se haveria alguma relação entre a presença deles e a ausência de gaivotas, seguindo um princípio que me guia: os efeitos mais inesperados têm as causas mais estranhas. Este princípio, que se aplica a tudo o que acontece, pode ser responsável pelo que me sucedeu no pós-praia. Tinha pensado, como se fosse um dever irrefragável, em fazer um almoço frugal, talvez um esboço de jejum penitencial, como se vivesse no século XIX e estivesse a entrar em período quaresmal. Ora, o ter ido à praia, pisado areia, entrado em contacto – ligeiro, e apenas os pés – com a água do mar e recebido os raios que o sol decidiu dardejar sobre o meu pobre corpo, depois de tudo isso, chegado o almoço, descobri que a experiência me tinha aberto o apetite, que estava com fome e que não estava disponível para frugalidades e muito menos para penitências. Cedi. Agora, que o mal está feito, apesar do bem que me soube, tenho de repensar estes impulsos que me levaram a fazer o que por hábito me recuso a realizar. É assim que as pessoas se perdem. Fazem uma coisa e não esperam as consequências que ela trará. Teria sido mais assisado ter evitado a praia. Estou certo de que a frugalidade seria respeitada, mas faltar-me-ia assunto para escrever. Sempre podia meditar sobre a borbulha que me nasceu na cara, tentar descobrir de que causa excêntrica ela é efeito. O importante da escrita não é o assunto, o tema, mas o acto de escrever, de juntar letras em palavras, palavras em frases e frases em textos. A isto chamo: autonomia da escrita. Uma escrita autónoma é aquela que tem a sua razão de ser em si mesma e não num qualquer conteúdo. Se alguém argumentar com uma analogia dizendo que aquilo que digo seria o mesmo que dizer que o importante numa garrafa de vinho, não seria este, mas a garrafa, eu corroboraria. Do ponto de vista da garrafa, o importante é ela mesma, não o que ela contém. Com a escrita passa-se o mesmo.
Sem comentários:
Enviar um comentário