domingo, 17 de junho de 2018

A natureza das coisas


A cidade reencontrou-se com a sua natureza. Um calor seco – quase que escrevia ‘um calor sórdido’, mas contive-me – caiu sobre as casas e as ruas, tornando tudo mais lento. Atravessei a antiga vila para uma visita familiar, mas logo me recolhi em casa. Aproveitei a tarde para acabar de ler Por favor, não matem a cotovia, de Harper Lee. Nunca tinha lido. Quando as histórias dos Finch se acabaram, pensei que este era um livro que deveria ter lido há muito, naquele tempo em que as férias eram exercícios intermináveis e os dias de calor inclinavam o espírito para a leitura. Há obras que se devem ler ainda num período de certa inocência. De preferência, em dias de calor, quando estamos encerrados em casa, presos ao rumor silencioso de uma pequena cidade exausta e de ânimo esvaído pela inclemência do sol.

domingo, 10 de junho de 2018

A província


Este tempo taciturno cobre a cidade com um espesso véu de melancolia. Atravessei-a há pouco e pensei que tínhamos sofrido uma regressão no tempo, pois a tristeza que desce dos céus esbate as cores e dá a tudo um ar cansado e arcaico. Eu sei que é uma ilusão, pois se tivesse havido uma regressão tudo seria mais brilhante e animado. Observo os castanheiros da avenida, a sua floração, este ano, é menos exuberante, penso. Nos passeios, um ou outro transeunte vai temeroso e apressado. A província é um exercício incansável de nostalgia e ruínas, a memória sombria de um mundo que acabou há muito.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Precariedade


É tudo tão precário, penso ao saber da morte de alguém que conhecia. Tento prender o tempo com as mãos, mas ele escorre-me entre os dedos. Um súbito raio de sol ilumina o casario, há paredes a cintilar, mas as brechas já fazem o seu caminho, marcham hirtas segundo o calendário da ruína. Se passo no centro antigo da cidade, o desconsolo inunda-me o olhar. Logo a razão me aquieta. Também as cidades estão sob o império do tempo. O coração protesta, mas a tirania que rege a vida é mais inflexível do que aquilo que supomos. Uma nuvem interpôs-se entre o sol e os meus olhos. Onde havia cintilação há agora uma cinza suave, secreta, precária. Oiço vozes e elas são já um passado que não retornará, presas na ruína dos seus próprios sons, destroços de um desejo que o tempo calará.

Um triste dia

Atravessei a cidade envolto no manto de tristeza que se desprende destes dias de Junho. E tudo me pareceu belo, quase perfeito. As pessoas iam e vinham, os carros trotavam vagarosos pela avenida, o castelo erguido contra o tempo. Oiço alguém a lamentar-se da invernia primaveril, mas vejo-lhe no rosto o prazer deste tempo sem calor, de luz turva, de água leve que desce, hesitante como uma virgem, sobre a terra. O rio, esse velho espelho esfarrapado pelo tempo, devolveu-me a música melancólica que me rumorejava no espírito e eu respirei fundo, certo que também a beleza dessa hora se desvaneceria sem deixar uma sombra, um vestígio no vidro da história.

sábado, 2 de junho de 2018

Junho


Junho chegou e nem dei por Maio se ter ido. Foi sem uma palavra, envolto em festividades, simulacros de um paraíso que se perdeu para sempre. Os dias passam por mim, vão rápidos, presunçosos, cheios de eternidade. Sinto a minha lentidão como uma sombra devorada pelo rancor do tempo. Nas ruas, os transeuntes apressam-se, a festa aguarda-os no bulício da tarde. Esperam no calor da multidão mitigar o frio que lhes habita a alma. Se alguém me interpela, eu calo-me. Não por indelicadeza, mas por não ter nada para dizer. Um pássaro canta na minha janela. Abro-a, o pássaro voa e o silêncio cai sobre mim.