quinta-feira, 17 de julho de 2025

Arbitrariedade geográfica

Percorri sem pressa o molhe. O céu nublado, as águas cinzentas, os barcos ancorados. Parece uma praia da Normandia, pensei. Como tudo na realidade se desconcertou, é possível que as próprias praias tenham mudado de lugar. Não é improvável, nos tempos que correm, andar, por exemplo, pela Beira Alta e encontrar uma pequena cidade alemã ou belga, com os seus habitantes perplexos por, sem darem por isso, terem mudado de lugar, apesar de não terem mudado de cidade. Nasci num tempo em que ainda havia um reflexo de uma ordem no mundo. Mas um reflexo de uma ordem já não é uma ordem, mas um caos que ainda não tomou consciência de si mesmo. As décadas foram passando e aquilo que estava oculto foi-se revelando. A arbitrariedade tornou-se a imagem de marca do mundo. Talvez por isso a Geografia seja, no concerto dos saberes científicos, uma área em crise. Quem pode mapear uma realidade física ou social, se os espaços perderam a fixidez que outrora os ligava à Terra, sendo agora a sua distribuição o resultado de um baralhar de cartas de um jogador amante do acaso? Digo para mim mesmo: conversa idiota de um velho do Restelo. O meu tempo passou e aquilo que é para ti desordem é a ordem rígida dos que agora começam a olhar com alguma atenção para o sítio onde chegaram quando nasceram. Contudo, não me sinto convencido e arquitecto uma outra teoria. A realidade espacial onde habitamos sempre dependeu do arbítrio. Nunca o jogador de cartas amante do acaso esteve ocioso na sua distribuição dos lugares. Contudo, os olhos e o coração são cegos para a realidade: precisam de muito tempo para começarem a ver e ainda mais para crerem no que vêem. Estou em Portugal, mas a praia por onde caminhei esta manhã era normanda. O que me preocupa agora é saber onde estará a praia que aqui estava. Talvez ela volte um dia destes. É possível, porém, que só retorne daqui a séculos. E amanhã, de onde virá a praia que aqui haverá? Deveria fazer um registo das mudanças, para memória futura.

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