Releio Fome, o romance de Knut Hamsun publicado em 1890. Antecipa a revolução modernista. Conforme vou lendo, pressinto a incomodidade com que críticos e leitores fundados nas tradições rivais do romantismo e do naturalismo devem ter recebido a obra. Nem a subjectividade hiperbólica e exaltado do génio romântico, nem a subjectividade determinada pela hereditariedade ou pelo meio do tipo ideal ou clínico da personagem do naturalismo. O narrador protagonista, sem nome, é o retrato de uma subjectividade em colapso. Um leitor atento encontrará, por certo, tonalidades românticas e naturalistas, mas ambas superadas na implosão de um sujeito assombrado pela fome e tomado pelo desejo de escrever. Não é um tipo universal, mas também não é um herói singular. É apenas um pobre diabo que tem fome. Contudo, este pobre diabo esfaimado está mais próximo de cada um de nós do que as personagens romanescas anteriores. Não por causa da fome, mas porque é um pobre diabo. E é isso que somos, mesmo que a fome não nos atormente. A fome designa o desejo, a cujo império só poucos, muito poucos, conseguem furtar-se. É pelo desejo que se entra na confraria dos pobres diabos e é por causa dele que não saímos dali.
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