quarta-feira, 2 de julho de 2025

Ajustes e desajustes

Fechei a janela e o barulho da rua desvaneceu-se. Aqui, onde me encontro refugiado, as temperaturas são-me favoráveis. Até os olhos que esbraseavam caíram na rotina e deixaram de ser o prenúncio de um fim do mundo pelo fogo. Agora são apenas olhos, um pouco cansados, talvez a precisar de serem revistos – coisa que acontecerá em breve – para ajustar as lentes. Aliás, a partir de certa altura da existência, não são poucas as coisas que precisam de ir sendo ajustadas, mas nem sempre a tarefa é tão fácil de realizar quanto a afinação dos olhos. Se se pensar bem, a vida começa sempre em desajuste: são necessários muitos e muitos anos para se chegar a alguma precisão. Alcançada esta – quando é alcançada –, logo vem a hora em que as coisas começam a desafinar-se. Então inicia-se a saga do recurso aos afinadores. Estes são legião. Tenho passado estes últimos dias na companhia de um livro de um dos mais célebres filósofos do século XX – célebre por boas e por más razões. Reconheço, na obra, elevadíssima engenhosidade na sua fabricação, mas há qualquer coisa que me irrita. Trata-se de uma espécie de batota sub-reptícia. Aparentemente, o autor estaria comprometido com a verdade, mas o que se percebe – ou eu percebo, devido a uma mente enviesada – é uma preocupação com a persuasão de um certo auditório, composto pela elite intelectual, explorando estados de alma pouco razoáveis. Há, para falar segundo as categorias de Aristóteles, um excesso de pathos, o recurso a emoções, ainda que refinadas, de acordo com o auditório. Dito de outra maneira: há um desajuste entre a enunciação do que se pretende e aquilo que efectivamente se pretende. Isto, porém, é uma suspeita – muito provavelmente injusta –, resultado das coisas que se vão desafinando na minha mente. Daqui a pouco vou espreitar o mar. Nele, tudo se ajusta para ser aquilo que é: a tempestade é ajuste, a bonança é ajuste. Se recua, é ajuste; se avança, é ajuste. No mar, não há nada de humano, apesar do desajuste humano o invadir, mas ele persiste em ser o velho mar que sempre foi.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Demanda do Graal

Tenho de arrumar as coisas – ia dizer a tralha –, pois vou em demanda do Santo Graal. Contudo, aquela é para mim uma procura prosaica, nada comparável com a do Cálice da Última Ceia ou a da busca empreendida pelos Cavaleiros da Távola Redonda. Se o encontrar – ao Graal –, partilho a informação sobre a sua natureza. Uma pessoa sensata dirá que, para encontrar alguma coisa, é preciso saber o que é. Ponto de vista discutível. Se se sabe o que é, então já, de algum modo, se encontrou o que se procura. A minha demanda, todavia, é mais radical: procuro, mas não sei o que procuro; saberei, porém, que o encontrei quando o encontrar. Será uma revelação e um encontro. Podia dar exemplos pessoais, mas isso seria expor a intimidade, ainda que narrativa, ao público – uma intimidade que, muito plausivelmente, não possuo. Quem tem uma intimidade não deve trazê-la para o espaço público; quem não a tem ainda deve ser mais cauteloso e protegê-la com mais afinco. Porquê? Porque, se se tem uma coisa, essa posse gera inveja e ressentimento; quando não se tem, a inveja e o ressentimento recrudescem ao incidir nesse poder ser sem posse. De certa maneira, sou como Ulrich, personagem central do romance de Musil, O Homem sem Qualidades: ele não tinha atributos definidos, mas tinha em aberto a possibilidade de ter qualquer um. Tal como eu. Também não tenho intimidade, mas a possibilidade de ter qualquer uma está em aberto. Ter uma intimidade é fechar-se a todas as outras. É possível que o Graal, objecto da minha demanda, seja uma intimidade. Se o for, porém, desisto de realizar o objectivo: prefiro a possibilidade à realidade. Como tantas vezes tenho escrito aqui, a realidade é como a história: uma velha rameira infrequentável.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Deflagrações

Está a acabar o sexto mês do ano. Junho fina-se entre calores. Não se pense, porém, que chegamos a meio do ano. Dos 365 dias que 2025 haverá de ter, hoje será centésimo octogésimo primeiro. Só ao meio-dia de 2 de Julho se alcançará essa meta. A partir daí tudo se inclina, cada vez mais, para o fim do ano. É como se depois de ter subido durante 182,5 dias a montanha, se começasse a descê-la. Oiço que esta informação não tem qualquer relevo e que ninguém quer saber dela. Se se escrevesse apenas sobre coisas relevantes, pensei, possivelmente nada teria sido escrito pela humanidade. E, depois, quem sabe aquilo que os outros querem saber. Hoje tinha duas tarefas para realizar. Uma, responder a um questionário, está acabada. A outra, enviar um email a uma editora por causa de uns livros que não chegaram, ainda está por fazer. A temperatura talvez me impeça de realizar mais do que uma tarefa por dia. Podia estar a ler, mas os olhos ardem-me. Por vezes, temo que peguem fogo. Têm-se visto tantas coisas, que não será impossível, de um momento para o outro, os olhos inflamarem-se e deles saírem labaredas. Isso seria impossível com os ouvidos, pois há entre eles um canal secreto por onde corre um vento fresco, que diminui a temperatura, e mesmo que um ouvido se inflame, logo a aragem apagará a deflagração. Na minha secretária repousam vários livros. Três deles, pelo menos, já os li. Por que razão os trouxe das estantes? Um enigma. Um outro jaz ao lado deles, mas esse não o li. Uma peça de teatro de Karl Kraus: Os Últimos Dias da Humanidade. A capa diz: versão integral. Respiro descansado, pois se fosse apenas uma versão parcial ou resumida, talvez se atirasse para as três mil páginas. Kraus optou pela síntese e são apenas umas novecentas . Uma coisa é certa, aqueles não foram os últimos dias da humanidade. A primeira grande guerra foi terrível, mas ainda tivemos oportunidade para mais uma grande guerra, além das múltiplas pequenas e médias guerras, que parecem o resultado de globos oculares que se inflamam com facilidade e ateiam os conflitos num virar de olhos. O pior é o calor.

domingo, 29 de junho de 2025

Temas

Não sou só eu. Em As Sete Idades, de Louise Glück, encontramos o poema Marmeleiro. O primeiro verso estabelece, de imediato, uma relação comigo: No fim, só tínhamos o clima como tema. É o que me resta nestes dias sem nome – pois até o dia da semana se evapora da consciência – em que o calor cai sobre a cidade como um bombardeamento de poderosas esquadrilhas inimigas. Sim, também só tenho o clima como tema. Podia contar o terror do dia de ontem, mas nada acrescentaria ao tema do clima, pois foi dele que veio o terror, como se fosse um directório jacobino em exercício no poder, sempre com a guilhotina do sol à mão. O segundo verso do poema tem uma natureza salvífica: Felizmente, vivíamos num mundo com estações. A pluralidade de estações do ano traria uma diversificação temática às conversas de um casal a quem, faltando temas, não faltariam palavras. Também não me faltam palavras. Aliás, há em mim uma fonte borbulhante de vocábulos, sempre prontos a ser mobilizados para formarem frases atrás de frases. O pior é o tema. A minha expectativa é que o frio do Inverno e o calor do Verão me forneçam o que não tenho, assim como as indecisões climáticas da Primavera e do Outono. Acabei de espreitar a Sá Carneiro. Apenas casas e árvores na avenida. Nem carros passam, como se se tivesse voltado àqueles dias da pandemia, onde as coisas desapareceram do horizonte onde estavam habitualmente. Bebo água, dormito, deixo que pensamentos sem nexo dancem na minha mente e espero que o ataque funesto do inimigo passe, para poder ir à rua certificar-me de que ainda existe um espaço público, que a aviação inimiga não destruiu aquilo que levou séculos – talvez milénios – a erguer. Sim, eu sei: o resultado não é extraordinário, mas o que conta é o processo, e esse, pela sua longevidade, é extraordinário – tal como o clima. Ordinária é apenas a falta de tema. Felizmente, ainda não desapareceram as estações.

sábado, 28 de junho de 2025

Maldita referência

Chegou a época em que a consulta a um site meteorológico se tornou indispensável. Por aqui, a temperatura chegará hoje aos 42 graus, mas na terça-feira, aos 44. Nem sei o que dizer sobre o destempero de S. Pedro. Terei de ir a Lisboa, à festa, ao ar livre, de fim de ano lectivo do meu neto. Começa às três da tarde, quando estarão por ali 39 graus. Duvido que a direcção e os organizadores tenham o hábito de consultar a meteorologia quando programam estas coisas. Como não tenho vocação para mudar o mundo – e mesmo que a tivesse, o mundo não gosta de ser mudado – aceito as coisas como elas são, apesar de elas deverem ser de outra maneira. Não se trata de uma consciência demissionária das suas responsabilidades comunitárias, mas de saber o que a casa gasta – uma belíssima expressão – e ter idade suficiente para perceber que a casa não está interessada em novos produtos. Por casa, não me refiro ao colégio, mas a este país. Aliás, tenho assistido ao longo da vida a coisas extraordinárias. Não apenas à manutenção de coisas completamente disfuncionais, mas que fazem parte daquilo que a casa gasta, como, não poucas vezes, vejo pegar em coisas que funcionam muito bem e mudá-las até que se tornem disfuncionais. Se há uma coisa que os portugueses gostam é da disfunção. Consomem disfunção atrás de disfunção, com grande prazer. É isso que os alimenta e lhes permite dizer mal de tanta disfuncionalidade. O amor à disfunção é uma paixão pela maledicência. Temos medo de não haver matéria a maldizer, por isso apostamos tudo na disfunção. Não sei o que me deu, para hoje estar a dissecar a alma-pátria. Eis mais uma bela expressão: alma-pátria. É daquelas que Frege diria que tem sentido, mas não tem referência. Todos percebemos o que ela quer dizer, mas, mesmo que procuremos bem, nunca encontraremos uma alma-pátria. E isto revela o grandioso desígnio destes textos: falar de coisas que têm sentido, mas que não têm referência, que não se referem a nada. O pior é a temperatura alta, que não apenas tem sentido, como tem uma efectiva referência. Maldita Bedeutung.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Reciprocidades

Por vezes interesso-me pelo estado do mundo, mas, em contrapartida, o estado do mundo nunca se interessou por mim. Ora, uma relação onde não há reciprocidade é um casamento condenado. Kant, na Filosofia do Direito, tanto quanto me lembro, emitia um juízo negativo aos casamentos interclassistas e também aos poligâmicos. A razão seria a mesma: a ausência de reciprocidade. Não consta que o venerado filósofo de Königsberg tivesse inclinação para a poligamia – mas, quem sou eu para saber das inclinações de outro? – por isso, a explicação mais plausível para se ter mantido solteiro toda a vida é não ter encontrado uma mulher com quem pudesse estabelecer uma relação de reciprocidade. Se ele pensava que num casamento entre alguém com mais dinheiro ou influência e alguém com menos, este último estaria em desvantagem e, de algum modo, perderia a sua autonomia, também é plausível pensar que essa assimetria entre cônjuges estaria presente entre um homem como ele e uma mulher que não se interessasse pelo magno problema de saber se a Metafísica era possível enquanto ciência. A minha tese, porém, é outra. Certamente haveria mulheres dispostas a discutir, no leito matrimonial, o espinhoso problema que assombrou a Crítica da Razão Pura. No vasto mundo, pode-se encontrar de tudo. O problema é que Kant nunca saiu da cidade onde nasceu e, devido ao seu amor ao torrão natal, não encontrou aquela que lhe abriria o espírito para a possibilidade de tornar a Metafísica uma ciência ao lado da Física e da Matemática. Talvez, enquanto estudante, tenha ouvido uma outra versão, um mito urbano recolhido por algum biógrafo tardio. Kant terá dito que, quando precisava de uma mulher, não tinha dinheiro para ela, e, quando chegou a uma situação económica desafogada, já não precisava de uma mulher. Se esta historieta é verdadeira, dever-se-ia perguntar ao eminente pensador como é que tal afirmação se coadunava com a fórmula da humanidade do imperativo categórico, que ordena respeitar a dignidade do outro, tratando-o sempre como um fim e nunca apenas como um meio. Este texto é um exemplo do estado corrompido da minha mente: começo a falar de uma relação pessoal com o estado do mundo e acabo a lançar a suspeita de uma incoerência na mais alta personagem que a cidade de Königsberg alguma vez deu ao mundo.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

In vino veritas

Acabei de chegar. Fui a um bar de vinhos beber um copo. Caí, agora, numa metonímia banal: tomar o continente pelo conteúdo. Ninguém bebe copos, mas o líquido que está dentro deles. No meu caso, o conteúdo era vinho branco. Primeiro, um alvarinho; depois, um loureiro. Também ninguém bebe alvarinhos ou loureiros, mas os vinhos que se fazem destas castas. O alvarinho era interessante, mas não extraordinário. Contudo, o loureiro foi o melhor que bebi até hoje. Quem me vê, não poucas vezes me confunde com um nórdico, mas em certas coisas sou estruturalmente latino. Cerveja é, claro, bebida de nórdicos, bárbaros. O vinho é uma herança do velho Lácio. E nele se concentra muito do que há de extraordinário neste mundo e talvez em outros que não conhecemos. Requer a lentidão contemplativa. A cor – o loureiro tinha uma belíssima cor –, o aroma e, depois, a multiplicidade de sabores, tudo isso exige mais, muito mais do que um desejo de álcool. O famoso adágio in vino veritas não que dizer aquilo que se pensa. Não significa que bêbadas, as pessoas tendem a dizer a verdade, a revelar os segredos. A verdade que se manifesta no vinho não é a que está no sujeito que bebe, mas na coisa bebida. Nele, a realidade do mundo manifesta a sua essência e nessa manifestação está a verdade desse mundo. Um mundo que não permitisse o fabrico do vinho não seria um verdadeiro mundo, mas um simulacro. Todos nós pensamos em mundos possíveis, mas quando se pensa num mundo onde não existe vinho pensa-se num mundo impossível. Se eu fosse um Leibniz tardio – coisa que não sou – argumentaria que este é o melhor dos mundos possíveis. Porquê? Porque nele existe vinho e a música de Bach. Sim, estou a ouvir as Variações Goldberg, por Glenn Gould. Não, não estou a beber. Não suporto demasiada verdade num só dia.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Na mesoguarda

Podia ter sido mais um dia glorioso para a minha gesta – mas não foi. A causa? Uma noite de insónia. Quando me levantei para ir tratar de assuntos que a vida me colocou pela frente, percebi que a principal tarefa seria segurar as pálpebras, para que não se fechassem em algum momento inconveniente. Se se fecharem agora, ninguém quer saber. Aliás, é coisa que elas estão a tentar fazer. Resisto como posso, embalado pela música produzida pelos dedos ao chocarem contra as teclas. Sim, é uma composição musical contemporânea. De vanguarda. As vanguardas perderam o brilho de outros tempos. Ninguém quer saber de vanguardistas. Eles que se atolem no futuro – onde chegarão antes de nós. É isto que significa ser de vanguarda: atolar-se no pântano do futuro antes dos outros. Não se pense que sou retaguardista. Não sou. O meu lugar é no meio – na mesoguarda –, na perfeita equidistância dos que correm para diante e dos que correm para trás. No meio está a virtude da imobilidade. Sou um homem virtuoso – mas a cair de sono.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Química

Acordei sorumbático, uma visão cinzenta sobre o estado das coisas, embora nem o estado nem as coisas estivessem definidos na minha consciência. Também algumas dores, sem importância, induzidas pela incerteza do tempo, me obsidiavam. Quando me cansei, decidi-me a tomar um comprimido receitado por uma médica. Quando a acção do químico começou a fazer efeito, não apenas as dores deixaram de me importunar, como o cinzento com que via o mundo da manhã, deu lugar a uma visão mais solar pela tarde. Agora que penso em tudo isso, vejo nascer em mim dois núcleos de perplexidades. O primeiro grupo é de natureza epistémica: será que a minha visão sorumbática e cinzenta do estado das coisas era mesmo minha ou induzida pela manhã sombria? Ou será que a manhã estava sombria porque, estando eu com visões em cinzento, a via assim? O segundo núcleo toca a ontologia. Será que a natureza das minhas visões é o fruto de combinações químicas? Basta uma leve alteração química no organismo, e logo a minha visão se torna outra? E, para tornar as coisas piores, se a visão é apenas uma metonímia, onde se toma a parte pelo todo? E se não é apenas a natureza da minha visão das coisas que é fruto de meras combinações químicas, mas todo o meu ser? Preocupamo-nos com a nossa identidade, elaboramos teorias sobre o eu e o self, mas não deveríamos antes preocuparmo-nos com a química? Talvez vivamos sob uma despótica tirania química, onde somos, ao mesmo tempo, tiranos e tiranizados, enquanto construímos narrativas onde nunca deixamos de ser os heróis – mesmo quando fazemos de anti-heróis – num mundo ora malévolo, ora benevolente, conforme a disposição e o humor da química. O pior é que as próprias ilusões são ainda fruto da química.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Um dia de glória

Um dia esfusiante para acrescentar glória à minha gesta gloriosa. A manhã ocupei-a em luta contra os dragões burocráticos. Enfrentei um ligado aos impostos e outro aos deveres profissionais que ainda vou tendo. Luta feroz, terrível, mas a minha auréola de herói saiu reforçada: perdi ambos os combates, pois ninguém derrota o fisco, nem as invenções que um deus inútil forja para espalhar a inutilidade entre os mortais. Animado, reservei-me para depois do almoço enfrentar o terceiro dragão. Um dragão técnico. Apesar de tudo, ainda sou quase uma pessoa normal. Tenho um contrato com uma operadora de telecomunicações, uma daquelas ínvias instituições que me vendem a possibilidade de telecomunicar, internetar, telefonar – apesar de ter mandado para o lixo o telefone fixo – e telever. Fazem isso a troco de uma mensalidade generosa, com a finalidade de testarem a minha inclinação natural para a bondade. Ora, essa Santa Casa da Misericórdia Telecomunicacional decidiu trocar dois aparelhos que montara cá em casa por um único. Teve uma ideia brilhante. Nada de enviar um profissional para fazer o processo, mas testar a capacidade técnica dos assistidos pela sua generosa caridade. Sim, fomos nós, os donos da casa e felizes consumidores telecomunicacionais, que recebemos o imperativo – estou a medir as palavras – de desmontar e montar aquela tralha tecnológica, o qual foi acompanhado por uma terrível ameaça, a lembrar uma praga do Egipto, para o caso de não se entregar os dois aparelhos substituídos. Havia instruções para a desmontagem e remontagem, claro. Umas em papel, mas a letra era tão pequena que nem com a lupa se conseguiam ler. Outras num manual digital em pdf, mas eram omissas precisamente naquilo que não conseguíamos resolver. Havia ainda outras, um vídeo com um rapaz que pensava que tinha graça e debitava instruções a uma velocidade digna de um Grande Prémio de Fórmula 1, tratando os clientes como se tivesse andado com eles na noite a fumar substâncias ilícitas. Agora, pensei ao fim de três minutos, perante este dragão, estou perdido. Desmontei, montei, liguei, desliguei. Decido telefonar e, nem sei como, não me enganei no número. Depois daqueles preâmbulos com vozes gravadas, sou encaminhado para um assistente. Não era um assistente, era uma assistente. Não, na verdade, era um assistente, pois, apesar da voz feminina, foi um anjo descido dos céus que nos ajudou –esta era uma tarefa colaborativa – a matar o dragão. Para ser mais preciso, foi o anjo que matou o dragão, só para acrescentar glória à minha gesta nesta Terra. Um grande dia.

domingo, 22 de junho de 2025

Vida doméstica

A minha neta acabou de sair. Retorna a Lisboa, depois de uma semana por aqui, em luta com a economia. Agora, a casa ficou mais vazia. Ontem também cá esteve o mais novo. Perguntou-me se queria jogar xadrez, mas não estive pelos ajustes. Tinha de procurar o tabuleiro e as peças. Ficámos pelas damas. Ganhou-me um jogo e empatámos outro. No fim, comentou que o avô o tinha deixado ganhar. Desmenti. Este desmentido não foi uma mentira piedosa. Faço sempre um certo esforço para jogar seja o que for, e ontem estava com pouca disposição, mas há coisas que não se recusam. Transbordando de entusiasmo fingido, lá fui movendo as peças sem grande nexo e ele ganhou mesmo. Tenho de lhe comprar um jogo de xadrez, mais tarde ficará com o meu. Na adolescência joguei muito xadrez, mas, depois, perdi o interesse, talvez a paciência. Tenho de a ganhar, para o ensinar. A relação entre avós e netos é uma coisa muito especial. Não conheci nenhum avô – as avós, sim –, pois morreram antes de eu nascer, e, por vezes, sinto que foi um indecência que o destino me fez a mim, que me privou deles, e a eles, que morreram ainda relativamente novos. Está um dia indeciso, estranho como uma página de metafísica, soturno como uma sermão moral. Os pássaros meus vizinhos – são aves urbanas – não param de falar, mas ainda não consegui descobrir o alfabeto que usam e por isso perco-me na tradução. Eles estão seguros da incompreensibilidade; sabendo-me por perto não se coíbem de dizer o que têm a dizer. Não há problemas que ele nos oiça. Ouvir é uma coisa e compreender é outra, dizem entre si, e ele – referindo-se a mim – não compreende nada do que dizemos. Só posso corroborar. Não entendo nada do que eles dizem, nem do que eu escrevo ou penso, caso ainda pense. Bebo água para não desidratar.

sábado, 21 de junho de 2025

Meditação solsticial

Começou o Verão. O solstício foi lá pelas 3 horas e 42 minutos, mas não dei por ele. Estava a dormir. Também se estivesse acordado não daria por ele. Não é coisa que se veja, oiça, cheire, saboreie ou tacteie. Isto nada nos diz sobre ele, mas é muito esclarecedor sobre as limitações a que os nossos órgãos sensoriais estão sujeitos. Hoje, quando saí de manhã, estava muito menos Verão do que ontem, anteontem e antes de anteontem. A empresa fornecedora de estações do ano cumpre os prazos, mas entrega produtos de duvidosa qualidade. É capaz de enviar uma Primavera que parece um Verão consumado, para logo de seguida nos dar um Verão que é uma Primavera tardia. Este é um tema inesgotável por aqui. Sem conversa, logo vem o clima, o calendário, as estações, a imprevisibilidade do tempo, a má gestão de S. Pedro. Hoje será o maior dia do ano; depois, começa um lento definhamento até chegar ao mais pequeno. Podia falar de coisas mais interessantes e fingir erudição. Por exemplo, escrever sobre Georg Groddeck. Dele sabia duas coisas: que teria tido alguma influência no doutor Sigmund Freud e que na colecção TEL da Gallimard havia a sua obra mais conhecida, Le Livre du Ça. Uma das características mais notáveis da colecção, para além dos autores que publicava, eram as capas de Vasarely. Descobri, entretanto, outras coisas interessantes sobre o autor, mas guardo-as para futura oportunidade, não vá ter uma crise de falta de inspiração. Um outro tema curioso seria os meus erros de digitação. Por que razão escrevo sempre falat em vez de falta? Tenho outros, que raramente consigo evitar. Os dedos precipitam-se e querem ultrapassar-se uns aos outros. Sofro de indisciplina digital. Não tenho dedos prussianos, é a conclusão a que chego. Lamento-me muito da falta de ideias, mas o mundo e eu mesmo estamos repletos de matérias aliciantes. Meu Deus, quem poderá querer ignorar o drama da minha precipitação digital? Ontem, refresquei-me com o velho mazagrã, coisa de senhoras de outras eras, mas o que me apetece agora é uma bela cerveja belga, uma daquelas produzidas pelos monges trapistas. O problema é que nunca me lembro de comprar cerveja. Talvez seja demasiado filho do Lácio para me entregar a uma bebida de bárbaros, mesmo que abençoada. Como o Verão astronómico começou, fico-me pela água.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Mazagrã

Abro um dos eReaders que uso para leitura e descubro um romance que não li até ao fim. Faltam, segundo a informação disponível, 59 minutos para acabar, o que equivale, na contabilidade do dispositivo, a 21% da obra. Um pequeno romance. Não me lembro das razões que me levaram a suspender a leitura, mas devem existir. Ou talvez não. Sou eu que, por desleixo trazido pelo hábito, olho para tudo o que acontece como se estivesse amarrado a uma cadeia causal. Nada acontece sem que haja uma razão suficiente que explique por que é assim e não de outro modo, diria o senhor Gottfried Leibniz. Este princípio, porém, entedia-me. Não se trata de dizer que é falso ou verdadeiro, mas que provoca em mim, com a temperatura ambiente, um tédio incalculável. Tomemos em consideração o dístico de Angelus Silesius: A rosa é sem porquê, floresce porque floresce, / Não cuida de si própria, nem pergunta se a vêem. A rosa não é a rosa, ou só a rosa. Do ponto de vista poético, é uma metonímia. Não é apenas ela que é destituída de porquê, mas toda a realidade, onde se inclui o meu abandono do romance. Abandonei-o porque o abandonei. Só isso. Hoje todos sabemos – pelo menos os que se interessam pelo assunto – a razão por que a rosa floresce; sabe-se as cadeias causais que conduzem ao florescimento. Contudo, apesar disso, nada sabemos, e a verdade está toda no verso de Silesius. Refresco-me com um copo de mazagrã. Sabe-me bem, mas esse saber bem é como o florescer da rosa, e é nele que está toda a sua verdade. A autora do romance – omito o nome – é uma bela e interessante mulher. Vi-a há dias numa entrevista. Está na idade em que as mulheres florescem, fazendo-o sem porquê. Contudo, cuida de si própria e, por certo, já se perguntou ao que veio. E é aí que começa a queda. Voltarei ao romance um dia destes. Por agora, fico no mazagrã.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Beatices

Está um tempo esbranquiçado, uma luz anémica e um calor insuportável. Será das poeiras vindas de África, que decidiram emigrar do sítio onde estavam e procurar o estatuto de imigrantes, lançando um véu de irrealidade sobre este lugar que, por se acolher junto a uma serra, foi abandonado pelos ventos marítimos. Lá dentro, sob a rigorosa supervisão da avó, a minha neta mais velha confronta-se com as matérias da economia, para enfrentar o exame da próxima semana. Quando realizei esses exames, vivia-se um tempo extraordinário. Não apenas os professores fumavam na sala onde decorria a prova, como os alunos podiam fazer o mesmo. Isto é tão inverosímil que, quando penso nisso, acho que, como os actuais modelos de linguagem, conhecidos como Inteligência Artificial, estou a alucinar. O prompt que recebo de mim mesmo encontra um algoritmo que constrói uma história. Contudo, consigo mesmo ver-me a fabricar um cinzeiro em pleno exame, onde depositava a cinza e as beatas dos cigarros. Nunca soube a razão de se ter dado o nome de beata ao que resta do cigarro depois de fumado. Decidi, agora, perguntar a um Large Language Model a razão desse uso linguístico. Ele foi generoso e estabeleceu, de imediato, uma relação entre a beata do cigarro e a mulher beata da Igreja. Uma seria o que resta do consumo de um cigarro; a outra, o que resta pelo consumo do ardor religioso de alguém que se queima pela fé, que se consome pela devoção. Não fiquei particularmente convencido, mas não tenho contra-argumentos. A origem latina das palavras beato e beatitude não remete directamente para o contexto religioso, mas para a felicidade. Beatitude é felicidade, e beato é aquele que é feliz. Depois, o Cristianismo apropriou-se das palavras, dando-lhes um sentido mais restrito. Contudo, podemos imaginar, sem contradição, ateus beatos, isto é, felizes. Não consigo recordar-me, contudo, se, ao fumar em pleno exame, sentia alguma beatitude. Posso imaginar que sim, o que faria de mim, naqueles momentos, um beato a depositar uma beata num cinzeiro improvisado. Mesmo que essa memória seja falsa, alguma beatitude haverá nela para que a rememore. A minha neta não fuma, mas já ninguém fuma em exames. Tem uma vantagem sobre mim: a sabedoria que levar não se evola, durante a prova, com o fumo do cigarro. 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Escutar

Oiço Für Alina, de Arvo Pärt, e interrogo-me sobre a diferença do uso do silêncio nesta peça e em 4’33”, de John Cage. Talvez, pensei, que um caminho interpretativo fosse recorrer à distinção proposta por Agostinho de Hipona entre a Cidade de Deus e a Cidade do Homem. O silêncio de Für Alina é o espaço onde o sagrado se manifesta, envolvendo a expectativa do auditor e transportando-o para uma outra dimensão, a qual não existe noutro lugar, mas que mostra que o aqui é já um além. O ostensivo silêncio da peça de John Cage é uma abertura. Não ao sagrado, mas à sonoridade do mundo. É aqui que a Cidade do Homem, de Agostinho, terá menos pregnância. Não se trata de escutar os sons do amor sui, do amor de si dos homens, mas do mundo em geral, onde a sonoridade humana não necessita de ter um estatuto especial, mesmo que, quando a peça é interpretada num auditório, o silêncio que a compõe seja maioritariamente ferido pelo ruído humano. O que une as duas peças, na sua radical diversidade, é o desejo de escuta. A escuta do sagrado e a escuta do mundo. E nisso há um compromisso com algo que está a morrer: a disciplina da escuta. Talvez essa disciplina da escuta tivesse, na nossa tradição cultural, começado a morrer com Sócrates e a sua necessidade de se envolver no diálogo como caminho para a verdade. Isso subverte a tradição do pitagorismo. A comunidade pitagórica estava dividida entre acusmáticos e matemáticos. Os primeiros estariam numa espécie de período de aprendizagem, que poderia chegar aos cinco anos. A sua função era escutar a lição do mestre sem lhe ver a face. O essencial era, antes de ter o direito à palavra, exercitar o dever de escutar. O diálogo platónico, que surgia em contraponto com a retórica demagógica dos sofistas, mais do que uma condenação do ruído público, acabou por ser uma legitimação da ruína da disciplina da escuta. Talvez porque escutar se tenha tornado, nos tempos modernos, um pesadelo, a música, por vezes, tenta abrir clareiras para que os homens rememorem esse acto de humildade que é escutar o outro, seja este um homem, um deus, o rumor do vento ou a música das esferas celestes. Também eu preciso de aprender a escutar. Em vez de ficar em silêncio perante o desenrolar de Für Alina, fui escrevendo, escrevendo.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Estranheza

Desconheço a razão, mas pus-me a ouvir um álbum de 1975, de um tempo que ainda não tinha chegado aos vinte anos. Um estilo de música que me recusei a cultivar – o rock progressivo –, mas que fui ouvindo, nessa época em que se ouviam essas coisas. Enquanto o álbum, proveniente de uma plataforma musical, vai correndo, tento imaginar-me nesses dias. Não encontro nada de extraordinário, a não ser a banalidade da existência. Na verdade, desconheço-me naqueles traços que recordo. Isto não é uma negação do que fui no passado, é apenas perplexidade. Caso a vida me desse mais cinquenta anos, uma impossibilidade biológica, e me oferecesse uma capacidade de pensar idêntica à que ainda me resta, por certo, aquele que sou hoje seria um estranho para esse eu impossível. Enquanto escrevo, as canções vão correndo. Em mim, porém, nada vibra. Aquilo parece-me uma xaropada, mas, disciplinado, obrigo-me a ouvir até ao fim, tentando descobrir o que, por vezes, me levava a ouvir estas canções, sem um particular desagrado. Aqueles foram uns estranhos anos, embora na altura me parecessem normais. Imagino que todas as décadas são tempos estranhos, o que tem uma consequência extraordinária: a vida mais vulgar é feita de coisas estranhas, feitas de uma familiaridade inquietante. Chego aqui e suspendo a tentação de cair – toda a tentação está ligada a uma queda – na exegese dos conceitos Unheimlich e Unheimlichkeit provenientes de Freud e de Heidegger. Deixemo-los a repousar lá no etéreo lugar que lhes cabe. Ponhamos de lado o familiar, o estranho, a inquietante estranheza. Embora, pensar-me em 1975 não deixe de ser uma inquietante estranheza.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Casamento

Hoje, estive quatro horas em videoconferência, uma modalidade branda de enlouquecer. Não, equivoquei-me. A modalidade não é branda, mas áspera. Sendo assim, a loucura que me calhar será também ela áspera, crespa, rugosa. Talvez acre e ácida ao mesmo tempo. Se enlouquecer desse modo, a culpa não será minha. Tão pouco, dos genes recebidos, pois são genes muito bons. Quero dizer: são os melhores que consegui, embora sem fazer nada para isso. A culpa do meu futuro enlouquecimento não poderá ficar solteira, mas temo que nessa altura não saiba qual o marido com que devo acasalá-la. Talvez nem consiga para ela uma simples união de facto. Agora, poderia casar esse hipotética culpa com o videoconferenciar. Contudo, como ainda não estou louco, não há culpa, embora haja marido – ou parceiro – para ela, que até lá terá de se entregar à abstinência. O casamento exige a mais pura virgindade. A culpa e o videoconferenciar descobrirão um com o outro os factos da vida. Também é possível que a vida não tenha factos e, por isso, não haja nada para descobrir. Pode-se argumentar que este texto anuncia que o videoconferenciar não ficará abstinente por muito tempo. Cada um que julgue, mas poupem-me os pormenores. Se estou a ficar louco, uma presunção sem fundamento, quero entrar nessa fase da existência sem saber. A ignorância é uma amante virtuosa, mais do que a inocência.

domingo, 15 de junho de 2025

Dobrar o cabo

Dobrámos o meio de Junho e preparamo-nos para lançar âncora no porto do Estio. Então, os dias começarão a diminuir. Cheguei tarde a casa, vindo de Lisboa, e antes de escrever fui fazer a minha caminhada. A noite tinha-se apossado da cidade e, apesar da iluminação pública, as pessoas eram apenas vultos, sombras sorrateiras. No percurso escolhido, há uma capela dedicada a Santo António, por certo o de Lisboa; aqui não haverá devotos do santo em versão paduana. No átrio, vivia-se ainda o rescaldo das festas em honra do santo. Havia farturas à venda numa roulotte à beira da estrada. Não se pense que caí na tentação. Passeio ao largo. Num palco, alguém cantava uma música que passa por popular, mas que é apenas um exercício de mau gosto, esse mau gosto que se apossou da cultura popular e que transbordou para todo lado. Passei rápido, não fosse contaminado por algum vírus. Entrei na avenida, e conforme ia andando chegava até mim o perfume doce e intenso das flores das tílias. As árvores estão belíssimas, mas o aroma é enjoativo. Haverá quem goste. Apesar dessa leve disfunção aromática, sentia-me bem, penetrando solitário na solidão da noite. Enquanto contemplava a pujança das tílias, lembrei-me dos jacarandás da 5 de Outubro, já sem o esplendor que devem ter tido há uns dias. Além de terrível, a beleza é efémera. Por vezes, não há nada melhor do que uma trivialidade para dizer o que as coisas são. Aliás, haverá coisa mais trivial do que o ser, esse objecto último de toda a meditação filosófica? 

sábado, 14 de junho de 2025

Sentido

Durante parte substancial da minha vida, este era um dia de festa. Hoje – na verdade, há mais de duas décadas – é data de rememoração. Festa, rememoração, nada. Uma sequência inevitável, por muito que nós, mortais dotados de consciência, queiramos resistir-lhe e subverter. Por que razão as coisas têm de ser assim, não o sei, ninguém o saberá. Podemos especular sobre a fragilidade dos materiais de que somos compostos, mas isso é apenas constatar factos. Ora, os factos nada nos dizem. Limitam-se a acontecer. E isso não lhes confere qualquer sentido. Mesmo que os saibamos explicar pela sua inserção numa legalidade da natureza, enquadrá-los num esquema de causa-efeito ou num outro do mesmo género, isso nada nos diz por que motivo as coisas são como são e não de outra maneira. As leis da natureza não explicam nada. Mais: são elas que necessitam de explicação. Por que estas e não outras? Anaximandro via, nesse processo de vir ao mundo e de dele ser expulso, um acto de justiça que repunha as coisas no seu lugar, devido à injustiça cometida pela entrada no mundo. Há, nesta resposta, por ingénua que pareça, mais sabedoria do que numa explicação científica. Dá-nos um sentido, oferece-nos um porquê para a sequência: festa, rememoração, nada. A ciência explica-nos como as coisas acontecem, mas em nós nunca deixa de vibrar a pergunta que, na infância, repetimos vezes sem conta, até exasperarmos os adultos: Porquê?

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Pobres diabos

Releio Fome, o romance de Knut Hamsun publicado em 1890. Antecipa a revolução modernista. Conforme vou lendo, pressinto a incomodidade com que críticos e leitores fundados nas tradições rivais do romantismo e do naturalismo devem ter recebido a obra. Nem a subjectividade hiperbólica e exaltado do génio romântico, nem a subjectividade determinada pela hereditariedade ou pelo meio do tipo ideal ou clínico da personagem do naturalismo. O narrador protagonista, sem nome, é o retrato de uma subjectividade em colapso. Um leitor atento encontrará, por certo, tonalidades românticas e naturalistas, mas ambas superadas na implosão de um sujeito assombrado pela fome e tomado pelo desejo de escrever. Não é um tipo universal, mas também não é um herói singular. É apenas um pobre diabo que tem fome. Contudo, este pobre diabo esfaimado está mais próximo de cada um de nós do que as personagens romanescas anteriores. Não por causa da fome, mas porque é um pobre diabo. E é isso que somos, mesmo que a fome não nos atormente. A fome designa o desejo, a cujo império só poucos, muito poucos, conseguem furtar-se. É pelo desejo que se entra na confraria dos pobres diabos e é por causa dele que não saímos dali.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Equívocos

Uns dias fora e, quando chego a casa, as orquídeas estão todas doentes, moribundas. Foram atingidas por uma pandemia para a qual desconheço vacina. Talvez o número seja excessivo e a competição pelo título de a mais bela do ano as tenha enfraquecido, lançando-as num estado depressivo que se apodera das flores e das hastes onde brotam os botões. Em contrapartida, o jacarandá da praceta do outro lado da avenida está exuberante, de uma beleza inominável. O facto de ser inominável deve-se apenas a uma incapacidade minha para a nomear. Poderia encontrar metáforas, mas serão as metáforas um nome? Talvez todos os nomes não sejam mais do que metáforas. Dar nome não à beleza, mas às coisas belas, é um exercício difícil. As palavras estão gastas. O melhor seria inventar uma palavra para a beleza específica daquele jacarandá. Contudo, há um problema: a beleza que entrevi há pouco não será a mesma que ele terá ao crepúsculo, o que me obrigaria a inventar uma nova palavra, a qual também não seria adequada para a beleza que a árvore ostentará na aurora de amanhã. É aqui que nascem todos os equívocos linguísticos. A realidade está em constante metamorfose – em leitura hegeliana, dir-se-ia: está em devir –, mas a linguagem é muito mais lenta na sua adaptação a essa realidade. Eu mantenho o nome desde que nasci, mas eu não sou aquele que nasceu há tantas décadas. Sou outro, continuamente outro, o que implicaria que tivesse de mudar continuamente de nome. Em linguagem política – Honi soit qui mal y pense –, a língua é conservadora, a realidade é revolucionária. Isto tem implicações extraordinárias: os revolucionários odeiam a língua; os conservadores, a realidade. Por mim, não odeio nem a língua nem a realidade. Sofro-as como posso, com a paciência de um santo, a qual não é outra coisa senão um compromisso que compatibiliza os ardores revolucionários da realidade com a gélida solidez da língua. O pior é que a realidade está a destruir as orquídeas cá de casa e não tenho palavras para solidificar a sua beleza.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Um súbito interesse

De súbito, sem razão aparente, interessei-me por um assunto que nunca me tinha interessado: o regicídio de 1908. Não se trata de um interesse político, da querela entre monárquicos e republicanos. Também não se trata de um interesse técnico — desde o planeamento e a execução dos homicídios até à completa inoperância de todas as estruturas que teriam, em todos os momentos, de defender a família real. O que, de modo inesperado e intempestivo, se acordou em mim foi tentar perceber como é que as pessoas sentiram o acontecimento. Como vibrou ele no espírito de monárquicos e de republicanos? Como repicou no coração popular? Este tipo de interesse não é diferente de um que tivesse por objecto compreender como ressoou, na consciência das pessoas, o terramoto de 1755. Aparentemente, são dois casos bastante diferentes — um de ordem natural, fruto das leis da natureza; outro, de ordem cultural, resultado da agência dos homens. Também os diferencia o grau de devastação humana. Contudo, estes acontecimentos atingem o espírito das pessoas e ficam por lá, enquanto elas o ruminam. E é esta ruminação acerca do regicídio que, de um dia para o outro, me interessou. Muitas vezes procura-se definir qual terá sido o acontecimento mais importante de um dado século. Talvez o acontecimento decisivo do século XX português tenha sido o assassinato dos dois Braganças. O que é que esse assassinato — não o facto, mas a sua repercussão nas consciências — diz de nós? Não sei se a resposta — por muito matizada que seja — será agradável.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Metafísica criminal

Feriado. Dia de Portugal. Uma coisa estranha. Se há um dia de Portugal, esse é o 5 de Outubro. Foi nele que começou a monarquia portuguesa – a fundação da nacionalidade – e foi nele que começou a república. É uma data que contentaria monárquicos e republicanos. Se, um dia, Portugal se tornar numa teocracia, será também a 5 de Outubro. Estou a entrar num território perigoso, o qual me está vedado. Sou um narrador isento de paixões políticas. Também ainda não percebi que paixões o autor me permite. Provavelmente, nenhumas. Quer-me asceta. Um asceta do discurso, e este blogue é o meu ermitério. De resto, reconheço, confere-me alguma liberdade. Os disparates são-me permitidos, bem como as coisas mais singulares e destituídas de sentido. Acabei de chegar de uma festa de aniversário, um exercício social que me é cada vez mais penoso, isto é, sentido como uma pena, resultante de uma sentença proferida por um juiz anónimo, por um delito metafísica que, juro-o, não cometi. Ou talvez tenha cometido, mas não tenho consciência dele. Como se sabe, há dois tipos de crimes. Os físicos e os metafísicos. Os físicos são aqueles que todos conhecemos, os que enchem os tribunais de uma actividade inesgotável, onde juízes, procuradores, advogados e oficiais de justiça ganham vida, sabe-se lá por que crime cometido. Os crimes metafísicos são os piores, mas ninguém sabe quais são. Uma pessoa, a certa altura da vida, é acusada de um crime metafísico, todavia os autos são omissos na tipologia do crime. Isto não me sucedeu só a mim. Foi o que aconteceu a Joseph K. O crime que ele cometeu tinha uma natureza metafísica, mas o que ele fez, realmente, ninguém sabe. Só se sabe que é culpado porque sofre uma pena. Muitas das coisas que temos de fazer, ao contrário do que ingenuamente se pensa, não são deveres sociais. São condenações por crimes metafísicos. Aliás, deveríamos pôr fim a uma disciplina como a Sociologia. Substituí-la pelo estudo do código penal metafísico. Imagine-se um grande jogador de futebol, um daqueles que é idolatrado por milhões de adeptos. Em vez de lhe investigarmos o talento, deveríamos antes perguntar: que crime metafísico cometeu para fazer da vida uma correria atrás da bola? O que se diz de um jogador de futebol, pode dizer-se de um médico, de um engenheiro, de um poeta, de operário da construção civil. Em vez da sociologia das profissões, deveríamos instituir uma hermenêutica que conseguisse interpretar, a partir da profissão exercida, bem como da vida social, os crimes metafísicos de que a pessoa é culpada. As pessoas, por vezes, têm a veleidade de terem escolhido uma profissão. Pura fantasia para ocultar que são condenados metafísicos e a profissão é as grilhetas que manifestam a sua natureza de condenado. O que é válido para os indivíduos, é-o também para as nações. De que crimes metafísicos Portugal foi acusado e condenado para ter o seu dia a 10 de Junho. Se soubéssemos responder a esta questão teríamos uma informação mais preciosa sobre a nossa natureza do que se tivéssemos a mais completa e rigorosa história da nacionalidade, desde o 5 de Outubro de 1143 até ao dia de hoje.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Milagres

As segundas-feiras continuam tormentosas. Esta obrigou-me a um ir e vir que me fez atravessar grandes distâncias, apesar de curtas, pois são medidas em graus centígrados. Saí daquele sítio onde me acolho durante o ano com 38 graus e cheguei, aqui, passada uma hora, e estavam 23. Um milagre, dir-se-á. Um milagre confirmo. Por norma, as pessoas vêem como milagres coisas extraordinárias, alterações radicais da ordem do mundo. Ora, é na banalidade quotidiana que se escondem os milagres mais autênticos. Por exemplo, a possibilidade de transitar, com rapidez, de uma zona que parece a antecâmara do inferno, para uma colónia do paraíso. Não é na suspensão das leis da natureza que estão os milagres, mas nas próprias leis naturais que permitem coisas tão extraordinárias. Contemplar a ordem do mundo é assistir a uma sucessão de milagres. Eu sei que isto contraria a ideia de que milagre e ordem natural do mundo são coisas opostas. Isso, porém, é uma visão superficial. A ordem natural é o milagre por excelência. Já se imaginou o que seria o mundo se tudo fosse caos? Percebe-se de imediato que a transição do caos para a ordem é a coisa mais milagrosa que pode haver. Tudo isto, independente da causa eficiente dessa transição. Contudo, se esse milagre não tivesse ocorrido, haveria uma vantagem. Estes textos não seriam escritos. No caos não há escrita possível, pois os abecedários colapsam, as regras gramaticais e lógicas ficam à deriva e não se consegue encontrar um computador – o mesmo um simples lápis – que permita o frívolo exercício de escrever por escrever. Sim é um exercício frívolo, mas fruto de um milagre. Ou de vários.

domingo, 8 de junho de 2025

Tornar-se inocente

Passei a manhã de domingo a trabalhar e ainda tenho umas coisas para ultimar. Não sei o que me deu para tal heresia. Os domingos são dias em que se deve – segundo um imperativo categórico – praticar o ócio. Contrariamente ao que proclama certo espírito mundano, o ócio não é a fonte de todos os vícios, mas a origem de muitas virtudes. Era o que os gregos pensavam. E não estavam errados. Aliás, os velhos gregos estavam certos em muitas coisas, apesar de haver quem os considerasse como eternas crianças, sem sabedoria das coisas antigas, das velhas tradições. Nesse aspecto, a tradição grega encontra-se com a judaico-cristã e o imperativo crístico Deixai vir a Mim as criancinhas, porque delas é o Reino dos Céus. Em ambos os casos, a sabedoria não deriva da autoridade dada pelo tempo, mas reside numa espécie de inocência, a qual seria a garantia de uma visão não enviesada, de um olhar directo para as coisas mesmas. Essa inocência originária, como todos sabemos, perde-se rápida e facilmente. A grande tarefa que fica para a vida será a de se tornar inocente. Isso não significa recuperar a inocência que se perdeu, mas instalar-se numa outra que, ao contrário da primeira, conhece a culpa e fez o caminho através dela. A tarefa existencial não é permanecer inocente, mas conquistar a inocência, esse olhar não enviesado para as coisas, esse contacto directo com aquilo que é. Os gregos, com a sua arte, religião e filosofia, representavam as criancinhas do texto evangélico. Aquilo que se abre aos descentes dos gregos, agora que transportam vinte e cinco séculos de culpa aos ombros, é tornarem-se crianças, não porque seja essa a sua situação, mas porque esse é o desígnio que elegeram.

sábado, 7 de junho de 2025

Mentir

Gosto de ver o mar, mas tenho um conflito insanável com idas à praia. Nem sempre foi assim, mas deu-se em mim uma lenta metamorfose que me conduziu do amor – na verdade, uma amizade moderada – a uma indiferença e sensação de desconforto. Não odeio idas à praia, pois para isso teria de ter tido uma paixão avassaladora. Nada disso. A conjugação entre sol e areia não é a coisa que mais me agrada. Passo semanas junto ao mar, mas não ponho um pé na areia. Já a frequência de um bar de praia me é agradável. Posso ficar sentado a ver a ondulação, a espreitar o horizonte, a tentar decifrar o que se esconde para lá da linha.  As pessoas, confesso, não me interessam particularmente. Prefiro, perscrutar o movimentos dos barcos ou o voo das gaivotas. Só o meu neto terá poder para me arrastar para a praia. As netas já passaram essa idade e dispensam a minha companhia. Na verdade, bastam-se a si mesmas, como qualquer adolescente. Uma está já a abandonar a fase da adolescência. Contudo, gosto de fazer longas caminhadas perto do mar. A terra é o meu elemento, é nela que sinto o meu fundamento existencial, mas a água não deixa de exercer sobre mim um grande fascínio. Tudo isto poderia ser interessante, caso não fosse uma ficção. Quando alguém – talvez já com pouco controlo da sua saúde psíquica – se propõe escrever todos os dias, o mais natural é que venda a alma ao diabo. Não, não, não se trata de um pacto digno de Fausto, mas apenas o exercício de uma pequena venalidade: a mentira. Escrever ficções – grandes ou pequenas – é dispor-se a mentir. A partir de certa altura, mentir torna-se um imperativo, pois quanto mais falso for o discurso, mais verdadeiro será percebido. É esta a glória da ficção: mostrar como verdade aquilo que é falso. Foi por isso que Platão, ébrio pelo desejo de verdade, propôs a expulsão dos poetas da cidade. Não sou poeta, mas, no meu anonimato, sou dado à falsificação da realidade. Será que gosto de ver o mar? Será que não gosto de à praia? Seja qual for a resposta que dê a estas perguntas, ela será falsa.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Visitações

Uma moldura em forma de estrela de oito pontas. Nela, o retrato de alguém que não sei quem é. Na parte de trás, uma imagem com motivos coloniais. Pelo que veste, percebe-se que a mulher ali representada pertence a uma classe desafogada. O que está a fazer o conjunto diante de mim? Ignoro. Sei apenas que deve ter mais de um século, mas que se subtraiu aos efeitos da passagem do tempo, ou quase. Cada ponta da estrela termina com uma imitação de pérola ovalada, mas uma delas está caída. Olho demoradamente para aquela mensagem vinda de um tempo que não é o meu, mas não consigo decifrar o texto que ali se resguarda. Lá fora, uma máquina começou a trabalhar. Um ruído contínuo, irritante, também portador de uma comunicação. Recuso-me a escutá-la. Há coisas que é melhor não saber. Com o passar dos anos, estreitam-se as coisas que consideramos merecedoras de atenção. Até que chega o momento em que descobrimos que nada merece já atenção. É a prova de que chegou o fim da hospedagem nesta pequena casa a que se dá o nome de Terra. Intriga-me a fotografia, o formato da moldura, os motivos coloniais. O que tudo isso quererá dizer, agora que repousa na secretária onde escrevo? Daqui a pouco irei caminhar junto ao mar. Espero saber ler o ritmo das ondas e o voo das gaivotas, não como um áugure; apenas como um exegeta que se entrega, com paixão, à interpretação de um texto difícil, uma tarefa sem fim, pois qualquer texto contém em si uma aspiração ao infinito, que exige uma infinidade de interpretações.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Decepção

Há causas nobre – nobilíssimas, para ser mais exacto – cujas consequências são muito pouco nobres. Imaginou-se um dia que a alfabetização generalizada representaria uma elevação espiritual. Não se pouparam – não se poupam – esforços para alfabetizar as pessoas e, mesmo, para as dotar de índices de literacia assinaláveis. Os leitores de Homero seriam legião, Shakespeare e Pessoa estariam continuamente a ser impressos. Haveria clubes poderosos de leitores de Sófocles, de Kafka, de Mann, de Musil ou de Proust. Os resultados são decepcionantes. O mundo de leitores aumentou, mas os grandes autores continuam a ser – talvez deva ser assim – parte de um mundo restrito, de uma elite descabelada e sem préstimo. Contudo, o efeito mais espectacular dessa ideia nobre de colocar à disposição do grande número aquilo que sempre foi de poucos não está na decepção pela falência do propósito. O resultado desta nobre aventura é que o critério de separação da alta cultura se perdeu e Homero ou Hermann Broch valem tanto – na verdade valem menos – como um qualquer produtor de best-sellers. Um dia – não virá longe – perguntar-se-á por que motivo se há-de submeter os adolescentes à leitura de Camões, se não há quem lhe compre os versos. Repito-me, imagino que já aqui o terei escrito: como a má moeda expulsa a boa, também a má literatura expulsa a boa. Não apenas nos escaparates das livrarias, mas do horizonte cultural onde ela sempre existiu. Deixou de ser o padrão, para se tornar uma coisa tão trivial como as trivialidades que são despejadas torrencialmente nas livrarias. Devo estar cansado para vir com esta conversa. O cansaço tem sempre efeito surpreendentes, inclina-nos a fazer e a dizer coisas que nos interditaríamos. A coisa explica-se facilmente: aquilo que se pensa está – no estado de normalidade – cercado por um dique poderoso. O cansaço é como as grandes chuvas torrenciais, em que os cursos de água se assanham e levam tudo pela frente, mesmo os mais poderosos diques. É isto que me está a suceder. Ou talvez seja outra coisa que desconheço. Ou talvez não passe de uma necessidade biliar. As verdadeiras razões são sempre estranhas e dificilmente compreensíveis.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Anamnese

Fui jantar à baixa. Sim, aqui também há uma baixa, que se opõe à alta. O conflito não é social. Tão pouco é um conflito, apenas designações de uma geografia comum, uma maneira de dizer. Minha, note-se. Ninguém aqui chama baixa à baixa. Chamam-lhe centro, como se fosse o centro do mundo, o Omphalos, embora ninguém faça ideia do significado desta palavra aterrada aqui vinda directamente da antiga Grécia. Estou a desviar-me do assunto. Também é verdade que não tenho assunto. Sono é a única coisa que possuo, mas sem vontade de dormir. Depois de jantar, dei uma pequena volta por essa baixa. Observei com atenção casas antigas, de um tempo em que a vila – isto era uma vila, antes de cair sobre o país a tragédia das elevações a cidade – um tempo em que a vila, repito-me, tinha alguma influência, ou gente com influência. Dois governadores da chamada Índia portuguesa nasceram aqui. Tudo isso passou. No entanto, recordei-o hoje, há recantos belíssimos, de um romantismo antigo, daquele que ainda sonhava com a Idade Média. Isso recordou-me a época em que eu, pobre de mim, me achava deslocado no mundo moderno e sentia que a minha pátria era a Idade Média. Tudo isto, porém, era uma encenação privada que não partilhava com ninguém. Uma fantasia inocente, que não levava a sério, pois não passo de um ser conformado às comodidades dos nossos dias. No entanto, pensando bem, aquele tempo em que me sentia um homem da Idade Média era, na verdade, uma Idade Média. Os computadores eram seres que pertenciam a seitas esotéricas. Ter um telefone implicava anos de espera e a televisão era a preto e branco. Também é verdade que não melhorou quando foi colorida. Pelo contrário. Tudo era mais lento, havia poucos carros e as pessoas iam, aos domingos, ao futebol ou ao cinema, depois de terem ido à missa, as que iam. Foi disso que me lembrei, ao olhar o rio, as casas, as ruas, onde não vi ninguém conhecido. Depois, peguei no carro e tudo se apagou.

terça-feira, 3 de junho de 2025

Arquétipos

Ontem revi Casablanca, a velha e famosa obra de Michael Curtiz, com Humphey Bogart e Ingrid Bergman. A certa altura dou comigo a pensar que o filme está construído num pressuposto utilitarista. O utilitarismo é um corrente filosófica que defende que o valor moral de uma acção reside nas suas consequências. Elas devem promover a felicidade não do agente, mas do maior número possível de implicados pela acção. Rick (Humphrey Bogart) sacrifica o seu amor por Ilse (Ingrid Bergman) em nome de um bem maior, em favor da felicidade do maior número. Não é de admirar, pois a sociedade americana não era indiferente a uma certa tonalidade utilitarista. Todavia esta inscrição do filme de Curtiz na filosofia de Bentham, de Mill e de Sidgwick é secundária. Há, na cultura ocidental, um arquétipo de onde emana o acto de Rick: o Cristo que morre na cruz pela salvação dos homens. Aparentemente nada liga a figura do fundador do cristianismo e a do cínico proprietário de um café em Casablanca. A força dos arquétipos reside nisso mesmo: manifestam-se onde menos se espera. Aliás, muito facilmente se descobrem outras figuras arquetípicas provenientes da cultura judaico-cristã por detrás das principais personagens do filme. São estes arquétipos que dão profundidade às culturas humanas, enquanto as separam umas das outras e estabelecem entre elas um grau de incompreensibilidade muito mais rígido do que a incompreensão linguística. Traduzir palavras e frases é fácil. Difícil, se não impossível, é a tradução de arquétipos, pois estes persistem silenciosos e operam a níveis muito fundos do nosso psiquismo. Não seria possível a um realizador japonês, chinês, indiano ou muçulmano realizar Casablanca, tal como o filme foi concebido dentro da cultura ocidental.