quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Ferida narcísica

O melhor seria deixar de ler jornais, pensei ao ver a notícia do Público. Não há quem não se ache o fruto de uma ocasião única e especial. Nesta coisas ligadas à identidade e à existência, até os mais empedernidos socialistas se acham individualistas e, em segredo, liberais, filhos de projectos racionalmente planeadas para os tornarem naquele ser único e já pleno de iniciativa ainda mal concebido, especulei ancorado na minha triste formação filosófica. Acreditamos nisso como as crianças crêem no Pai Natal ou nesse ser benfazejo conhecido por Fada dos Dentes. E eu por que motivo haveria de ser excepção? Não era. Não era até hoje. Agora, porém, sinto-me abatido, terrivelmente.  O que descobri eu? Eu que nasci em Setembro, e por isso me achava tão virginalmente distinto, fui confrontado, amaldiçoado jornal, com o mais tenebroso dos colectivismos. Um estudo, feito por entidades respeitáveis, mostra que Setembro – isso mesmo, nove meses após o Natal – é o mês com mais nascimentos nos países de cultura cristã no hemisfério Norte. Não bastando isto, o nefando artigo ainda tem a desfaçatez de afirmar que os ciclos de reprodução humana são guiados pela cultura e coincidem com estados de espírito colectivos. Meu Deus, que fizeste tu da singularidade da minha concepção? Foi para me humilhares deste modo que inventaste o Natal? É assim que nascem, para abater o nosso orgulho pecaminoso, as feridas narcísicas, concluí eu, lembrando-me das figuras tenebrosas do Copérnico, do Darwin e do Freud. 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Metamorfoses

Esta é uma época em que desejamos que a lâmina afiada do sol penetre na nossa pele e se apodere do sangue, aquecendo-o para que o corpo, assim animado, posso calcorrear os dias que o calendário, esse deus inexorável, coloca diante de nós. É nisto que penso quando saio de uma livraria com as Histórias do Bom Deus, de Rainer Maria Rilke, na mão. O que me terá levado a comprar o livro, pergunto-me. O nome do autor? A curiosidade pelos contos de um grande poeta? A edição com um design retro? Enquanto desfio para mim mesmo as causas possíveis, entrego-me ao sol e sinto um calor agradável a invadir-me o corpo. As pessoas passam atarefadas. Algumas cumprimentam-me. Retribuo, e dirijo-me para casa. Na verdade, há uma razão suplementar para comprar o livro. Quando o tirei da prateleira e o desfolhei dei com o título de um dos contos que me inclinou definitivamente para a aquisição: “De que Modo o Dedal de Coser se Transformou no Bom Deus”. Pode-se pensar que há em mim um intuito blasfemo. Por exemplo, afirmar coisas como se o Bom Deus é, além de bom, omnipotente, nada o impediria de ter sido, em certas circunstâncias, um Dedal de Coser. A blasfémia, porém, é um estilo literário que não pratico. Dou longos passeios a pé, falo de coisas inúteis, desperdiço o meu tempo nisto ou naquilo, mas a blasfémia não consta da rapsódia de inclinações do meu carácter. O que me interessa é a metamorfose. Paro num dos passeios da avenida Sá Carneiro e olho as árvores, as pessoas que entram e saem dos bancos, os carros que se apressam para chegar a horas a lado nenhum. E, penso para mim, se Gregor Samsa, o infeliz caixeiro-viajante, se pôde transformar numa barata gigante, não é inverosímil que um Dedal de Coser possa metamorfosear-se no Bom Deus. O sol de inverno, reflicto, não faz muito bem. E o pior é se ele incide na cabeça.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Não sei

Da janela do meu escritório, avisto o hospital. Sombrio e lúgubre. Os fungos da humidade tomaram conta das paredes ainda há pouco brancas e resplandecentes. Agora é uma nódoa na paisagem, uma mancha que insiste em cravar as garras da sua solidão no meu horizonte. Bocejo. É o que faz deitar tarde e levantar cedo, penso. O melhor seria dormir uma sesta, mas estou comprometido com o baby-sitting das minhas netas. Acho que elas preferiam que eu dormisse. Terão as suas razões que, como todas as razões infantis, são enigmáticas. Conjuram no quarto não sei que aventura e, como é hábito, não tardam em  invadir-me o escritório, para se sentarem na secretária da avó e brincarem, pobres infelizes, às escolas. Chegam e uma diz para a outra: vá, diz sim ou não, não sei não é resposta. E eu fico siderado por tanta autoridade a transbordar de uns sete anos ainda por fazer. Olho pela janela, o sol esbranquiçado cai em borbotões sobre a rua e pergunto-me se ela alguma vez irá saber que a única resposta que temos, seja para o que for, é não sei. Vá, insiste ela, diz sim ou não.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Perfeição

Um frio glorioso caiu sobre a cidade, cobriu-a de um veludo vítreo e negro, onde, a custo, se avistam vultos que lutam para chegar a casa. A náusea da repetição, pensei, de fazer sempre a mesma coisa, dia após dia, semana atrás de semana, chega a ser uma bênção. Tudo parece ter um destino e cumpri-lo com perfeição. Também eu pertenço a essa perfeição nauseante, constatei, enquanto o frio se cerrava sobre a face. Talvez vivamos mesmo no melhor dos mundos possíveis, passou-me pela cabeça ao atravessar a passadeira, enquanto alguns carros paravam solícitos, também eles habituados à perfeição com que a vida se regula. Quem passa por mim vai em silêncio e mal olha para as iluminações de Natal. Pelo contrário, eu olho-as e sinto uma tristeza tão grande que logo deixo de crer que se viva no melhor dos mundo possíveis. Sou volúvel, constato ao mudar de opinião. Se este fosse o melhor dos mundos, poderia haver guerras, homicídios, violências, coisas que há em todos mundos. Não haveria por certo, iluminações de Natal que nos inclinam para a tristeza. Aventuro-me em direcção à farmácia. Ali tudo é claro, nítido e lança sobre o coração do paciente a ilusão de que haverá sempre, neste ou noutro mundo, uma cura à sua espera. Não há, e isso, que deveria entristecer-me, tranquiliza-me.

domingo, 17 de dezembro de 2017

A luz branca

A luz branca deste domingo cai sobre a cidade como um véu. E assim veladas as pessoas passam devagar na avenida, respiram lentamente, esperam por certo que o sol as aqueça. Algumas deambulam atreladas a pequenos cães. Há quem corra solitário para alcançar a boa forma que nunca haverá de chegar. Um ciclista, daqueles que se equipam da cabeça aos pés, apeia-se, abre o grande caixote do lixo verde e deita qualquer coisa lá dentro e regressa, em paz com a sua consciência, ao selim e à azáfama de pedalar. As árvores, medito, têm um singular destino. Umas despem-se no Inverno, enquanto as outras, tomadas por um pudor ancestral, persistem em manter o folhedo que as cobre. Há quem diga que possuem folha persistente. Prefiro pensar que sofrem de um embaraço contumaz. E é para isto que serve a luz branca que cai, naquele segredo invisível da onda-corpúsculo, sobre as coisas. Para que alguém as possa ver e descrever, não na sua essência, mas nos acidentes em que elas se manifestam. Os carros teimam em não deixar de passar. Vão lentos, temerosos, também eles são um acidente que nenhuma essência salvará. Os domingos são sempre dias incompreensíveis.

sábado, 16 de dezembro de 2017

A praça

Passei há pouco pela Praça 5 de Outubro. Parece uma viúva a tiritar de frio, pensei ao olhá-la. Depois, disse para mim mesmo: estas analogias não têm pés nem cabeça. E fiquei a contemplá-la no abandono que é o dela, perdida a remoer pensamentos obscuros, a desfiar perfídias e vinganças, enquanto uma ou outra sombra a atravessavam. Há lugares que gostaríamos que fossem eternamente aquilo que, um dia, foram para nós. A eternidade, devia sabê-lo de cor, não é um atributo das coisas humanas, nem sequer dos lugares que fervilharam de vida. O espírito que em tempos a animou retirou-se, discorri. Alguém, apressado, acena-me e desaparece no crepúsculo. Demoro-me mais uns minutos, olho-a lentamente, deixo que uma ou outra recordação venha até mim. Depois, rodo a chave na ignição, engreno a primeira e faço o carro deslizar dali para fora. Não devemos perturbar a viuvez de uma viúva. Exclamei, sem que ninguém me ouvisse.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Esperar

Fechei devagar a porta da sala e saí. Tinha acabado, pelo menos por uns dias. A tarde começara cinzenta, mas não deixava de ser tocada por um halo de esperança. O ruído dos intervalos ficava para trás. Quando passei pelo portão, respirei fundo. Haverá ainda dias de reuniões e papéis, de actas e do resto, sempre tão elusivo, que é necessário para satisfazer a fome insaciável do Leviatã moderno. Tudo isso se não servir para mais nada, há-de valer para a remissão dos meus pecados, ponderei sem entusiasmo. Paro na passadeira junto ao tribunal. Apressado, um homem, porventura um advogado, atravessa-a. Aonde o levou aquele passo rápido? Não o cheguei a perceber. Talvez o esperasse alguém perdido no labirinto de um processo ou talvez fosse a mulher, impaciente e pouco solícita, com a toga que ele teria esquecido em casa. Nunca se sabe o que atormenta as pessoas e as precipita mundo fora. No semáforo, logo a seguir, torno a parar. Como acontece sempre, a Antena 2 perde o sinal e o carro mergulha no silêncio. Espero. E é tudo o que resta a um mortal, esperar. O quê? O melhor é não o saber. Lá atrás, ficaram as salas fechadas, pensei, enquanto o Quator de Messiaen retornava e estendia sobre mim a luz dolorosa que é a sua. É sexta-feira, pensei.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Oblívio

Sento-me e pego num livro, do poeta Daniel Jonas, denominado Oblívio. Como os amores, também há títulos perfeitos, concluo. Oblívio é a fase da existência em que entrei. Assim como antes a memória era excessiva, agora o esquecimento progride sorrateiro mas voraz. E com isto esqueci-me do que queria vir aqui contar. Não sei se um episódio que me atormentou o dia – mas qual? – se uma descoberta que a noite me trouxe. E é neste oblívio que tento navegar no mar encapelado da vida. O melhor seria ir dar uma volta e fumar um cigarro, talvez me lembrasse, mas não sou animal noctívago e há tempo que não toco em tabaco. Vale-me o título do livro que se estende para mim como uma mão solidária, como quem diz que, em matéria de esquecimentos, não estou sozinho no mundo. O melhor, penso, será seguir o conselho do poeta: “Pedala, vá pedala, não faz mal; / De tanto pedalares, nesse tour / De igual cenário és um novo Artur, / Um velho visionário pelo Graal.” E escrito isto, logo me lembrei que, depois de jantar, não consegui recordar-me se tinha tomado o comprimido para a tensão arterial. 

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O ardil

Dezembro deixou que os dias se contaminassem de festividades. Nem o frio bastou para evitar a algazarra que de tudo há-de tomar conta. São dias de alarido, penso, enquanto rasgo a noite com a luz dos faróis. O calendário é, sei-o bem, uma fortaleza inexpugnável, uma emanação da frieza cósmica para nos agarrar pela coleira e pontapear para dentro da vida. Ou da morte, acrescento em silêncio. Ao sair do carro recebo a carícia do vento e olho para o café ao lado de casa. Há muito que não entro ali. Outrora, sabia o que poderia fazer num café. Agora, tudo se me estranhou e evito o deambular à procura de uma mesa. Talvez esteja num processo de regressão vegetal, mas a humanidade tornou-se muito pesada. A noite está fria e eu olho o café, a luz que nasce dentro dele para morrer na tristeza dos olhos de quem passa. Se eu entrasse lá agora? Um casal de namorados entra, enquanto duas senhoras, talvez casadas, saem. Na verdade, o mundo é feito de estranhas compensações, constato. Ah se eu entrasse ali, tudo se desequilibraria. O melhor é ir para casa, resguardar-me de Dezembro e dos pensamento que, como tentações, me entregam ao ardil do inimigo.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

A fístula

Uma fístula, veja lá. E agora tem de ser operado para a fecharem. Coitado, uma fístula entre a traqueia e o esófago. Ele há cada coisa. Se há, pensei, enquanto as duas mulheres se afastavam de mim, para se perderem no outro lado da estrada, arrastadas por um cão insignificante, desejoso de ir cheirar os troncos húmidos pelas últimas chuvas ou por alguma cadela transida de cio. Têm razão, concluí, enquanto elas se dissolviam na atmosfera espectral que a noite derrama no frio dos dias de Dezembro. Não há nada pior do que fístulas, podem crer. Aliás, o mundo não passa de uma rede fístulas por onde comunicam coisas que nunca deveriam comunicar. Se houvesse menos comunicação, os dias seriam mais fáceis, asseverei a mim próprio, talvez sem me convencer. E enquanto seguia o meu caminho, ia arquitectando todo um sistema de oclusão de canais. Via-me já como um grande cirurgião especializado em tratar das fístulas do mundo que põem, para desgraça universal, toda a gente em comunicação com toda a gente. E assim cheguei à porta do prédio onde moro. Uma, duas, três vezes, e nada. Não consegui abri-la. Malditos códigos, não há nada como fechaduras com chaves. A fístula que me haveria de levar da rua ao elevador estava obstruída. São cruéis os deuses, meditei inquieto. Não perdem uma oportunidade para nos fazerem a vontade.

domingo, 10 de dezembro de 2017

A faca

O dia cresce como uma faca espetada no peito. Oiço-o a rasgar a carne, enquanto a pulsação enfraquece e a respiração entrecortada faz-me entrar num estupor, talvez a esperança de que imobilidade do corpo arraste a do tempo, e tudo fique suspenso nesta glória eterna. Os domingos são traições à esperança na eternidade, penso. Por isso, os homens iam à Igreja para se lamentarem da fraqueza da carne. Ou talvez fossem para ver as mulheres ou nem isso. Sei lá o que ia ou vai na cabeça dos outros, se nem na minha sei o que se passa. O pior é a carne dilacerada pelo tempo que passa, como se este fosse uma conspiração do espírito para sublinhar a sua superioridade perante a falência sem fim do corpo. Agora, gostaria muito de moralizar, mas falece-me o talento e a vontade. Bem na minha frente, a alguns passos, uma mulher compõe o cabelo, passa nele a mão húmida e assenta-o, como se ainda tivesse um poder para amainar os ventos. Não tem. E nem ela nem eu o temos para parar a grande faca do tempo a ranger nos músculos deste domingo. O melhor é não ser complacente.

sábado, 9 de dezembro de 2017

A rapariga cega

Os dias deslizam para o Natal e a minha memória resvala para territórios que o tempo corrompeu. Na rua, carros e pessoas passam esmagados pelo peso da quadra que se aproxima. E eu olho-os da minha janela e finjo-me inocente de tantas preocupações. Depois, a minha avó chega-me apressada à casa da memória. Vem com os cabelos brancos que sempre lhe vi, e eu recordo-me dos dias em que brincava na despreocupação do quintal que havia na sua casa térrea. Nessas alturas haveria por lá um ou outro primo, mas tudo era muito diferente de hoje, o cobalto do céu era mais vivo e nada ainda tinha caído na ruína da recordação. O quintal era dividido de um outro, talvez por uma paliçada de canas ou por um muro, não sei bem, pois o que recordo é a cobertura, a que chamavam enleio, de campânulas roxas e que a tudo ocultava. E foi desse outro quintal que veio o objecto do meu primeiro amor. Uma voz feminina. A pronúncia, o ritmo, as próprias palavras fascinavam-me, tão diferentes do que me era dado ouvir, e eu, sem o saber, era tocado por Eros, desejando o meu coração, mais que o corpo imaturo, que aquela voz não se apagasse e desabasse em silêncio dentro de mim. Um dia soube, não sei bem como, que quem assim falava era uma rapariga bem mais velha e, digo-o ainda com emoção, cega. Fiquei atónito. Como seria possível que aquelas palavras saíssem da boca de alguém que não via? Os primeiros amores, esses que não sabemos sequer que o são, trazem já consigo a ferida narcísica que rasga a carne para que a realidade entre pelos olhos dentro. Julgo que nunca a vi, talvez ela não saísse de casa, e a sua voz, que um dia foi em mim o murmúrio de Afrodite, foi-se extinguindo até não ser mais do que um amontoado de palavras partilhado na insipidez de uma rede social.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Humidade

Há um véu de humidade sobre as ruas. As pessoas caminham pelo Outono com trejeitos de invernia. Piso as folhas e lembro-me dos plátanos de uma casa onde vivi. Já vivi em tantas que lhes perdi a conta. Algumas ainda pesam como uma sombra. Perderam as portas e as janelas, perderam a configuração do espaço que tiveram na minha vida, mas ainda ressoam nelas as vozes dos que já morreram. Há dias, como o de hoje, em que me levanto e penso nos meus mortos. Talvez precise de falar com eles. Ou eles precisem de me dizer alguma coisa. Mas continuamos obstinados. Eles no seu silêncio; eu na minha surdez. E assim desabamos no embaraço da saudade e da obstinação. Aquilo de que queria falar era de árvores no lume brando destes dias, mas já não sei o que hei-de dizer. Passa por mim, esbaforida, uma mulher. Trauteia uma melodia que desconheço. Vejo-a a afastar-se e percorrer o grande corredor do Outono onde, percebo-o bem, abrirá a porta do Inverno. Esta é a minha cidade e ninguém, além de mim, sabe o seu nome, uma palavra feita de humidade e luz, bela como uma lâmina a deslizar na rasura da pele.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Dogmas

Ao atravessar a cidade, já a tarde tinha declinado na escuridão da noite, lembrei-me de que amanhã será feriado. E fiquei grato ao Papa Pio IX e à sua Bula Ineffabilis Deus, onde  declara, pronuncia e define a doutrina da Imaculada Concepção de Maria. Contrariamente ao que ensino aos meus alunos, a quem louvo os méritos da razão crítica e da submissão do dogma ao colírio da dúvida, há em mim um certo culto pela dogmática, uma espécie de licença sabática para os devaneios da razão. E ainda mais maravilhado fico se um dogma tem tanto poder que consegue roubar os homens aos afazeres que a corveia da necessidade lhes impõe. Meditando assim no mérito da bula papal, deixo o carro deslizar, enquanto olho para as iluminações de Natal, onde alguns dos adereços quase fazem lembrar um crescente. Não chego a ficar perplexo, pois tenho de entrar numa rotunda, acautelar-me de algum condutor imprevidente, e logo o pensamento me foge em direcção à bênção, ou à graça, que, no longínquo ano de 1854, Pio IX decidiu derramar sobre todos nós. Amanhã suspendo a razão e deixo deslizar, com demora, o dogma pelo meu dia. Assim o espero.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Verdade e versos

Olho a rua e sinto toda a verdade que se esconde num verso de Eugénio de Andrade. “Com o sol a trepar pelas árvores”, escreveu, há muito, o poeta. E é isso que vejo, nesta manhã, antes de ser tragado pelos monstros que, dia após dia, devoram a vida dos homens. Olho pela janela e os monstros desaparecem, refluem para o lago que, subterrâneo, desliza dentro de mim, tecendo, com zelo, a minha perdição. O sol trepa pelas árvores, penso. Por vezes, canta nos verdes outras sussurra nos amarelos, mas nunca deixa de trepar ramos acima, mostrando a verdade de cada árvore na verdade de um verso. Rio-me ao pensar na mistura de verdade e versos. Deveria seguir a lição de Platão e expulsar o poeta da cidade, ficaria mais tranquilo. Nada pior do que ficções, recordo. E nesse instante, entre o verso de Eugénio de Andrade e a indisposição de Platão para com a poesia, penso que o próprio Platão seria o poeta que deveria ser expulso da cidade. Assim como o sol trepa pelas árvores e eleva-se aos céus, também os homens dizem, as mais das vezes, o contrário daquilo que sentem. Se fossem árvores, não o diriam, e eu não escreveria estas palavras sem utilidade, nem propósito, nem verdade.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Castanheiros

Quando cheguei a casa descobri que me tinha esquecido dos óculos de ler na escola. Nada a fazer senão mergulhar na noite e atravessar a cidade. Havia muita gente em trânsito. Os carros deslizavam devagar e os peões eram sombras que se desvaneciam nos passeios. Os castanheiros da avenida estão agora lacrimosos. Quando se aproxima o Natal, descarregam sobre eles uns fios semeados de pequenas luzes, como se isso os tornasse mais adequados a uma época que não é a deles. O que vale é que, estóicos, suportam tudo, mesmo os desvarios dos homens. O seu reino virá mais tarde quando florirem. É isso que lhes importa. Como os castanheiros, também os homens deveriam apenas preocupar-se com o que lhes importa, com essa hora em que hão-de florir, especulei ao deixar a avenida. Como sempre sou dado a ilusões e deixo-me arrastar por analogias cujo sentido logo me parece bizarro. Por que razão haveria de florescer um ser humano? Nem flores nem frutos, pensei. E apressei-me para descobrir onde tinha deixado os óculos.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Segunda-feira

As segundas-feiras, com o seu excesso de realidade, não deixam de ser dias enigmáticos. São como uma rede desmedida que captura os homens no mar do ócio e os descarrega no porão do trabalho, onde prestam o forçoso tributo à necessidade. Também eu sou levado na rede e, ao cruzar-me com outras vítimas da grande captura, nunca deixo de me espantar com o seu ar de felicidade. São múltiplas as causas que movem os homens, penso então, perdido nestas manhãs de frio cortante. O melhor é entregar a felicidade de cada um àquilo que o anima e deixar-me de enigmas com temperaturas tão baixas. Metáforas não aquecem ninguém e, numa sala sombria, haverá gente à minha espera, para que eu lhe fale de coisas que ninguém quer ouvir e que eu, se não tivesse tanta propensão para a irrealidade, me absteria de dizer. Não são dias fáceis as segundas-feiras. E o pior é que não chove.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Domingo

Quando, esta manhã, saí de casa assaltou-me uma dúvida. Esta não nasceu da falta de luz. Pelo contrário, havia aquela luz exuberante dos dias frios, uma luz que, ao derramar-se sobre a terra, consegue enganar até os menos incautos, segredando-lhes que não se caminha para o Inverno mas para o Verão. A dúvida, porém, não tinha a ver com a luz terminal do Outono, mas com o domingo, o sétimo dia, aquele que Deus escolheu para descansar do trabalho da criação, tão satisfeito estava, pois tudo o que tinha fabricado era bom. Se Deus, em vez de ter criado o mundo quando o criou, o fizesse hoje, pensei, será que descansaria ao domingo, mesmo que este fosse o sábado dos judeus? Trabalharia ele, o grande operário, por turnos ou cumpriria um horário regular, entrada às oito e saída às dezassete? O sol, apesar do brilho, não me aquece a alma e, ao caminhar, entrego-me a estas meditações plenas de heresia. O melhor seria não as partilhar, mas já é tarde para conseguir uma reputação aceitável. Encontro pessoas endomingadas e outras perdidas na contagem dos dias da semana e penso na minha infância. Nesses dias, tudo era claro. Um domingo era um domingo. Com a mãe, ia à missa. Com o pai, ao futebol. E Deus olhava-nos com benevolência entre a homilia e um penalti falhado. Agora, a mãe assiste à missa na televisão, o pai há muito que decidiu, para minha tristeza, perder os jogos por falta de comparência, e Deus, ora o que se há-de dizer dele? Ficou cego? Cansou-se? Há quem diga que foi de férias e que, endomingados ou não, proclamou que já era tempo de tomarmos conta da nossa vida. O sol, concluí, engana-nos e faz-nos pensar em coisas que não lembram a ninguém.

sábado, 2 de dezembro de 2017

Flatland

De tarde, ao sair de casa, estava um sol frio, um sol natalício. Não tarda e o Natal está acabado, pensei. Os carros saíam e entravam para o estacionamento de uma superfície comercial. Perante a azáfama, fiquei a meditar na estranha designação. Superfície comercial, como se nós, pobres mortais, pelo acto de comprar e vender ficássemos reduzidos a seres bidimensionais a viver numa espécie de flatland. E enquanto caminhava por dentro do frio, pisando, sem piedade, as folhas ressequidas espalhadas pelo passeio, meditava na mensagem oculta por detrás de tal designação. As pessoas passavam por mim, indiferentes à minha meditação, e iam com o rosto cheio de Natal. O mundo está prenhe de coisas improváveis, coisas como superfícies comerciais ou rostos cheios de Natal, concluí eu, enquanto me apressava para fugir da noite que o céu, indiferente, anunciava. As tardes estão muito pequenas, pensei, mas ninguém ouviu os meus pensamentos. Ou talvez tivessem ouvido e não soubessem o que responder.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

As folhas mortas

Sento-me sob o sol desmaiado da tarde e deixo que ele desça sobre mim. Vejo os ramos do arvoredo a balançar, um vento frio toca-os e, uma a uma, arranca-lhes as folhas secas. Ao fundo, os carros passam devagar, como se esperassem mais alguma coisa de um dia que nada mais tem para lhes dar, a não ser a permissão esquiva de passarem lentamente. Fixo-me nas folhas. O vento açoita-as e elas entregam-se a uma dança acrobática antes de poisarem, secas, leves e mortas, tão mortas, no chão. E em cada folha, vejo-me a ser arrastado pelo vento, vejo-me livre em plena queda que me conduz para a terra que há-de ser a casa da minha eternidade. Dezembro é um mês frio, pensei. Ergui-me e admiti, após breve exame, que raramente escrevo sobre pessoas. A minha alma pertence ao deserto, exclamei, mas não havia ninguém para me ouvir.