domingo, 22 de outubro de 2023

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Poluir as almas

Passo os olhos pela imprensa, nacional e internacional, a guerra entre Israel e Hamas é apresentada como se fosse um jogo de futebol. Não é caso único. Só falta montarem um sistema de apostas. A comunicação social tem um enorme poder de degradação. Ela dirige-se à massa e explora as pulsões mais baixas que habitam os homens. Fá-lo com grande avidez, pois parece ser difícil viver de informação rigorosa, contida nos limites da decência, mostrando perspectivas rivais, não através de emoções, mas de razões. A ideia reguladora, vinda do Iluminismo, de uma esfera pública assente em informação séria caiu às mãos da exploração das paixões e das afecções para assegurar audiências. Muitas vezes apresentada como o quarto poder, a comunicação social não percebeu que o seu poder é um poder de degradação. Degradação de si mesma, das instituições, mas também das pessoas, da alma das pessoas. Uma guerra não é uma competição desportiva, as metáforas a usar terão de ser diferentes. De preferência, a linguagem deveria ser o mais objectiva possível e evitar o tropo que incendeia a imaginação. Apresentar a guerra como um jogo de futebol é banalizar a guerra. Um exemplo da banalização é o aviso que locutores de televisão fazem: chamo a atenção para a violência das imagens. Estão a falsificar a realidade. As imagens são apenas imagens, como as do cinema ou das séries, nelas a violência está rasurada, pois quem vê a imagem não está em contacto com a realidade. A exibição serve apenas para degradar o espectador, para lhe produzir uma emoção instantânea que será de imediato substituída por uma outra emoção, talvez de um jogo de futebol ou do assalto à ourivesaria da esquina. Um trabalho que nunca acaba de poluir as almas, para utilizar uma palavra caída em desuso.

domingo, 15 de outubro de 2023

O peso do ambiente

Conforme vou lendo o romance, mais ele me recorda O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati. Refiro-me a A Costa das Sirtes, de Julien Gracq, na tradução de Pedro Tamen. Há na obra qualquer coisa de espantoso. Não se trata da intriga que compõe uma geopolítica imaginária, coisa que podemos encontrar em Ernst Jünger, mas o poder descritivo de Gracq. Muito mais do que pelo diálogo e pelas cenas de acção, é através da descrição das geografias interiores dos protagonistas e das geografias exteriores – sejam edifícios, como o almirantado, sejam as paisagens onde se desenrola a acção romanesca – que o romance se vai desenvolvendo. O uso sistemático da descrição visa criar uma ambiência e, a certa altura, o leitor pergunta-se, tal como em O Deserto dos Tártaros, se não será essa ambiência a verdadeira protagonista da narrativa. O romance moderno, na sequência da afirmação da subjectividade e da descoberta do indivíduo, centra-se em heróis ou anti-heróis, agentes autónomos que buscam os seus fins. O que pode ter ficado de lado no deslumbramento moderno com o indivíduo é a dependência dos protagonistas do ambiente onde vivem, o qual os trabalha e os conduz para que realizem certas acções que não estavam nos seus desejos, mas às quais não puderam escapar. Foi isso que a leitura do primeiro terço do romance me fez pensar. Pode ser, não o nego, o efeito de ler durante as horas de sono. Não é inverosímil que a compreensão da obra esteja a ser afectada pela rêverie que aquelas horas de insónia sempre proporcionam.

sábado, 14 de outubro de 2023

Naturezas mortas

Na sala, há quadros com motivos de caça. São aves mortas por um tiro certeiro penduradas numa parede. Verdadeiras naturezas mortas. Estou fora do meu ambiente, estranho as pinturas. Pertencem a um mundo que, definitivamente, não é o meu. Como todos nós, sou descendente de caçadores-recolectores. Sem a caça a espécie não teria sobrevivido e eu não estaria a escrever estas palavras. Imagino, porém, que alguma coisa se terá perdido no caminho. Talvez os nossos antepassados caçassem num acto ritual e ficassem gratos à vítima por lhes dar a sua carne e a possibilidade de continuarem a viver. Hoje a caça, continuo a devanear, é um exercício fundado não na estrita necessidade, mas na satisfação de um prazer egoísta, que encontra o seu objecto na morte do animal. Não haverá diferença para os animais que morrem, mas a forma como são mortos afecta o espírito e manifesta o carácter de quem os mata. É o que me ocorre neste sábado, em que me perdi por terras do Alentejo, onde tudo parece pertencer a um outro mundo, mais branco, mais silencioso, mais lento, mas talvez mais dissimuladamente violento.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Libertação

Os dias úteis desta semana dediquei-os a auscultar as minhas possibilidades literárias em diversos géneros. Comecei pelo apocalipse, passei para as teorias da conspiração, espreitei o gag humorístico, experimentei a reflexão filosófica. Tudo debalde. O melhor que consegui foi uma ou outra frase kitsch. Contudo, tal como estão os tempos, o género literário mais urgente é o profético. Dedicar-se à profecia é penetrar no inexistente para encontrar o que ali existe e, depois, como um Papa, anunciá-lo urbi et orbi. Não estou a dizer que os Papas são profetas, apenas que fazem proclamações à cidade e ao mundo. Sofro de uma limitação que impede a dedicação a esse género literário. Cada vez que penetro no inexistente deparo-me com o nada. Isso prova que não tenho um dom para a profecia. O inexistente não é outra coisa senão o futuro. Como vivemos sempre no presente, o futuro é coisa que está para vir, mas que ainda não veio, e não veio porque ainda não existe. Pode-se argumentar contra esta ideia. Imagine-se o seguinte. Alguém está num café à espera de outra pessoa, digamos o amador espera a coisa amada. Enquanto ele espera, ela ainda não chegou, a sua chegada será no futuro e a própria coisa amada é uma promessa que virá no futuro. Isso, porém, não significa que ela, a coisa amada, não exista. Existe. Portanto, há coisas que existem no futuro. Talvez os profetas sejam amadores de grande perspicácia e não se importem de esperar no café que chegue até eles aquilo que está no futuro. Há muito que deixei de frequentar cafés e ainda há mais tempo que deixei de esperar neles que alguma coisa me chegasse vinda do futuro. Tudo tem o seu tempo e o meu tempo de profeta, na duvidosa circunstância de o ter tido, passou. Vale-me hoje ser sexta-feira, fim dos dias úteis desta semana. Libertei-me desta auscultação das minhas possibilidades literárias.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Preocupações

Preocupa-me, a sério que me preocupa, o mundo. Não o que se passa na Terra, mas no mundo como totalidade. O que me tem estragado o dia é a indecisão em que a minha mente caiu. Será que o mundo teve um começo ou é eterno? Se ele teve um começo, o mais plausível pensar é que terá um fim. Se o mundo tiver um fim, o que poderá acontecer? A resposta mais óbvia é: não vai acontecer nada, pois nada existe que possa sofrer modificação e assim se possa falar de um acontecimento. Se, porém, o mundo é eterno, então instala-se uma monotonia sem fim, pois os acontecimentos sucedem-se sem parar, e por diferentes que sejam, o próprio suceder torna-se monótono. A princípio pode-se achar graça, as pessoas sentem-se num filme de acção onde sempre se passa qualquer coisa de vibrante, mas se o filme tiver mais de duas horas, o espectador começa a mexer-se na cadeira, cansado de tanta acção e deseja que o filme tenha um rápido fim. É isso que acontece connosco, seres humanos. A história do mundo começa a cansar-nos, o trepidar sem fim dos eventos exaure-nos a paciência. É por isso que morremos. A morte deriva directamente da eternidade do mundo, é uma defesa contra a monotonia que uma existência eterna sofreria perante um mundo sem começo nem fim. Pode-se argumentar, e haverá quem o faço, que essa explicação da mortalidade humana só faz sentido caso o mundo seja eterno, mas se não for? Neste caso a explicação muda, claro. Muda porque as condições também são diferentes. Morremos por solidariedade com o mundo. Sendo ele finito, não faria sentido que nós não nos irmanássemos no seu destino, antecipando-o, para dar coragem a esse mundo que um dia irá acabar. Não consegui resolver o dilema sobre se o mundo teve um começo ou se será eterno, mas encontrei duas explicações irrefutáveis sobre a mortalidade humana. Este é o meu contributo semanal para o progresso do conhecimento no mundo.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Kitsch

Existe uma escala de degradação das aptidões escriturárias. Há dois dias vi que me faltava talento para escrever apocalipses. Ontem baixei a fasquia, mas também não tenho capacidade para ser um escritor de teorias da conspiração. Hoje analiso se tenho poder para escrever piadas, daquelas que são idiotas, mas que fazem rir as pessoas. Ora, escrever uma coisa idiota não me é difícil, mas não faz rir ninguém. Nunca inventei uma anedota e não uso o chiste, a ironia está-me vedada por natureza, natureza minha. É deprimente, mas esta é a verdade. Se escrever tragédias nunca me ocorreu por razões óbvios, podia ser que escrevesse comédias, não comédias a sério, mas uns pequenos gags para animar a conversa em grupo. Nada, porém, me ocorre, falta-me a finesse d’esprit orientada para a ironia. Isto transportou-me para uma experiência cinematográfica dos últimos dias. Vi diversos filmes de Nanni Moretti. Estes podem dividir-se em dois géneros. O drama, onde Moretti actor e os filmes que faz são tensos, e o filme político. E é este o mais interessante para o assunto de hoje. São comédias, onde somos levados a rir da personagem, das suas convicções, do modo como ela se relaciona com as ideias que tem sobre o mundo. Não se está perante um clown, mas diante de um exercício de relativização das crenças que talvez tenha a sua raiz em Cervantes, descobrindo-se uma personagem quixotesca no lugar de um militante cego pelo sol das suas convicções. Esta última frase era dispensável, mas não resisti a um bocadinho de kitsch. Voltando ao meu caso, incapacitado para o gag, estou confrontado com a realidade. Restam-me as frases kitsch, como a que diz o crepúsculo enovela-se sobre si mesmo, abrindo o caminho por onde passarão os cavalos da noite.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Fundamentalistas dos textos

Hoje passou-me a vontade de escrever apocalipses. Só de pensar no assunto fico exausto. Mais interessante seria escrever teorias da conspiração. Tenho, porém, um ponto fraco. Falta-me a alma de conspirador, o que me impediu de ser o quadragésimo primeiro conjurado na revolta do 1.º de Dezembro de 1640. Tivesse eu essa alma, e a história seria diferente, pelo menos no número de conspiradores. Há quem me afiance que aqueles que escrevem teorias da conspiração não conseguem conspirar contra coisa nenhuma, exercício que exige disciplina, realismo, cálculo de probabilidades, intuição para a teoria dos jogos e capacidade de acção dento dos limites estreitos das possibilidades. Os escritores das teorias da conspiração, apesar de anónimos, são desprovidos de disciplina e contacto com a realidade, não sabem calcular, não imaginam que exista uma teoria dos jogos e poder de acção é coisa que neles não existe. Em suma, falta-lhes, como a este narrador, a verdadeira alma de conspiradores. Então derramam nos processadores de texto – os conservadores fazem-no em papel – as mais alucinadas teorias. Eis uma outra faculdade de que estou desprovido, a da alucinação. Por vezes, alucino um pouco nestes textos, mas é mesmo tão pouco que chego a pensar que são descrições hiper-realistas do mundo. Com tudo isto, consegui perceber a razão que me impede de ser um escritor de teorias da conspiração. Tenho um poder de alucinação muito baixo. Quase que se pode dizer que sou impotente, o que pode ser uma coisa boa para o mundo, pois é menos um a multiplicar maluquices. Contudo, o problema não está tanto em quem escreve teorias da conspiração, mas nos leitores que lêem essa literatura. Levam muito a peito a suspensão da descrença, que no dizer de Coleridge é essencial para seguir uma história ficcional. Nas teorias da conspiração, encontramos aquilo que o poeta inglês diz ser necessário para suspender a descrença: a teoria implausível deve ter um interesse humano e uma aparência de verdade. Um leitor normal de romances suspende a descrença enquanto lê, mas, quando pára a leitura, põe em vigor a descrença, torna-se ateu perante o que está a ler. Já os leitores das teorias da conspiração são muito mais fiéis ao texto e nunca suspendem a descrença. São religiosos da literatura, digamos assim, verdadeiros fundamentalistas dos textos.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Apocalipse

Imagino que em vez de narrar as patetices que narro deveria escrever textos apocalípticos. O mais difícil, porém, está em escolher por qual apocalipse deveria começar. São tantos que fico perplexo pelo embaraço da escolha. A perplexidade leva-me à hesitação e, hesitante, caio na inacção, isto é, na não escrita de textos desse género. Resta a vulgaridade da vida quotidiana, o calor que por aqui está, a tortura a que os castanheiros da avenida marginal parecem estar a ser submetidos, o sono que me arrasta para sestas indesejadas, a compra de umas anilhas de borracha para tentar pôr uma máquina de lavar louça a fazer a sua obrigação sem que haja uma inundação. Também podia mobilizar a memória e escrever sobre a vitória da selecção de râguebi sobre a das Ilhas Fiji, um acontecimento, diga-se. Ou então contar o que os olhos vêem se se dirigem para uma das janelas deste escritório onde me sento. Escolas, bosques, hospitais e um símbolo de uma hamburgueria internacional que se ergue impante sobre a ramagem do arvoredo para chamar incautos esfomeados. A vida quotidiana é uma tristeza e talvez seja ela própria, na sua trivialidade, uma forma de apocalipse. É, pelo menos, o apocalipse que está ao alcance da minha escrita. Também é verdade que isto não é a ilha de Patmos, apesar da ilha de Patmos poder ser em qualquer lado, inclusive aqui.

domingo, 8 de outubro de 2023

Dupla alma

Uma semana de Outubro passada e o calor não recua no terreno. Tem um exército bem treinado e não está disposto a ceder à amenidade dos dias frescos. Hoje acordei com uma alma heraclitiana e em tudo vejo conflito, a guerra é a mãe de todas as coisas. Não é sempre com esta alma que acordo. Tenho também uma alma parmenideana. Quando acordo com ela, os conflitos desapareceram e até a própria mudança se extravia para parte incerta. Estou – melhor, sou – no reino da uniformidade. Tudo é imóvel e eu permaneço na imobilidade geral. Quem sofre da doença da dupla alma contém em si todas as filosofias que existem, aquelas que virão a existir e todas as possíveis que nunca virão à existência. Quem traz em si todas as filosofias possíveis, porém, deve abster-se de privilegiar alguma e, desse modo, não deve ter nenhuma, pois escolher uma seria um acto de exclusão de todas as outras. Um ser filosófico, na sua completude feita de duas almas, não tem nenhuma filosofia, enquanto todos os que têm filosofias não são seres filosóficos, pois são incompletos, faltando-lhes ou a alma heraclitiana ou a alma parmenideana. Fiquei assim depois de tentar em vão consertar uma ligação da máquina de lavar louça à canalização da rede pública. O dispositivo, de natureza heraclitiana, decidiu começar a pingar, inundando o que não devia. Eu, também em maré heraclitiana, apliquei-me em consertar mais este torto no mundo, mas, nesse instante, a minha alma virou parmenideana, e a coisa manteve-se como estava. Optei então pela imobilidade do que se estava a mover e fechei a torneira de segurança. Uma derrota na minha gesta de consertador de mundos. Amanhã, terei de contactar algum canalizador heraclitiano para que a coisa entre nos eixos. O calor expande-se e os meus neurónios arrastam-se sempre que são chamados a fazer sinapses.

sábado, 7 de outubro de 2023

Tédios

É no pensamento 529, na edição portuguesa, que Blaise Pascal trata do spleen. Muito antes de Baudelaire. Não é assim que ele lhe chama, mas Ennui. Em português, optou-se por tédio. Este nascerá da insuportabilidade de o homem estar em pleno repouso, isto é, ausência de paixão, de afazeres, de divertimentos, de tarefas. A inacção seria um revelador insuportável da natureza ontológica do homem. Pascal dramatiza: Sente então o seu nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua dependência, a sua impotência, o seu vazio. Perante a experiência dessa natureza decaída e nula, virá do fundo da alma o tédio, mas não vem só. Acompanha-o a treva, a tristeza, o desgosto, o desprezo, o desespero. Tremo perante a descrição deste inferno moderno, eu que estou em pleno dia de repouso, desejando nada fazer. Contudo, o pensamento pascaliano projectou-me para a acção – já que qualquer paixão que me possa tocar será de evitar – e entrego-me ao acto de comer aquilo que, na padaria pós-moderna existente neste lugar abandonado pelos anjos, dão o nome de rolinhos de canela. Não gosto do nome, mas rasuro-o ao comer a coisa. Não devia fazê-lo, pois hoje tive um encontro muito desagradável com a balança. Há muito que não a pisava, e ela, por despeito, sentindo-se abandonada, temendo o seu nada, devolveu-me um peso exorbitante. Não lhe disse nada, saí de cima dela e deixei que a informação digital do monitor se apagasse. O meu nada está muito pesado, pensei já numa versão próxima de Pascal. Agora, tenho de me despachar, pois tenho de ir à capital de um outro distrito para ver um filme do Nanni Moretti. Lugar a que terei de voltar, caso queira ver o de Woody Allen, isto se não for à capital do império, do antigo império, queria dizer, agora uma cidade pimpona, cheia de turistas desejosos de vistas panorâmicas.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Leituras

Fora eu poeta, e grande ode escreveria à sexta-feira, a esse tempo de anunciação do fim-de-semana, em que a beatitude de se libertar das corveias da necessidade se torna, por instantes, um facto. Aproveito este tempo de interlúdio para ler algumas coisas. Por exemplo: A minha atitude para com as mulheres está determinada por isso de forma perfeitamente clara:  não elejo a minhas companheiras, mas são elas que me elegem a mim. Isto foi escrito por Hermann Broch na Autobiografia psíquica. Esta suposta troca de papéis – pois é isto que está em causa – seria o resultado da sua impotência, não sexual, mas ontológica.  O escritor austríaco não terá dado conta, porém, que o seu caso não é excepção, mas a regra. Os homens supõem que escolhem, e essa suposição é tanto maior quanto maior é a sua potência ontológica, mas, na verdade, são as mulheres que os escolhem, dando-lhes a ilusão da iniciativa. Isto conduz a que seja enviesado o corolário proposto por Broch: ainda que (o homem) não tenha escolhido por si mesmo (a mulher), chega, desde o princípio a uma relação emotiva de agradecimento e obrigação, determinada por laços muito menos eróticos do que morais… O enviesamento reside na consideração de que isto acontece como excepção. Ora, como é sempre a mulher que escolhe, o que está por detrás da sua iniciativa é a transformação de eros em morus, num costume que assegura a continuidade. Esta leitura não é minha, pobre narrador sem experiência das coisas do mundo, mas encontrei-a num caderno de Eduína. Limitei-me a reproduzir um pensamento alheio e a traduzir a citação de Broch do castelhano para português. Nunca deixa de me espantar o que encontro naqueles cadernos que herdei sem saber como. Agora, vou sair e entrar dentro do resto da sexta-feira, para ver o que há por lá.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Perturbação na atmosfera

Está um quente dia republicano. Sábado haverá um casamento monárquico. Não se pense, todavia, que este escriba vai tomar aqui posição sobre a querela entre monarquia e república. O autor talvez tenha uma clara e firme posição sobre o assunto. O narrador, porém, não se imiscui em assuntos que, na verdade, não têm qualquer interesse. Mais importante é o Nobel atribuído a Jon Fosse ou a leitura de Rayuela (O Jogo do Mundo, na tradução portuguesa), de Julio Cortázar. Li até ao capítulo 56. Parei mesmo na entrada daquilo que o autor chama capítulos prescindíveis. A partir destes propõe um novo percurso de leitura da obra que, talvez seja interessante e inovador, mas para o qual ainda não ganhei paciência. Serei um leitor preguiçoso, pouco dado à genialidade inovadora, mas cada um é o que é. Gosto de ler romances de seguida e não de andar aos saltos entre capítulos. Não sou um macaco nem um canguru. Tão pouco um cavalo de xadrez. Eu, no lugar de Cortázar, teria publicado dois livros. Um com os 56 capítulos imprescindíveis. Outro com todos os capítulos, os prescindíveis e os imprescindíveis, ordenados segundo o arbítrio do autor. Cada vez estou mais certo de que os anos sessenta não fizeram bem a ninguém. Haveria qualquer coisa na atmosfera de então que perturbava os espíritos, e o romance de Cortázar é de 1963. Logo, fruto da perturbação reinante. Esta opinião de narrador pode não coincidir com a do autor destes textos. É apenas uma possibilidade, mas estou longe de confiar no seu discernimento. É mesmo possível que, como dito acima, ele tenha convicções firmes sobre repúblicas e monarquias, mas isso poderá ser mais uma prova da debilidade do seu poder de discriminação. Então, quando está calor, só se pode esperar o pior. Vou acabar isto e publicar, antes que ele acorde com mau humor e exerça o poder censório com que se dotou.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A expulsão do mundo

Lentamente somos expulsos do mundo. Estava previsto no contrato que permitiu a chegada a este lugar inóspito. Mesmo que eu não o soubesse, sempre haveria o célebre fragmento de Anaximandro para me o recordar. Diz o seguinte, numa tradução encontrada por aí, pois faltou-me a paciência para a procurar nos meus livros: De onde é a génese dos seres, também para aí devém a sua corrupção, segundo a necessidade. Pois se concedem e se compensam reciprocamente, justiça pela injustiça, segundo a ordem do tempo. Sei, portanto, que me será feita justiça pela injustiça cometida ao nascer, ao separar-me do ilimitado. A ele terei de voltar. Contudo, há uma outra forma, mais insidiosa, de nos colocar fora do mundo, que é alterar as regras que um longo hábito solidificou em nós. Há pouco, para me entregar um livro, um carteiro tocou, atendi no intercomunicador. E ele decidiu tratar-me pelo nome próprio. Suspeito que é uma estratégia de relações públicas. Dei pela moda quando, há uns anos, o cardiologista, um rapaz bem mais novo do que eu, a inaugurou. Deve imaginar estabelecer uma relação mais próxima com o paciente. Percebi que a moda está a democratizar-se, pois já chegou aos carteiros e, constou-me, às pessoas que atendem os clientes em certas lojas de roupa. É verdade que a coisa é ligeiramente mais suportável do que o corrente tratamento por senhor seguido do primeiro nome. Numa situação normal, entre pessoas que não se conhecem, no caso de homens, o tratamento seria pelo último apelido, ao qual seria anteposto a designação de senhor. Este era o meu mundo. Fui expulso dele ou ele acabou. Só um outro cardiologista, o que me trata da electricidade e do ritmo do coração, cumpre a regra à qual fui habituado. Não é um caso de idade, pois ele é da mesma idade do outro. Talvez o facto de ter sido formado na Academia Militar o tenha tornado atento à tradição. Julgo que é a isto que sociólogo Zygmunt Bauman chamava a liquefacção do mundo. Num mundo líquido, deixou de haver espaços abertos e sem eles somos todos a mesma água. Talvez esta liquidez seja uma preparação para mergulhar no ilimitado.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

O decréscimo dos dias

Os dias estão a encolher a olhos vistos. Imaginemos que chegávamos à Terra em Junho e nada soubéssemos da mecânica das estações, das relações entre a Terra e o Sol. Neste momento, haveria razões para temer que a luz, com o passar dos dias, desaparecesse para sempre. O que nos esperava seria um mundo de trevas eternas. Durante muito tempo, até a ciência se introduzir no assunto, existia um temor real de que isso pudesse acontecer, pois não faltavam, na história da humanidade, as festividades para assinalar o solstício de Inverno e agradecer, mais uma vez, que a ameaça pendente sobre a Terra não se tivesse concretizado. O que é curioso é que a experiência da repetição dos períodos de crescimento e de decréscimo dos dias não era suficiente para tranquilizar o coração dos homens perante o temor de uma noite sem fim. O conhecimento científico poupou-nos o medo, mas, ao mesmo tempo, matou o espírito de gratidão pelo funcionamento do cosmos. A noite está a cair. A luz crepuscular é, a cada instante, mais ténue. A vida quotidiana manifesta-se no barulho dos carros que passam desejosos de chegarem ao destino e das injunções para que a neta mais nova tenha atenção ao exercício de matemática. Eu penso na noite sem nome que há em mim, na esperança de encontrar alguma lua que a ilumine, ou na chave da equação que se esconde sobre o peso do nome que me deram.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Os limites do saber

Deite-se sobre a marquesa, enquanto vou buscar o que é necessário. Assim o fiz, não sem antes descalçar o pé esquerdo. O cirurgião veio e retirou os pontos, disse que estava tudo óptimo, assim como o resultado da anatomia patológica. Daqui a um ano vá ao dermatologista, para ver se há novos sinais, sugeriu. Enquanto respirava fundo, perguntei se já podia molhar o pé. Claro que sim, mas não esfregar muito na zona operada. Tudo isto, somado ao ter sido atendido antes da hora e de estar livre em poucos minutos, fez-me pensar que estava noutro mundo. Para comemorar entrei na cidade, a capital de distrito, onde fui lanchar a uma conhecida pastelaria. Aqui, todavia, há uma imprecisão. Não era a antiga pastelaria, mas uma sucursal mesmo ao lado do tribunal para aproveitar a gula de juízes, delegados do Ministério Público, advogados e, plausivelmente, réus. A antiga, a verdadeira, a incontornável pastelaria era – e é, julgo – no Largo do Seminário, onde não se pode estacionar. Talvez já não existam seminaristas, nem padres no seminário, e a gula teve de procurar outros lugares para se manifestar. Desde que recebi a indicação – ou a ordem – para me deitar sobre a marquesa fiquei preocupado. Por que razão aquela cama onde uma pessoa é submetida às sevícias da observação se chama marquesa? Pus a possibilidade de se estar perante uma catacrese – isto é, uma metáfora morta – na qual, por estar morta, já não se sente a inovação semântica dada pela transferência de um nome de uma realidade para outra. Haveria, em tempos, uma marquesa, mulher de um marquês, sobre a qual as pessoas se deitavam, e isso terá permitido a transferência da aristocrática e benévola marquesa, onde múltiplos ensonados eram acolhidos, para a cama onde se deitam os múltiplos adoentados? Depois de avaliar a situação pareceu-me a razão disparatada, pois nunca, mas mesmo nunca, uma verdadeira marquesa admitiria que dormissem sobre ela. Eliminei uma conjectura espúria, mas não consegui resolver o problema. O que prova que toda a ciência tem os seus limites.

domingo, 1 de outubro de 2023

Zorro e Mascarilha

Começamos Outubro sob um ataque cerrado de calor. Talvez tenha sido a situação de guerra climática que me provocou uma dúvida existencial. Dois nomes dançaram na minha mente devido a uma palavra espanhola num produto qualquer, mascarilla. As palavras Zorro e Mascarilha tinham o mesmo referente, ou será que havia duas séries distintas uma denominada Zorro e outra O Mascarilha. O mal dos tempos que correm, um deles, pois não faltam males aos tempos que correm, é que rapidamente se podem tirar as dúvidas, não deixando estas criar raízes e exercer sobre a mente um trabalho de limpeza das crenças dogmáticas. Não passou muito tempo que não visitasse a rede a que se dá o infeliz nome de internet. Não, o Zorro e O Mascarilha eram séries diferentes que o passar dos anos e o uso da máscara começavam a fundir na minha memória. Não devemos confundir Don Diego de La Vega, o Zorro, com John Reid, quase sempre denominado como Lone Ranger, o Mascarilha. Zorro inscreve-se na tradição dos heróis de capa e espada, enquanto Mascarilha, na dos heróis do Far West, presumo. Esta confusão é quase tão grave como a de pensar que Sherlock Holmes e Hércule Poirot eram as mesmas personagens. Pior, porém, seria confundir Sherlock Holmes com Miss Marple. Daqui a pouco chegará o meu neto. Ainda não tem idade para zorros e mascarilhas, mas por certo vai querer o Pica-Pau, cuja colecção de DVD repousam numa estante. Quando a comprei, disse que era para os netos verem. Recebi um olhar de dúvida mais radical do que a cartesiana. A verdade é que ainda nenhum recusou o Pica-Pau, embora a mais velha me fizesse ver com ela milhares de vezes a Galinha Pintadinha. Tenho de procurar as séries do Zorro e de O Mascarilha, para daqui a uns tempos as ver com o mais novo. Domingo. Está tanto calor que nem vai dar para ter a angústia dos domingos à tarde.