quinta-feira, 5 de junho de 2025

Decepção

Há causas nobre – nobilíssimas, para ser mais exacto – cujas consequências são muito pouco nobres. Imaginou-se um dia que a alfabetização generalizada representaria uma elevação espiritual. Não se pouparam – não se poupam – esforços para alfabetizar as pessoas e, mesmo, para as dotar de índices de literacia assinaláveis. Os leitores de Homero seriam legião, Shakespeare e Pessoa estariam continuamente a ser impressos. Haveria clubes poderosos de leitores de Sófocles, de Kafka, de Mann, de Musil ou de Proust. Os resultados são decepcionantes. O mundo de leitores aumentou, mas os grandes autores continuam a ser – talvez deva ser assim – parte de um mundo restrito, de uma elite descabelada e sem préstimo. Contudo, o efeito mais espectacular dessa ideia nobre de colocar à disposição do grande número aquilo que sempre foi de poucos não está na decepção pela falência do propósito. O resultado desta nobre aventura é que o critério de separação da alta cultura se perdeu e Homero ou Hermann Broch valem tanto – na verdade valem menos – como um qualquer produtor de best-sellers. Um dia – não virá longe – perguntar-se-á por que motivo se há-de submeter os adolescentes à leitura de Camões, se não há quem lhe compre os versos. Repito-me, imagino que já aqui o terei escrito: como a má moeda expulsa a boa, também a má literatura expulsa a boa. Não apenas nos escaparates das livrarias, mas do horizonte cultural onde ela sempre existiu. Deixou de ser o padrão, para se tornar uma coisa tão trivial como as trivialidades que são despejadas torrencialmente nas livrarias. Devo estar cansado para vir com esta conversa. O cansaço tem sempre efeito surpreendentes, inclina-nos a fazer e a dizer coisas que nos interditaríamos. A coisa explica-se facilmente: aquilo que se pensa está – no estado de normalidade – cercado por um dique poderoso. O cansaço é como as grandes chuvas torrenciais, em que os cursos de água se assanham e levam tudo pela frente, mesmo os mais poderosos diques. É isto que me está a suceder. Ou talvez seja outra coisa que desconheço. Ou talvez não passe de uma necessidade biliar. As verdadeiras razões são sempre estranhas e dificilmente compreensíveis.

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