As segundas-feiras continuam tormentosas. Esta obrigou-me a um ir e vir que me fez atravessar grandes distâncias, apesar de curtas, pois são medidas em graus centígrados. Saí daquele sítio onde me acolho durante o ano com 38 graus e cheguei, aqui, passada uma hora, e estavam 23. Um milagre, dir-se-á. Um milagre confirmo. Por norma, as pessoas vêem como milagres coisas extraordinárias, alterações radicais da ordem do mundo. Ora, é na banalidade quotidiana que se escondem os milagres mais autênticos. Por exemplo, a possibilidade de transitar, com rapidez, de uma zona que parece a antecâmara do inferno, para uma colónia do paraíso. Não é na suspensão das leis da natureza que estão os milagres, mas nas próprias leis naturais que permitem coisas tão extraordinárias. Contemplar a ordem do mundo é assistir a uma sucessão de milagres. Eu sei que isto contraria a ideia de que milagre e ordem natural do mundo são coisas opostas. Isso, porém, é uma visão superficial. A ordem natural é o milagre por excelência. Já se imaginou o que seria o mundo se tudo fosse caos? Percebe-se de imediato que a transição do caos para a ordem é a coisa mais milagrosa que pode haver. Tudo isto, independente da causa eficiente dessa transição. Contudo, se esse milagre não tivesse ocorrido, haveria uma vantagem. Estes textos não seriam escritos. No caos não há escrita possível, pois os abecedários colapsam, as regras gramaticais e lógicas ficam à deriva e não se consegue encontrar um computador – o mesmo um simples lápis – que permita o frívolo exercício de escrever por escrever. Sim é um exercício frívolo, mas fruto de um milagre. Ou de vários.
Pode aí o milagre ser a consciência, que para levantarmos da cama e ir ao trabalho nos inventou esse teatro da realidade lógica, quando tudo que se não vê é caos. Esse teu eu lírico deve ser meu avô, um Machado original, é impressionante como me identifico com o que ele diz. E agora, como eu posso descender de um eu lírico lusitano? Será que eu existo?
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