quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Ferida narcísica

O melhor seria deixar de ler jornais, pensei ao ver a notícia do Público. Não há quem não se ache o fruto de uma ocasião única e especial. Nesta coisas ligadas à identidade e à existência, até os mais empedernidos socialistas se acham individualistas e, em segredo, liberais, filhos de projectos racionalmente planeadas para os tornarem naquele ser único e já pleno de iniciativa ainda mal concebido, especulei ancorado na minha triste formação filosófica. Acreditamos nisso como as crianças crêem no Pai Natal ou nesse ser benfazejo conhecido por Fada dos Dentes. E eu por que motivo haveria de ser excepção? Não era. Não era até hoje. Agora, porém, sinto-me abatido, terrivelmente.  O que descobri eu? Eu que nasci em Setembro, e por isso me achava tão virginalmente distinto, fui confrontado, amaldiçoado jornal, com o mais tenebroso dos colectivismos. Um estudo, feito por entidades respeitáveis, mostra que Setembro – isso mesmo, nove meses após o Natal – é o mês com mais nascimentos nos países de cultura cristã no hemisfério Norte. Não bastando isto, o nefando artigo ainda tem a desfaçatez de afirmar que os ciclos de reprodução humana são guiados pela cultura e coincidem com estados de espírito colectivos. Meu Deus, que fizeste tu da singularidade da minha concepção? Foi para me humilhares deste modo que inventaste o Natal? É assim que nascem, para abater o nosso orgulho pecaminoso, as feridas narcísicas, concluí eu, lembrando-me das figuras tenebrosas do Copérnico, do Darwin e do Freud. 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Metamorfoses

Esta é uma época em que desejamos que a lâmina afiada do sol penetre na nossa pele e se apodere do sangue, aquecendo-o para que o corpo, assim animado, posso calcorrear os dias que o calendário, esse deus inexorável, coloca diante de nós. É nisto que penso quando saio de uma livraria com as Histórias do Bom Deus, de Rainer Maria Rilke, na mão. O que me terá levado a comprar o livro, pergunto-me. O nome do autor? A curiosidade pelos contos de um grande poeta? A edição com um design retro? Enquanto desfio para mim mesmo as causas possíveis, entrego-me ao sol e sinto um calor agradável a invadir-me o corpo. As pessoas passam atarefadas. Algumas cumprimentam-me. Retribuo, e dirijo-me para casa. Na verdade, há uma razão suplementar para comprar o livro. Quando o tirei da prateleira e o desfolhei dei com o título de um dos contos que me inclinou definitivamente para a aquisição: “De que Modo o Dedal de Coser se Transformou no Bom Deus”. Pode-se pensar que há em mim um intuito blasfemo. Por exemplo, afirmar coisas como se o Bom Deus é, além de bom, omnipotente, nada o impediria de ter sido, em certas circunstâncias, um Dedal de Coser. A blasfémia, porém, é um estilo literário que não pratico. Dou longos passeios a pé, falo de coisas inúteis, desperdiço o meu tempo nisto ou naquilo, mas a blasfémia não consta da rapsódia de inclinações do meu carácter. O que me interessa é a metamorfose. Paro num dos passeios da avenida Sá Carneiro e olho as árvores, as pessoas que entram e saem dos bancos, os carros que se apressam para chegar a horas a lado nenhum. E, penso para mim, se Gregor Samsa, o infeliz caixeiro-viajante, se pôde transformar numa barata gigante, não é inverosímil que um Dedal de Coser possa metamorfosear-se no Bom Deus. O sol de inverno, reflicto, não faz muito bem. E o pior é se ele incide na cabeça.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Não sei

Da janela do meu escritório, avisto o hospital. Sombrio e lúgubre. Os fungos da humidade tomaram conta das paredes ainda há pouco brancas e resplandecentes. Agora é uma nódoa na paisagem, uma mancha que insiste em cravar as garras da sua solidão no meu horizonte. Bocejo. É o que faz deitar tarde e levantar cedo, penso. O melhor seria dormir uma sesta, mas estou comprometido com o baby-sitting das minhas netas. Acho que elas preferiam que eu dormisse. Terão as suas razões que, como todas as razões infantis, são enigmáticas. Conjuram no quarto não sei que aventura e, como é hábito, não tardam em  invadir-me o escritório, para se sentarem na secretária da avó e brincarem, pobres infelizes, às escolas. Chegam e uma diz para a outra: vá, diz sim ou não, não sei não é resposta. E eu fico siderado por tanta autoridade a transbordar de uns sete anos ainda por fazer. Olho pela janela, o sol esbranquiçado cai em borbotões sobre a rua e pergunto-me se ela alguma vez irá saber que a única resposta que temos, seja para o que for, é não sei. Vá, insiste ela, diz sim ou não.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Perfeição

Um frio glorioso caiu sobre a cidade, cobriu-a de um veludo vítreo e negro, onde, a custo, se avistam vultos que lutam para chegar a casa. A náusea da repetição, pensei, de fazer sempre a mesma coisa, dia após dia, semana atrás de semana, chega a ser uma bênção. Tudo parece ter um destino e cumpri-lo com perfeição. Também eu pertenço a essa perfeição nauseante, constatei, enquanto o frio se cerrava sobre a face. Talvez vivamos mesmo no melhor dos mundos possíveis, passou-me pela cabeça ao atravessar a passadeira, enquanto alguns carros paravam solícitos, também eles habituados à perfeição com que a vida se regula. Quem passa por mim vai em silêncio e mal olha para as iluminações de Natal. Pelo contrário, eu olho-as e sinto uma tristeza tão grande que logo deixo de crer que se viva no melhor dos mundo possíveis. Sou volúvel, constato ao mudar de opinião. Se este fosse o melhor dos mundos, poderia haver guerras, homicídios, violências, coisas que há em todos mundos. Não haveria por certo, iluminações de Natal que nos inclinam para a tristeza. Aventuro-me em direcção à farmácia. Ali tudo é claro, nítido e lança sobre o coração do paciente a ilusão de que haverá sempre, neste ou noutro mundo, uma cura à sua espera. Não há, e isso, que deveria entristecer-me, tranquiliza-me.

domingo, 17 de dezembro de 2017

A luz branca

A luz branca deste domingo cai sobre a cidade como um véu. E assim veladas as pessoas passam devagar na avenida, respiram lentamente, esperam por certo que o sol as aqueça. Algumas deambulam atreladas a pequenos cães. Há quem corra solitário para alcançar a boa forma que nunca haverá de chegar. Um ciclista, daqueles que se equipam da cabeça aos pés, apeia-se, abre o grande caixote do lixo verde e deita qualquer coisa lá dentro e regressa, em paz com a sua consciência, ao selim e à azáfama de pedalar. As árvores, medito, têm um singular destino. Umas despem-se no Inverno, enquanto as outras, tomadas por um pudor ancestral, persistem em manter o folhedo que as cobre. Há quem diga que possuem folha persistente. Prefiro pensar que sofrem de um embaraço contumaz. E é para isto que serve a luz branca que cai, naquele segredo invisível da onda-corpúsculo, sobre as coisas. Para que alguém as possa ver e descrever, não na sua essência, mas nos acidentes em que elas se manifestam. Os carros teimam em não deixar de passar. Vão lentos, temerosos, também eles são um acidente que nenhuma essência salvará. Os domingos são sempre dias incompreensíveis.

sábado, 16 de dezembro de 2017

A praça

Passei há pouco pela Praça 5 de Outubro. Parece uma viúva a tiritar de frio, pensei ao olhá-la. Depois, disse para mim mesmo: estas analogias não têm pés nem cabeça. E fiquei a contemplá-la no abandono que é o dela, perdida a remoer pensamentos obscuros, a desfiar perfídias e vinganças, enquanto uma ou outra sombra a atravessavam. Há lugares que gostaríamos que fossem eternamente aquilo que, um dia, foram para nós. A eternidade, devia sabê-lo de cor, não é um atributo das coisas humanas, nem sequer dos lugares que fervilharam de vida. O espírito que em tempos a animou retirou-se, discorri. Alguém, apressado, acena-me e desaparece no crepúsculo. Demoro-me mais uns minutos, olho-a lentamente, deixo que uma ou outra recordação venha até mim. Depois, rodo a chave na ignição, engreno a primeira e faço o carro deslizar dali para fora. Não devemos perturbar a viuvez de uma viúva. Exclamei, sem que ninguém me ouvisse.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Esperar

Fechei devagar a porta da sala e saí. Tinha acabado, pelo menos por uns dias. A tarde começara cinzenta, mas não deixava de ser tocada por um halo de esperança. O ruído dos intervalos ficava para trás. Quando passei pelo portão, respirei fundo. Haverá ainda dias de reuniões e papéis, de actas e do resto, sempre tão elusivo, que é necessário para satisfazer a fome insaciável do Leviatã moderno. Tudo isso se não servir para mais nada, há-de valer para a remissão dos meus pecados, ponderei sem entusiasmo. Paro na passadeira junto ao tribunal. Apressado, um homem, porventura um advogado, atravessa-a. Aonde o levou aquele passo rápido? Não o cheguei a perceber. Talvez o esperasse alguém perdido no labirinto de um processo ou talvez fosse a mulher, impaciente e pouco solícita, com a toga que ele teria esquecido em casa. Nunca se sabe o que atormenta as pessoas e as precipita mundo fora. No semáforo, logo a seguir, torno a parar. Como acontece sempre, a Antena 2 perde o sinal e o carro mergulha no silêncio. Espero. E é tudo o que resta a um mortal, esperar. O quê? O melhor é não o saber. Lá atrás, ficaram as salas fechadas, pensei, enquanto o Quator de Messiaen retornava e estendia sobre mim a luz dolorosa que é a sua. É sexta-feira, pensei.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Oblívio

Sento-me e pego num livro, do poeta Daniel Jonas, denominado Oblívio. Como os amores, também há títulos perfeitos, concluo. Oblívio é a fase da existência em que entrei. Assim como antes a memória era excessiva, agora o esquecimento progride sorrateiro mas voraz. E com isto esqueci-me do que queria vir aqui contar. Não sei se um episódio que me atormentou o dia – mas qual? – se uma descoberta que a noite me trouxe. E é neste oblívio que tento navegar no mar encapelado da vida. O melhor seria ir dar uma volta e fumar um cigarro, talvez me lembrasse, mas não sou animal noctívago e há tempo que não toco em tabaco. Vale-me o título do livro que se estende para mim como uma mão solidária, como quem diz que, em matéria de esquecimentos, não estou sozinho no mundo. O melhor, penso, será seguir o conselho do poeta: “Pedala, vá pedala, não faz mal; / De tanto pedalares, nesse tour / De igual cenário és um novo Artur, / Um velho visionário pelo Graal.” E escrito isto, logo me lembrei que, depois de jantar, não consegui recordar-me se tinha tomado o comprimido para a tensão arterial. 

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O ardil

Dezembro deixou que os dias se contaminassem de festividades. Nem o frio bastou para evitar a algazarra que de tudo há-de tomar conta. São dias de alarido, penso, enquanto rasgo a noite com a luz dos faróis. O calendário é, sei-o bem, uma fortaleza inexpugnável, uma emanação da frieza cósmica para nos agarrar pela coleira e pontapear para dentro da vida. Ou da morte, acrescento em silêncio. Ao sair do carro recebo a carícia do vento e olho para o café ao lado de casa. Há muito que não entro ali. Outrora, sabia o que poderia fazer num café. Agora, tudo se me estranhou e evito o deambular à procura de uma mesa. Talvez esteja num processo de regressão vegetal, mas a humanidade tornou-se muito pesada. A noite está fria e eu olho o café, a luz que nasce dentro dele para morrer na tristeza dos olhos de quem passa. Se eu entrasse lá agora? Um casal de namorados entra, enquanto duas senhoras, talvez casadas, saem. Na verdade, o mundo é feito de estranhas compensações, constato. Ah se eu entrasse ali, tudo se desequilibraria. O melhor é ir para casa, resguardar-me de Dezembro e dos pensamento que, como tentações, me entregam ao ardil do inimigo.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

A fístula

Uma fístula, veja lá. E agora tem de ser operado para a fecharem. Coitado, uma fístula entre a traqueia e o esófago. Ele há cada coisa. Se há, pensei, enquanto as duas mulheres se afastavam de mim, para se perderem no outro lado da estrada, arrastadas por um cão insignificante, desejoso de ir cheirar os troncos húmidos pelas últimas chuvas ou por alguma cadela transida de cio. Têm razão, concluí, enquanto elas se dissolviam na atmosfera espectral que a noite derrama no frio dos dias de Dezembro. Não há nada pior do que fístulas, podem crer. Aliás, o mundo não passa de uma rede fístulas por onde comunicam coisas que nunca deveriam comunicar. Se houvesse menos comunicação, os dias seriam mais fáceis, asseverei a mim próprio, talvez sem me convencer. E enquanto seguia o meu caminho, ia arquitectando todo um sistema de oclusão de canais. Via-me já como um grande cirurgião especializado em tratar das fístulas do mundo que põem, para desgraça universal, toda a gente em comunicação com toda a gente. E assim cheguei à porta do prédio onde moro. Uma, duas, três vezes, e nada. Não consegui abri-la. Malditos códigos, não há nada como fechaduras com chaves. A fístula que me haveria de levar da rua ao elevador estava obstruída. São cruéis os deuses, meditei inquieto. Não perdem uma oportunidade para nos fazerem a vontade.

domingo, 10 de dezembro de 2017

A faca

O dia cresce como uma faca espetada no peito. Oiço-o a rasgar a carne, enquanto a pulsação enfraquece e a respiração entrecortada faz-me entrar num estupor, talvez a esperança de que imobilidade do corpo arraste a do tempo, e tudo fique suspenso nesta glória eterna. Os domingos são traições à esperança na eternidade, penso. Por isso, os homens iam à Igreja para se lamentarem da fraqueza da carne. Ou talvez fossem para ver as mulheres ou nem isso. Sei lá o que ia ou vai na cabeça dos outros, se nem na minha sei o que se passa. O pior é a carne dilacerada pelo tempo que passa, como se este fosse uma conspiração do espírito para sublinhar a sua superioridade perante a falência sem fim do corpo. Agora, gostaria muito de moralizar, mas falece-me o talento e a vontade. Bem na minha frente, a alguns passos, uma mulher compõe o cabelo, passa nele a mão húmida e assenta-o, como se ainda tivesse um poder para amainar os ventos. Não tem. E nem ela nem eu o temos para parar a grande faca do tempo a ranger nos músculos deste domingo. O melhor é não ser complacente.

sábado, 9 de dezembro de 2017

A rapariga cega

Os dias deslizam para o Natal e a minha memória resvala para territórios que o tempo corrompeu. Na rua, carros e pessoas passam esmagados pelo peso da quadra que se aproxima. E eu olho-os da minha janela e finjo-me inocente de tantas preocupações. Depois, a minha avó chega-me apressada à casa da memória. Vem com os cabelos brancos que sempre lhe vi, e eu recordo-me dos dias em que brincava na despreocupação do quintal que havia na sua casa térrea. Nessas alturas haveria por lá um ou outro primo, mas tudo era muito diferente de hoje, o cobalto do céu era mais vivo e nada ainda tinha caído na ruína da recordação. O quintal era dividido de um outro, talvez por uma paliçada de canas ou por um muro, não sei bem, pois o que recordo é a cobertura, a que chamavam enleio, de campânulas roxas e que a tudo ocultava. E foi desse outro quintal que veio o objecto do meu primeiro amor. Uma voz feminina. A pronúncia, o ritmo, as próprias palavras fascinavam-me, tão diferentes do que me era dado ouvir, e eu, sem o saber, era tocado por Eros, desejando o meu coração, mais que o corpo imaturo, que aquela voz não se apagasse e desabasse em silêncio dentro de mim. Um dia soube, não sei bem como, que quem assim falava era uma rapariga bem mais velha e, digo-o ainda com emoção, cega. Fiquei atónito. Como seria possível que aquelas palavras saíssem da boca de alguém que não via? Os primeiros amores, esses que não sabemos sequer que o são, trazem já consigo a ferida narcísica que rasga a carne para que a realidade entre pelos olhos dentro. Julgo que nunca a vi, talvez ela não saísse de casa, e a sua voz, que um dia foi em mim o murmúrio de Afrodite, foi-se extinguindo até não ser mais do que um amontoado de palavras partilhado na insipidez de uma rede social.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Humidade

Há um véu de humidade sobre as ruas. As pessoas caminham pelo Outono com trejeitos de invernia. Piso as folhas e lembro-me dos plátanos de uma casa onde vivi. Já vivi em tantas que lhes perdi a conta. Algumas ainda pesam como uma sombra. Perderam as portas e as janelas, perderam a configuração do espaço que tiveram na minha vida, mas ainda ressoam nelas as vozes dos que já morreram. Há dias, como o de hoje, em que me levanto e penso nos meus mortos. Talvez precise de falar com eles. Ou eles precisem de me dizer alguma coisa. Mas continuamos obstinados. Eles no seu silêncio; eu na minha surdez. E assim desabamos no embaraço da saudade e da obstinação. Aquilo de que queria falar era de árvores no lume brando destes dias, mas já não sei o que hei-de dizer. Passa por mim, esbaforida, uma mulher. Trauteia uma melodia que desconheço. Vejo-a a afastar-se e percorrer o grande corredor do Outono onde, percebo-o bem, abrirá a porta do Inverno. Esta é a minha cidade e ninguém, além de mim, sabe o seu nome, uma palavra feita de humidade e luz, bela como uma lâmina a deslizar na rasura da pele.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Dogmas

Ao atravessar a cidade, já a tarde tinha declinado na escuridão da noite, lembrei-me de que amanhã será feriado. E fiquei grato ao Papa Pio IX e à sua Bula Ineffabilis Deus, onde  declara, pronuncia e define a doutrina da Imaculada Concepção de Maria. Contrariamente ao que ensino aos meus alunos, a quem louvo os méritos da razão crítica e da submissão do dogma ao colírio da dúvida, há em mim um certo culto pela dogmática, uma espécie de licença sabática para os devaneios da razão. E ainda mais maravilhado fico se um dogma tem tanto poder que consegue roubar os homens aos afazeres que a corveia da necessidade lhes impõe. Meditando assim no mérito da bula papal, deixo o carro deslizar, enquanto olho para as iluminações de Natal, onde alguns dos adereços quase fazem lembrar um crescente. Não chego a ficar perplexo, pois tenho de entrar numa rotunda, acautelar-me de algum condutor imprevidente, e logo o pensamento me foge em direcção à bênção, ou à graça, que, no longínquo ano de 1854, Pio IX decidiu derramar sobre todos nós. Amanhã suspendo a razão e deixo deslizar, com demora, o dogma pelo meu dia. Assim o espero.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Verdade e versos

Olho a rua e sinto toda a verdade que se esconde num verso de Eugénio de Andrade. “Com o sol a trepar pelas árvores”, escreveu, há muito, o poeta. E é isso que vejo, nesta manhã, antes de ser tragado pelos monstros que, dia após dia, devoram a vida dos homens. Olho pela janela e os monstros desaparecem, refluem para o lago que, subterrâneo, desliza dentro de mim, tecendo, com zelo, a minha perdição. O sol trepa pelas árvores, penso. Por vezes, canta nos verdes outras sussurra nos amarelos, mas nunca deixa de trepar ramos acima, mostrando a verdade de cada árvore na verdade de um verso. Rio-me ao pensar na mistura de verdade e versos. Deveria seguir a lição de Platão e expulsar o poeta da cidade, ficaria mais tranquilo. Nada pior do que ficções, recordo. E nesse instante, entre o verso de Eugénio de Andrade e a indisposição de Platão para com a poesia, penso que o próprio Platão seria o poeta que deveria ser expulso da cidade. Assim como o sol trepa pelas árvores e eleva-se aos céus, também os homens dizem, as mais das vezes, o contrário daquilo que sentem. Se fossem árvores, não o diriam, e eu não escreveria estas palavras sem utilidade, nem propósito, nem verdade.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Castanheiros

Quando cheguei a casa descobri que me tinha esquecido dos óculos de ler na escola. Nada a fazer senão mergulhar na noite e atravessar a cidade. Havia muita gente em trânsito. Os carros deslizavam devagar e os peões eram sombras que se desvaneciam nos passeios. Os castanheiros da avenida estão agora lacrimosos. Quando se aproxima o Natal, descarregam sobre eles uns fios semeados de pequenas luzes, como se isso os tornasse mais adequados a uma época que não é a deles. O que vale é que, estóicos, suportam tudo, mesmo os desvarios dos homens. O seu reino virá mais tarde quando florirem. É isso que lhes importa. Como os castanheiros, também os homens deveriam apenas preocupar-se com o que lhes importa, com essa hora em que hão-de florir, especulei ao deixar a avenida. Como sempre sou dado a ilusões e deixo-me arrastar por analogias cujo sentido logo me parece bizarro. Por que razão haveria de florescer um ser humano? Nem flores nem frutos, pensei. E apressei-me para descobrir onde tinha deixado os óculos.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Segunda-feira

As segundas-feiras, com o seu excesso de realidade, não deixam de ser dias enigmáticos. São como uma rede desmedida que captura os homens no mar do ócio e os descarrega no porão do trabalho, onde prestam o forçoso tributo à necessidade. Também eu sou levado na rede e, ao cruzar-me com outras vítimas da grande captura, nunca deixo de me espantar com o seu ar de felicidade. São múltiplas as causas que movem os homens, penso então, perdido nestas manhãs de frio cortante. O melhor é entregar a felicidade de cada um àquilo que o anima e deixar-me de enigmas com temperaturas tão baixas. Metáforas não aquecem ninguém e, numa sala sombria, haverá gente à minha espera, para que eu lhe fale de coisas que ninguém quer ouvir e que eu, se não tivesse tanta propensão para a irrealidade, me absteria de dizer. Não são dias fáceis as segundas-feiras. E o pior é que não chove.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Domingo

Quando, esta manhã, saí de casa assaltou-me uma dúvida. Esta não nasceu da falta de luz. Pelo contrário, havia aquela luz exuberante dos dias frios, uma luz que, ao derramar-se sobre a terra, consegue enganar até os menos incautos, segredando-lhes que não se caminha para o Inverno mas para o Verão. A dúvida, porém, não tinha a ver com a luz terminal do Outono, mas com o domingo, o sétimo dia, aquele que Deus escolheu para descansar do trabalho da criação, tão satisfeito estava, pois tudo o que tinha fabricado era bom. Se Deus, em vez de ter criado o mundo quando o criou, o fizesse hoje, pensei, será que descansaria ao domingo, mesmo que este fosse o sábado dos judeus? Trabalharia ele, o grande operário, por turnos ou cumpriria um horário regular, entrada às oito e saída às dezassete? O sol, apesar do brilho, não me aquece a alma e, ao caminhar, entrego-me a estas meditações plenas de heresia. O melhor seria não as partilhar, mas já é tarde para conseguir uma reputação aceitável. Encontro pessoas endomingadas e outras perdidas na contagem dos dias da semana e penso na minha infância. Nesses dias, tudo era claro. Um domingo era um domingo. Com a mãe, ia à missa. Com o pai, ao futebol. E Deus olhava-nos com benevolência entre a homilia e um penalti falhado. Agora, a mãe assiste à missa na televisão, o pai há muito que decidiu, para minha tristeza, perder os jogos por falta de comparência, e Deus, ora o que se há-de dizer dele? Ficou cego? Cansou-se? Há quem diga que foi de férias e que, endomingados ou não, proclamou que já era tempo de tomarmos conta da nossa vida. O sol, concluí, engana-nos e faz-nos pensar em coisas que não lembram a ninguém.

sábado, 2 de dezembro de 2017

Flatland

De tarde, ao sair de casa, estava um sol frio, um sol natalício. Não tarda e o Natal está acabado, pensei. Os carros saíam e entravam para o estacionamento de uma superfície comercial. Perante a azáfama, fiquei a meditar na estranha designação. Superfície comercial, como se nós, pobres mortais, pelo acto de comprar e vender ficássemos reduzidos a seres bidimensionais a viver numa espécie de flatland. E enquanto caminhava por dentro do frio, pisando, sem piedade, as folhas ressequidas espalhadas pelo passeio, meditava na mensagem oculta por detrás de tal designação. As pessoas passavam por mim, indiferentes à minha meditação, e iam com o rosto cheio de Natal. O mundo está prenhe de coisas improváveis, coisas como superfícies comerciais ou rostos cheios de Natal, concluí eu, enquanto me apressava para fugir da noite que o céu, indiferente, anunciava. As tardes estão muito pequenas, pensei, mas ninguém ouviu os meus pensamentos. Ou talvez tivessem ouvido e não soubessem o que responder.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

As folhas mortas

Sento-me sob o sol desmaiado da tarde e deixo que ele desça sobre mim. Vejo os ramos do arvoredo a balançar, um vento frio toca-os e, uma a uma, arranca-lhes as folhas secas. Ao fundo, os carros passam devagar, como se esperassem mais alguma coisa de um dia que nada mais tem para lhes dar, a não ser a permissão esquiva de passarem lentamente. Fixo-me nas folhas. O vento açoita-as e elas entregam-se a uma dança acrobática antes de poisarem, secas, leves e mortas, tão mortas, no chão. E em cada folha, vejo-me a ser arrastado pelo vento, vejo-me livre em plena queda que me conduz para a terra que há-de ser a casa da minha eternidade. Dezembro é um mês frio, pensei. Ergui-me e admiti, após breve exame, que raramente escrevo sobre pessoas. A minha alma pertence ao deserto, exclamei, mas não havia ninguém para me ouvir.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Frio

Há pouco, perto de mim, alguém dizia que, na ausência de chuva, houvesse frio. Ao menos, matava-se a bicharada nos campos, o que ajudaria a lavoura. E eu fiquei espantado com esta sabedoria que me era servida inadvertidamente. Para mim o frio é apenas ocasião de vestir uma roupa mais quente e não uma arma de guerra biológica. E foi assim que enfrentei, na rua, a frialdade com que a noite tomou conta do dia. Imaginei então campos onde mil hecatombes de pequenos seres é oficiada pela descida das temperaturas. Se eu fosse um homem do campo, que coisas não haveria de saber e de transmitir aos outros. Coisas úteis, sérias, profundas, onde se joga a vida e a morte, e não frivolidades sobre se o homem possui livre-arbítrio ou se devemos determinar a moralidade dos nossos actos pelo imperativo categórico ou pelo princípio de utilidade. Em vez de papéis e gente aborrecida à minha frente, haveria campos de milho e de trigo, talvez um roseiral de onde colheria as rosas que alguém espera de mim.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Ignorância

Nomear as coisas é uma arte de difícil consecução, pensei hoje ainda a tarde era luminosa. Quantas vezes, neste estranho Outono, vou pelas ruas e fico espantado com as cores que, aos poucos, tomaram conta das folhas do arvoredo? E se eu quero dizer esse espanto e partilhar o prazer que vermelhos, castanhos, ocres, amarelos, violetas ou rosas me deram, a empresa morre de imediato na impossibilidade de nomear as árvores que suportam ainda nos seus ramos tais catálogos vivos de cor. Estou-lhes grato, digo de mim para mim, mas não sei o seu nome e temo que, um dia, elas não me perdoem a ofensa. Juro então que irei dedicar algumas horas ao reconhecimento das árvores, mas logo penso que talvez seja tarde, que o meu tempo é mais o do esquecimento que o de adquirir saber. E assim as árvores, essas que tanto prazer me dão, entram na noite que é a terra dos não nomeados. Ali são todas iguais, todas árvores, que se confundem na tonalidade pardacenta da minha ignorância.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

O resto

Há pessoas que têm uma estranha propensão. Escolhem fazer coisas que sabem ir contra a sua natureza. Penso nisto enquanto oiço o Hilliard Ensemble a interpretar música de Victoria e de Palestrina e me deixo arrastar, literalmente, para o paraíso. Conheço alguém que estudou filosofia não porque se interessasse por argumentos mas porque amava a literatura. Nunca lhe perguntei a razão de tal comportamento, nem a pessoa esboçou alguma vez uma explicação para a sua dissonância existencial. Fui anotando, contudo, ao longo dos anos, episódios desse seu conflito. Um dia, após um concerto em Leiria, deste mesmo Hilliard Ensemble, onde ouvimos música de Bach, disse-me que fazia mais pela fé um concerto de Bach do que qualquer argumento sobre a existência de Deus. Objectei que esses argumentos não pretendiam fomentar a fé mas determinar se é racional ou não crer em Deus. Olhou-me divertido. A noite, ao contrário da de hoje, estava amena. A Primavera era quase Verão. Passados alguns instantes, respondeu, sem tirar os olhos do chão: a racionalidade ou a irracionalidade da crença, o que tem isso a ver com Deus ou com a sua existência ou inexistência? Bach sabia que Deus existia e a sua música é a prova disso, o resto... E não completou a frase.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Iluminações

Há dias que algumas ruas da cidade foram tomadas pelas iluminações natalícias. Atravesso-as atónito, não sabendo o que pensar desta proeza que todos os anos temos de suportar com benevolência e cuja finalidade não deixa de ser um enigma. Foi para isto que o filho de Deus escolheu vir ao mundo na penúria do presépio, pergunto-me, enquanto o carro rola ao sabor do trânsito. Nos passeios, os peões são sombras que a noite vai apagando. Já nem um mês falta para a consoada, penso, enquanto se insinua a memória dos que nunca mais estarão presentes. E uma nostalgia de um Natal autêntico assoma. Um Natal feito de silêncio e de contenção. Um Natal em que os homens pudessem perceber o mistério que o envolve e os envolve. Faço uma rotunda, endireito o carro. Um cão ladra distraído, enquanto um casal de namorados passa envolto na tristeza que é a sua. Quem quer saber de mistérios? Travo numa passadeira e penso que deveria fazer o caminho a pé. Encolho os ombros. As iluminações gritam numa girândola de cores, enquanto um anjo desce e diz-me que, se não apagarem as luzes, não haverá Natal. Com tanta luz, o Menino recusa-se a nascer. Não deveríamos tentar os deuses, digo para comigo.

domingo, 26 de novembro de 2017

Modalidades

Por um motivo que não vem ao caso, e estando ocioso, comecei a interessar-me, ainda que incipientemente, por lógica modal, a qual envolve proposições onde se afirma a necessidade ou a possibilidade de algo. Estava assim neste ócio, quando olhei para a rua e vi um sol desmaiado a cair sobre os prédios exaustos, cujo esboço desliza, como uma sombra delida, ante mim. A luz da lógica é como um sol exuberante, pensei. Contudo, a vida é sombria e o sol, por vezes, não tem a luz necessária para a iluminar. E enquanto os pombos voavam de prédio para prédio e as pessoas, lá em baixo, passavam envoltas no domingo, lembrei-me de um livro de Milan Kundera, A Arte do Romance. Faz ele notar que o romance moderno é contemporâneo do nascimento da filosofia moderna. À evidência e certeza cartesianas, o romance traz-nos aquilo que não é necessário, nem certo e muito menos evidente. Traz-nos o sombrio e o não racional. Não é o romance filho do Quixote? Ao ouvir uma sirene, uma dúvida, porém, assaltou-me. Há quem pense que os romances tratam da possibilidade, que os mundos romanescos são mundos possíveis. Talvez a lógica modal tenha pregado uma partida à arte do romance, e a tenha reconduzido, apesar da resistência, ao redil da razão. E perante essa possibilidade, soltou-se da minha boca a jaculatória: valham-nos os oximoros dialécticos do Pessoa. Amén.

sábado, 25 de novembro de 2017

A pequena heresiarca

Um drama, e não dos pequenos, aqui por casa. A minha neta mais nova, perante a tarefa de escrever três frases com a palavra cão, decidiu, na terceira, inovar e entrar pelo perigoso caminho da heresia. “O cão tem uma capela na escola e tem Jesus”, escreveu. Como sabemos, o Santo Ofício não é permissivo e não gosta de inovações. Não se comoveu com a conjunção das proposições simples, nem com a extensão da salvação aos animais, e, entre admoestações teológicas e considerações de ordem prática sobre a recepção escolar da frase, usou da borracha para apagar o perigoso erro. O pior é que a pequena heresiarca não gostou e decidiu entregar-se, inconsolada, a um choro de protesto. Persiste em mostrar-se amuada, como se a santa censura lhe tivesse retirado o maior dos bens, a liberdade de expressão. É assim que, na história, se formam os grandes revoltados.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Milongas e chacareras

Enquanto entardecia lugubremente, fui buscar o carro à oficina. Há ali uma sabedoria que me deixa sempre espantado. Talvez não se saiba da mecânica do mundo, mas a das máquinas é tanta que nunca deixa de me maravilhar. Circulo pela cidade, para a ver fenecer na tristeza que é a sua e recolho-me. Que música, pergunto-me, para o cinzento outonal de uma sexta-feira à tarde. E deixo-me levar por milongas e chacareras. Não é que me transfira para a Argentina, mas há nestas melodias qualquer coisa que me lembram que sou português. E assim fico a saborear esta descoberta espúria. O dia, acobardado perante as potências das trevas, retira-se, enquanto a iluminação eléctrica chega em ampolas amareladas, para que a noite seja menos noite, e uma voz rouca e baixa cante uma chacarera, e tudo siga uma ordem e um desígnio que, penso-o há muito sem o lastimar, nunca compreenderei. A voz calou-se e a guitarra cedeu ao silêncio. Os cedros, ali ao fundo, erguem-se hirtos, ansiosos pelo vento que os há-de vergar. Esperam a noite. Ela virá.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Chove

Quando saí da escola, já a noite tinha caído. Não que fosse tarde, mas porque os dias, vergados aos decretos da astronomia, resolveram minguar. Chovia. E não há nada como a chuva para lavar as almas. Almas são coisas que se conspurcam com muita facilidade. E não falo desses pequenos pecados que levam as pessoas, ainda vivas, às prisões, e aos infernos, se a morte as leva. Pecar contra o espírito, isso sim, é grave. E haverá maior pecado contra o espírito do que tentar ensinar metafísica a adolescentes? Talvez a ética nos prescreva o dever de nos abstermos de tal desígnio. Hoje acordei voltado para as incompatibilidades. Mas, como se sabe, a carne é fraca e precisa de se ocupar com alguma coisa ociosa. Saí do edifício e, no caminho para o carro, senti cada pingo de chuva que caiu sobre mim. A metafísica ficava lá para trás e pensei, arrastado por um lugar comum: comam chocolates, comam! Olhem que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. E assim de alma lavada, como se tivesse acabado de me confessar, rasguei o veludo negro da noite e cheguei, sem estados de alma nem inquietações, a casa. Chove e isso, por agora, basta.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Lítotes e hipérboles

Tenho sempre na secretária um livro que, apesar de fastidioso, consulto, a mais das vezes ao acaso, para minha instrução. Trata-se de Elementos de Retórica Literária. Abri-o há pouco e vieram até mim as páginas que tratam da lítotes e da hipérbole. Estas coisas não interessam a ninguém, mas eu tenho uma acentuada inclinação por coisas que não interessam a ninguém. Enrolo-me nelas e, enquanto as pessoas sensatas tratam de coisas que interessam a alguém, eu fico por aí a cultivar inutilidades. Espero que elas me iluminem e me contem um qualquer segredo, mas elas são avaras. E estava eu de volta da hipérbole pura e da hipérbole combinada, a meditar no exagero da sua sovinice, quando, ao mudar de página, caem umas requisições de livros feitas numa biblioteca de Lisboa há 20 anos. Não apenas me confirmam a minha obsessão pelo inútil como me atiram para dentro de um passado que se tornou tão inútil quanto o meu amor, não pequeno, por lítotes e hipérboles. E chegado aqui, hesito se fico na contiguidade da metonímia ou se vou à janela ver se chove. De preferência, hiperbolicamente.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Queda

Hoje a minha tarde foi ocupada com um intenso trabalho sobre coisas ociosas. Poderia ter ido passear e ver as folhas mortas que estendem as suas garras lacrimosas pelos passeios. Teria aprendido bem mais do que aprendi. A humanidade tem sempre uma enorme capacidade de me decepcionar. Eu sei que os padrões são altos. Como pode a sabedoria humana competir com o saber que há numa folha cuja seiva secou e, nessa leveza, se entregou à vertigem do vento e da gravidade? Não pode, pois não há sabedoria maior do que aquela que nos leva ao transe da queda. 

domingo, 19 de novembro de 2017

Silêncio

Os domingos penso-os, muitas vezes, silenciosos. Não basta que as pessoas deixem, por umas horas, de se entregar ao bulício dos negócios. É preciso que dentro delas cresça um silêncio que transbordará nas praças e nas avenidas. Assim, o domingo seria santificado, e tudo teria a marca desse novo hossana ao que há de mais secreto em cada um. As conversas, os gestos, os grandes passeios dominicais. Os amantes amar-se-iam dentro do silêncio e o seu amor ficaria protegido pelo segredo e, desse modo, seria mais forte. Um amor que transborda para fora do silêncio fenece e, não tarda, passa do alvoroço com que se ostenta para o declínio que o aguarda. O silêncio, aquele que eu, aos domingos, penso que eles deveriam conter, é o alicerce que permite ao mundo persistir, apesar da rudeza do ruído que, até ao domingo, como uma folha morta, de tudo se desprende.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Anarquistas

Inadvertidamente, dei por mim a ouvir Les Anarchistes, na voz de Léo Ferré. Que conjunção astral se terá desenhado para que isso acontecesse, não sei. Os desígnios dos astros são ainda mais obscuros que os de Deus. A verdade é que lá estava a voz inconfundível do cantor a prestar tributo aos anarquistas espanhóis. Lembro-me bem daquela figura vestida de preto, a cantar solitária, num cenário vazio, em concertos transmitidos pela RTP. Dizia-se na época, coisa que nunca confirmei, que para além de viver num castelo, Ferré era anarquista. Talvez vivesse e talvez fosse. Ora os anarquistas são como aqueles clubes de futebol de que toda a gente gosta, mas que ninguém leva a sério. Por exemplo, simpatizo com o Belenenses e com a Académica de Coimbra, mas… Com o anarquismo, nem isso. Li Piotr Kropotkin, as coisas que uma pessoa lê, mas acho que nunca li Mikhail Bakunin. O que li mesmo foi G. K. Chesterton e a novela O homem que era quinta-feira. Quinta-feira era um polícia infiltrado numa terrível organização anarquista. O comité central da organização era composto por sete membros e cada um tinha por pseudónimo o nome de um dia da semana. Ora o que quinta-feira vai descobrir é que ele não é o único polícia infiltrado na tenebrosa organização anarquista. Todos os membros do comité central eram polícias infiltrados e, tanto quanto me lembro, o domingo acumulava a chefia do grupo e o da polícia. Para mim, numa noite de sexta-feira, o anarquismo confunde-se com um livro de Chesterton lido há décadas. Como é possível dizer isto e ser verdade?

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

O castelo

Às vezes, quando a noite não é propícia para fazer alguma coisa, acerco-me de uma janela e fico a olhar o velho castelo, agora iluminado por holofotes que o recortam das trevas, e o vestem de uma modernidade enigmática que o tornam vivo, embora exilado dos mistérios do tempo que foi o dele. Vejo apenas duas torres e o pano de muralha correspondente, mas isso basta-me. E fico ali, a ouvir a noite, quase extasiado, por aquela fortificação ter conseguido chegar aos dias de hoje, ultrapassando não poucas vicissitudes. Não é impunemente que se pertence a uma terra com castelo. Fazemos parte daquelas pedras e elas, em segredo, moldaram-nos o carácter. Há uma longa história atrás de nós e isso, nestas noites já tocadas pelo frio, é reconfortante. Não que estas pedras e esta longa história, penso ao olhá-lo, nos torne melhores do que outros que não pertencem a terras acasteladas. Não torna, mas nós sabemos que é melhor ter um velho castelo para olhar do que não ter nenhum. 

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Conspirações

Faz um ror de anos que descobri que as letras dos livros conspiravam contra mim. Letras que outrora me tinham em alta estima e se apresentavam perfiladas na sua estatura normal, a partir de certa altura deixaram de me levar a sério e começaram, com suspeita contumácia, a surgir disfarçadas de anões. Não cheguei a ficar indignado, mas não gostei da brincadeira. Não tinha inclinação para ser Branca de Neve, nem idade para ser desconsiderado no respeito que qualquer letra deve a um ser racional. Pessoa amiga, porém, olhou para mim, riu-se e acabou por me tranquilizar, dizendo que o problema estava no meu envelhecimento. Não se coibiu de me fornecer, com detalhes, a explicação científica, a qual, depois de aceite, acabei por esquecer. Disse esquecer. E aqui está uma nova conspiração. A memória, que em tempos me fora fiel, decidiu agora atraiçoar-me, talvez confiante na fraca visão, à minha frente. Quando paro o carro ao pé de casa, vejo um vizinho solícito a dar-me as boas tardes e a informar-me que me tinha esquecido das chaves de casa na fechadura da caixa do correio. Reconstruí a cena. Coloquei a chave na fechadura, abri a caixa, tirei o correio e aqui há um espaço em branco de algumas horas. Mil agradecimentos e outros tantos obrigados e vou para casa almoçar. E fui jurando que iria ter mais cuidado. E nestas juras e promessas lá se foi o tempo. Desci fui para o carro. Estava lá, mas tinha-me esquecido de o fechar. Eu sei, eu sei. Há uma explicação científica. Até para isto.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

A moral das coisas

Certamente, por distracção minha, nunca tinha atribuído um valor moral ao ordenamento das coisas mecânicas. Persisti nesta funda ignorância até há pouco. Tendo o relógio decidido parar, apesar de a pilha, que o animava nos trabalhos e dias que lhe competiam, ser relativamente nova. Não me ocorreu que tivesse entrado em greve e dirigi-me a uma relojoaria. A senhora que me atendeu quis alargar o âmbito dos meus conhecimentos e, apesar do meu patente desinteresse pela causa da recusa do aparelho em funcionar, chamou o relojoeiro. Todos os que estudaram filosofia sabem que um relojoeiro está mais próximo de Deus que qualquer outro mortal. E foi aí que tive a percepção da ordem moral que rege o mundo dos autómatos. Explicou-me ele que a acumulação de impurezas no mecanismo conduz a que, para funcionar, este tenha de gastar mais energia. Logo, as pilhas duram menos. Não quis pormenores sobre as impurezas, bastou-me o desperdício. Traduzindo isto, aprendi que a impureza, seja ela o que for, leva à dissipação e, se não se atalhar, pode conduzir mesmo à ruína e morte do instrumento. Quando saía do estabelecimento, tive de me controlar e não voltar atrás para perguntar se não seria sensato levar o relógio a um padre confessor. O melhor é manter as aparências, pensei, e mergulhei no frio que a noite, ao cair, trazia consigo.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Passado

Não sei bem o motivo, mas, ao sair da escola, de uma daquelas reuniões que marcam o itinerário para nenhures, dei comigo a pensar na relação com o passado. Não com o meu passado, mas o da história. Quando era aluno, ali mesmo, naquela escola, a distância histórica para qualquer coisa que não fosse ontem era incomensurável. Por exemplo, o tempo de Eça de Queiroz parecia-me inimaginável. Isto para não falar do de Camões. Quanto aos gregos, esses teriam vivido há tanto, tanto tempo, que talvez nem fossem bem humanos. Como é possível que hoje fale aos meus alunos dos gregos e das suas obras como se isso tivesse acontecido ontem? Como é possível que, em algumas décadas, se tenha dado em mim mudança tão radical? Depois, penso que envelhecer não é adentrar-se no futuro, mas aproximar-se do passado. Quanto menos futuro temos maior é o passado que abarcamos, pensei ao fazer a rotunda em direcção à avenida marginal, onde os castanheiros se perfilam e fazem a contabilidade dos mortais que por ali passam.

domingo, 12 de novembro de 2017

Tenebrae Responsoria

Medito nas razões para que, nesta noite de domingo, tenha decidido escutar a meandrosa música de Carlo Gesualdo, o príncipe de Venosa, o torturado e tortuoso assassino da sua primeira mulher e do amante desta. Oiço Tenebrae Responsoria, o que não deixa de estar adequado com a minha hora e o espírito do autor. E, no entanto, desta música desprende-se algo tão luminoso – do mais luminoso que o Renascimento nos oferece – que consegue rasgar as trevas e dar a ver a vida na sua totalidade, nessa mistura conflituosa de dia e noite. E pela música, mais uma vez, sou instruído que a noite contém uma luz bruxuleante, mas que o dia da amanhã também traz em si a negra noite, como se a vida não fosse mais do que um perpétuo jogo entre potências que nos ultrapassam e de nós dispõem sem grande respeito pelo nosso livre-arbítrio.

sábado, 11 de novembro de 2017

Fantasmas

Desloco-me pouco dentro da cidade. Os caminhos que preciso de percorrer em Torres Novas não o exigem. Esta tarde, porém, depois de ir visitar a minha mãe, atravessei a ponte do Raro e dei uma volta pelo centro. Como se tornou hábito, sempre que o faço, desce sobre mim uma melancolia que nem a luz, ainda tão clara, consegue disfarçar. É como se tivessem roubado o espírito da velha vila onde cresci. A memória retém imagens de bulício, cenários de uma vida real marcada pelo ardor com que a esperança traçava um horizonte, para onde a existência de cada um se dirigia. Agora, mesmo nos melhores momentos, há uma sensação de tristeza e de abandono. É necessário fazer um esforço para perceber que as pessoas que avistamos são reais e não meros simulacros. É um exercício penoso viver entre fantasmas, ser um fantasma entre fantasmas, pensei, enquanto dirigia o carro para longe daquele espaço onde, há muito, houve uma vila que transportava, orgulhosa, séculos, talvez milénios de história.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Fluxo

Sexta-feira à noite. Oiço Für Anna Maria, Piano Music, de Arvo Pärt. Deixo-me envolver, mas logo o vinilo termina e tenho de voltá-lo. O som do vinilo é incomparável, mas este põe disco, vira disco, muda disco passou de moda. Ou então tornou-se cansativo, num mundo em que o menor esforço triunfou. O importante, porém, é que se chegou a sexta-feira. São sempre equívocas as noites de sexta-feira. Parecem o começo do fim-de-semana, mas, na verdade, são já o anúncio de uma segunda-feira negra, turbulenta e, como tudo o que é humano, inútil, demasiado inútil. Por vezes, imagino-me a reter o tempo, a não deixar que os segundos se escoem. Depois, desisto e entrego-me ao fluxo, ao velho rio onde Heraclito não se poderia banhar duas vezes na mesma água. Num ponto do rio, não sei onde, está a minha morte. Espera-me. O melhor é deixar-me ir no Spiegel im Spiegel, de Pärt, como quem é arrastado pela torrente indomada do tempo. Sexta-feira à noite. O sábado é já uma promessa, uma ameaça no horizonte.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Paradoxos e mistérios

Depois de um dia excessivo que se esvaiu entre reuniões e o magno problema do livre-arbítrio, dou comigo, quando, noite cerrada, atravesso a cidade em direcção a casa, a pensar, movido por um interesse recente, no chamado paradoxo da pedra. Será possível Deus criar uma pedra que nem Ele consiga erguer? Se não conseguir criar essa pedra, então não é omnipotente. Mas se conseguir criá-la, também não é omnipotente pois não será capaz de a levantar. Em vez de tentar descobrir a solução do paradoxo, medito, ao subir o viaduto, ali mesmo onde o rio é mais frio, que os homens, neste particular, são muito menos problemáticos que Deus. Têm tendência a criar pedras que, em pouco tempo, nem uma multidão erguerá. Livres do atributo da omnipotência, não são enredados em paradoxos. Contudo não deixa de ser, para mim, um mistério a propensão humana para criar aquilo que o há-de esmagar. O dia pesa-me toneladas e a noite promete não aliviar o peso que desaba sobre os meus ombros. 

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Texugo

Há muitos anos, conheci alguém que tinha por máxima de vida preservar-se do contacto com o rebanho. Era uma pessoa discreta e, por alguma razão que eu nunca quis saber, deixou que o aforismo se lhe soltasse da boca num ambiente relativamente público. Nesse momento dei pela sua existência. Foi o princípio de uma longa amizade só interrompida pela morte. O rebanho, dizia, não cheira apenas mal. Contamina-nos com o seu cheiro. E logo acrescentava que não há coisa pior que o mau odor. Um dia, numa conversa ocasional cujo assunto esqueci, acrescentou à sua tese uma taxinomia humana. Há quatro tipo de pessoas, afirmou, enquanto olhava para lá da janela. As que fazem parte do rebanho, as que são cães do rebanho, os pastores do rebanho e os inúteis, os que não sabem balir, nem ladrar, nem possuem voz de comando ou propensão para homilia. Esses tornam-se suspeitos e a única solução que possuem, para que possam preservar a vida, é tornarem-se texugos. Só o mau cheiro pode combater o mau cheiro, acrescentou não sem deixar escapar uma gargalhada.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Desejo

Há pouco, ainda havia luz, passei por uma mulher encostada à parede de um prédio quase pegado àquele onde moro. As costas hirtas pareciam suster o monstro de cimento, mas a cabeça inclinava-se para o chão. Os olhos, fascinados pelo rodopiar das folhas que o Outono rouba ao arvoredo, não se desprendiam do espectáculo. Tive vontade de parar e desejei ser arrastado para dentro daquele olhar. Havia nele uma tal melancolia que quase me comovi. Apressei o passo e já longe voltei-me para trás. As folhas rodopiavam e na parede havia então uma sombra, o buraco vazio de um desejo por realizar.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Desassossego

São longas, muito longas, as segundas-feiras. Chega a noite e sento-me sem saber bem o que fazer do que ainda tenho para acabar. Logo, porém, esqueço os trabalhos e os dia. Um acaso, e eu sou muito atento aos acasos, influência do incerto princípio da incerteza, de Heisenberg, conduziu-me a um texto sobre o escritor norueguês Kejell Askildsen, cuja obra faz parte do infinito oceano da minha ignorância. Diz ele que escreve histórias para desassossegar os leitores. Compreendo-o, mas tenho uma funda dúvida sobre se os leitores querem ser desassossegados. Leitores desses são uma raridade. Há alguns, claro, que falam muito em desassossego, mas, por norma, gostam que sejam os outros a serem desassossegados. Eles, apesar da retórica, querem ser confirmados nas suas crenças. O desassossego é sempre algo que o outro precisa. São coisas destas que me dão para pensar às segundas-feiras depois de jantar, quando me fecho no sossego do escritório e oiço a noite ranger nos gonzos da terra.

domingo, 5 de novembro de 2017

Domingo

Sem interlúdio, transitámos de um Verão agreste, pesado e funesto para o Verão de S. Martinho. Imagino que ali ao lado, na Golegã, a azáfama seja grande. É um mundo que nunca exerceu qualquer fascínio sobre mim. Por vezes, fazia visitas etnográficas, mas a etnografia deixou de me interessar há muito. Sou um péssimo ribatejano, confesso. Prefiro ficar a ver o sol a iluminar o silêncio da manhã e a ramagem das árvores a ser sacudida por uma brisa ligeira que se desprende da Serra de Aire. Há mais verdade no vento que desce da serra do que no trote dos cavalos num concurso hípico. E rio-me deste pensamento absurdo. Uma sirene interrompe-me o devaneio, e logo avisto uma ambulância a correr para o hospital. Também eu, um dia qualquer, posso ir de urgência para lá. Encolho os ombros. Poucas são as coisas que estão na mão dos mortais e mesmo essas são incertas. A tarde chegou mansa e recordou-me que há muitos, muito anos, a esta hora, estaria na Igreja de S. Pedro, na missa do meio-dia. Talvez o mundo, naqueles dias, fosse mais perfeito. Ou talvez fosse igual ao de hoje. Eu é que perdi a paciência para a homilia. 

sábado, 4 de novembro de 2017

Um raga

Por vezes, aventuro-me na música erudita, digamos assim, de tradições não ocidentais. A que mais me fascina é a japonesa. Hoje, porém, não sei se devido à combinação do sol e das nuvens em tarde de sábado, ou se por ter andado, há pouco, a observar as folhas avermelhadas pelo Outono das árvores da avenida, acabei por escolher um raga indiano. Na raiz indo-europeia da palavra raga está a ideia de colorir, descubro-o agora numa consulta na internet. É a mesma raiz da palavra inglesa red e por certo da alemã rot ou da francesa rouge. O raga, enquanto peça musical, pretende colorir a mente, retirá-la da abstracção dos conceitos e fazê-la o centro da vida. A experiência de escuta, contudo, não é, de início, a de uma explosão vital como, por exemplo, na Sagração da Primavera de Stravinsky. Pelo contrário, o espírito que escuta volta-se para si, concentra-se na sua solidão, abstrai-se da exterioridade. É um espírito devocional. Só depois, de forma gradual mas vagarosa, a música conduz à exteriorização, à manifestação no mundo, da vida exuberante, e o corpo quase é movido pela vento que sopra da música. De súbito, percebo que o sol deste sábado ou as folhas avermelhadas do Outono, também eles, nascem desse espírito que sopra do raga que oiço. Lá fora, um vento empurra as folhas e fá-las rodopiar, rodopiar, rodopiar e, entre mim e as folhas que rodopiam há uma funda comunhão.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

O baile

Uma loja de roupa anuncia-me, por sms, que sente a minha falta. Apetece-me responder que eu não, não sinto, de todo, a minha falta. Contenho-me. Ainda não me habituei a estes anoiteceres temporãos. Tenho de vigiar o humor. Lá dentro, as minhas netas contendem sobre quem será a princesa e quem será a aia. Enquanto me entretenho com uma broa remanescente dos Santos, espero que o litígio se prolongue. Quando terminar, está-me reservado o papel de acompanhar a princesa ao baile. Com o tempo que está, não me apetece calcorrear a cidade numa velha carruagem. E a noite, mais negra e mais densa, desce sem piedade sobre o dia. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam, disse João. Fico a meditar na incompreensão das trevas perante a luminosidade da luz. A demanda parece resolvida. Não tarda, irrompem pelo escritório. O melhor é ir preparar-me. Será que tenho roupa para o evento?

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Fiéis Defuntos

Não ontem, mas hoje, sim, é o dia de Fiéis Defuntos. Consta que a tradição se teria iniciado no século II. Os fiéis oravam pelos mártires. Mais tarde, pelo século V, a Igreja dedicou um dia para que se rezasse por todos os mortos, por aqueles de que ninguém se lembrava já. Este exercício mnemónico fascina-me, como se ele fosse o resultado de um saber arcaico, uma sabedoria que não desiste de nos recordar que somos, todos nós, devedores de uma longa tradição genética. Sem cada um desses membros esquecidos da cadeia que nos liga ao início da vida, não existiríamos. Haja então um dia em que os possamos recordar, trazê-los ao coração. Não comprei crisântemos e não irei ao cemitério. Nunca o faço nestes dias. Trago, porém, os meus mortos comigo. Aqueles que conheci e amei e aqueles que teria amado se me tivessem dado essa possibilidade. Por vezes, dou comigo a falar com um ou outro dos meus avôs, os quais morreram muito antes que qualquer um dos seus netos tivesse nascido. Apesar disso, compreendemo-nos muito bem. Eles, como eu, sabem o quanto lhes devo.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Banalidades

Leio: a morte está cada vez mais banalizada. Assinto sem dificuldade. Quanto mais banalizada estiver a vida, mais banalizada estará a morte. Nunca a banalização da morte ultrapassará a banalização da vida.

Todos-os-Santos

Comi há pouco uma broa, daquelas broas de azeite que só em terras de olival existem. E ela instalou-me, como por milagre, em pleno dia de Todos-os-Santos, fez-me mesmo crer que o Outono chegara. O dia, tomado pelo revoltear do vento, a chamar chuva, e pela luz desmaiada, confirma-o. Em criança, nunca participei nessas deambulações, em grupo, de porta em porta, a que aqui chamam “ir aos bolinhos” e em outros lados “pão por Deus”. Não lastimo esse espaço em branco no currículo. Por certo, os meus pais não favoreciam a aventura, mas a causa primeira, vejo-o agora, estaria na minha pouca vontade para o fazer. Tirando uma época exígua em que, tomado pela febre do tempo, julguei que a salvação do mundo estaria na força do grupo, a minha vida caminhou sempre em direcção contrária. Por isso estranhei há pouco, vinda de não sei bem onde, a voz de alguém a trautear “canta amigo canta / vem cantar a nossa canção / tu sozinho não és nada /juntos temos o mundo na mão”. Nunca percebi para que haveria de querer ter o mundo na mão. E logo me recolhi em Todos-os-Santos, que, apesar da sua natureza colectiva, faz nascer em mim o desejo de uma longa solidão.

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Os castanheiros da avenida

Quando, hoje de manhã, atravessei a avenida marginal, havia nos castanheiros um silêncio ruidoso, quase agreste, talvez uma atitude de desafio aos que, como eu, por ali passam sem os ver, ou, talvez mais indesculpável, só os vendo naquela época do ano em que o seu ser se exibe numa floração sumptuosa, que cativa os olhos e os obriga a erguer-se às copas. Uma pessoa vai por ali, enclausurado no carro, a ouvir música, e enrodilha-se no primeiro oximoro que lhe aparece e logo começa pensar em silêncios ruidosos ou na paz conflitual que a envolve. E por uma súbita associação de ideias percebe que o silêncio ruidoso dos castanheiros é uma metáfora de certos ambientes que frequenta, o horizonte onde se inscreve aquilo que diz. Nunca é tempo perdido falar com castanheiros ou carvalhos, ou mesmo a velha oliveira que o tempo deixou esquecida num relvado posto ali para que se pensasse que somos civilizados.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Sombrio

A noite cai agora demasiado cedo. As pessoas enrolam-se nela e vão rua fora, e eu vejo-as passar em direcção ao seu destino, sem que saibam que tudo é fortuito, mesmo a noite onde se escondem ou a hora em que ela cai. Dizem-me, por vezes, que vejo as coisas demasiado sombrias e que preciso de me encantar com o mundo. E eu penso que devo precisar de ir ao oftalmologista, pois os olhos inclinam-se para ver sombras onde os outros vêem tudo tão luminoso. Talvez o problema se resuma à falta de óculos ou, em caso mais extremo, a alguma catarata que se interponha entre mim e o esplendor fulgurante do mundo.

domingo, 29 de outubro de 2017

Questões filosóficas

Um problema desabou aqui em casa ao cair um dente da minha neta mais velha. Pôr o dente por baixo da almofada ou não, para que a Fada dos Dentes tenha oportunidade de exercer a sua benevolência. Perante o dilema, a mais nova diz: “A mana não acredita no Pai Natal nem na Fada dos Dentes, mas eu gosto de acreditar. Faço bem, não faço, avó?” E assim, numa daquelas conversas que ela gosta de entretecer com os adultos, resolve problemas filosóficos com mais rapidez do que aqueles a que eles se dedicam. A magna questão de crer no Pai Natal ou na Fada dos Dentes não pertence ao reino da epistemologia, mas ao da estética – eu gosto de acreditar – e ao da ética – faço bem, não faço? E assim, ficamos a saber que não é a verdade que interessa, mas o prazer. E se nos dá prazer, então temos o dever de acreditar. Será isto o fundamento da religião?

sábado, 28 de outubro de 2017

Crisântemos

Pego no livro de haikus de Bashô e leio um. Não é bem ler, antes uma tentativa, condenada ao fracasso, de escutar o sentido, o fundo sentido que, apesar da tradução, ainda deve ecoar no texto. Escreveu o poeta ou o tradutor: “para não morrer no outono / a borboleta bebe o orvalho / depositado sobre o crisântemo”. Não sou japonês, não pratico o Zen, e tudo o que ressoa em mim é o desespero da borboleta que, por um jogo fácil de associação, me faz lembrar os homens neste Outono português. Olho a manhã e duvido que tenha havido, mesmo na primeira aurora, orvalho sobre os crisântemos. E uma pergunta assalta-me: haverá este ano crisântemos suficientes para que a memória dos mortos não feneça e os vivos se sintam reconciliados com o outro mundo?

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O elusivo Excel

Tenho estado às voltas com o Excel. Para dizer a verdade, não sei nada da ferramenta, mas fascina-me o espírito geométrico e exacto que por ali reina. Dou comigo a pensar que deveria ter enveredado pela matemática ou pela física em vez de me interessar pela filosofia e pela literatura. É assim que se perde uma vida. Suspendo estes pensamentos dolosos e abro uma frente de combate com o software para ver se, sem recorrer a terceiros, me desvenda os segredos que procuro. Porém, ele é avaro e ríspido e logo me atira ao tapete. Há pouco, deixou-se surpreender e descobri uma das coisas que procurava, mas ainda falta o mais importante. O melhor é pegar na edição completa dos haikus de Matsuo Bashô, o eremita viajante, que a Assírio & Alvim teve a caridade de publicar, e procurar ali a chave que me há-de abrir o caminho para o beneplácito do elusivo Excel. Há coisas que não têm solução e pessoas que não têm cura.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O reino da anomalia

Os dias quentes deste Outubro alucinado correm engavinhados à inutilidade. Esta não é uma negação do útil, mas um florescimento de anomalias que se tornam tudo o que um certo modo de vida pode conter, até que não seja outra coisa senão uma grande e monótona anomalia. Quando se escolhe ou aceita um modo de vida anómalo, o mais certo é que se viva na sombra da anomalia. Por vezes, um vento desassisado desce sobre nós como o Espírito Santo, em línguas de fogo, desceu sobre os apóstolos. É o nosso dia de Pentecostes. E então falamos em diversas línguas e profetizamos sobre o fim do reino da anomalia, mas não há ninguém para ouvir. O entardecer inclina-se sorrateiro para a noite e recordo-me da minha velha gata. Eu falava e ela ouvia. Depois, miava e saltava-me para o colo a ronronar, enquanto eu lhe passava a mão pelo dorso. E tudo estava no seu lugar.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

O fim do mundo

Dei comigo a cismar sobre O Leopardo, de Visconti. Acontece-me, por vezes, a memória, sem que eu perceba porquê, voltar a esse filme. O que me prende nele, como num sonho recorrente, é a cena inicial, a da oração do terço, e a final, a do baile. Entre estas duas, é um mundo que se afunda na ruína e outro que desponta. Assaltam-me imagens das contas a deslizar pelos dedos dos que rezam entrecortadas por outras, onde os pares rodopiam no salão de baile. E eu não sei, juro que não sei, se um mundo, outrora sólido e garboso, acaba com uma oração ou se com uma grande festa. Se num mistério doloroso ou se numa promessa gozosa. 

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Um galo

A noite ruge de uma forma muito distinta do dia. Oiço-a murmurante e no murmúrio descortino a ameaça. Exceptuando talvez a primeira juventude, nunca fui um animal noctívago. Talvez me dê mal com as potências das trevas e prefira, sem hesitação, deixar vaguear os olhos sobre as coisas iluminadas pelo Sol. Alguém fecha uma persiana, um carro passa na avenida, mas a noite continua, levada pelo seu rugido, a deslizar para a madrugada. O pior é não haver por aqui um galo. Quando cantasse, saber-se-ia que o dia se aprestava para estilhaçar a parede negra com que somos envolvidos. Um galo a Asclépio devia Sócrates na hora da morte. Um galo é o que todos devemos quando a noite se aproxima.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Teoria

Tenho um aluno, aliás excepcional, que parece ter desenvolvido um enorme interesse pela política. Apercebi-me que esse interesse nasceu mais ou menos com a mesma idade em que eu despertei para o fenómeno. É evidente que, devido à distância geracional, os espaços ideológicos que exerceram essa atracção são muito diferentes. Comum é que no centro desse interesse pela política há um enorme fascínio pela teoria, pela explicação do mundo e pelos argumentos que suportam essa explicação. O que não sabem, aqueles que muito novos são fascinados pela teoria, é que esta é como a ideia das quatro estações. O clima recusa-se sempre a cumprir os prazos determinados pelo calendário, como se vê agora, em que um dia destes entramos no Inverno sem ter saído do Verão. No fundo, as teorias são revoltas contra a realidade, uma espécie de libelo acusatório contra a desordem do mundo, e quando se está na primeira juventude, como eu mesmo experimentei, a desordem do mundo é inaceitável. A teoria parece então simplificar e ordenar esse caos patológico. Depois, percebe-se que a desordem é a própria natureza do mundo e o fascínio pela teoria perde o encantamento. Deixa de ser um espaço mítico e passa a ser um instrumento de trabalho, quanto menos rígido melhor, para lidarmos com a vida e o mundo. Isso, porém, é uma experiência que cada um faz por si mesmo, percorrendo o caminho que escolheu ou que o escolheu. O pior é mesmo o Outono hesitar em ser Outono e querer continuar Verão.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Hooligan

A Antena 2, estação de rádio a que sou fiel, tanto quanto posso, há décadas, tem o condão de me exasperar. Sintonizo-a e apenas quero ouvir música, mas, por vezes, a estação insiste em servir-me uma conversa que, vá lá saber-se a razão, me há-de tornar culto. Dispenso, de mau humor, o enriquecimento oferecido e viajo para o spotify ou para o youtube, só para não ter trabalho de pôr um CD ou um LP. Nesses momentos de exaspero, fico na dúvida se serei um bocadinho autista, como se diz cá por casa, ou se não passarei de um hooligan, daqueles a que refere Jason Brennam no seu livro Against Democracy. E enquanto selecciono os Nocturnos, de Chopin, pela Brigitte Engerer, penso que, nestes  dias, tornei a constatar que estou rodeado de hooligans políticos. Uns mais amáveis e amenos, outros mais exaltados e exasperados, mas quase todos hooligans. Vulcanos, esses são raros, muito raros, embora os haja. Mas mais que a política, é a conversa atoleimada, a que me há-de salvar da incultura, que me aproxima do hooliganismo. Um dia destes talvez fale de hobbits, hooligans e vulcanos, caso não tenha mais nada para dizer.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Dever ser

O vento bate nas persianas, enquanto a música vinda da escola aqui ao lado invade o escritório. Tenho de decidir se quero que o ar continue a entrar ou se me poupo ao gosto musical que outros teimam em impor-me. E sinto-me enrolado nessa eterna controvérsia entre aquilo que é e aquilo que deve ser. Se olho as árvores da avenida, cujas folhas, tocadas pelo vento, se entregam ao êxtase da queda, não me ocorre nenhum dever ser. Poderia, porém, olhar para as pessoas sem carregar comigo os óculos do dever ser? Eis uma pergunta muito pertinente nestes dias, penso. E dou comigo a dizer que era assim que as deveria olhar, olhá-las sem as pintar com aquilo que elas deveriam ser mas não são. Rio-me, vítima de mim mesmo, do meu dever ser, e fecho a janela.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

O fragmento 18

Enquanto me preparo para sair não me sai da cabeça o início do fragmento 18 de Heraclito: “se não esperarmos o inesperado, não o encontraremos”, traduzo, de memória, duma tradução francesa. Dupla traição. É verdade que pela manhã deve haver coisas mais interessantes para pensar, enquanto se toma o pequeno almoço ou se lava os dentes. Mas quem não sabe que somos mais escravos dos nossos pensamentos do que seus senhores? E o Heraclito e o seu malfadado fragmento lá calcorreiam entre os meus neurónios, ainda adormecidos. Da janela, enquanto bocejo, avisto um Outono envergonhado e oiço o rumor indiferente dos carros que passam. O fragmento caminha, caminha dentro de mim à procura de um porto onde atracar. Por fim chega ao seu destino. Afinal, vivo num país que sempre espera o inesperado, pois está sempre a encontrá-lo. Quando a minha mão abre a porta de saída, hesito longamente. Também eu estarei à espera do inesperado?

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A promoção da cegueira

Quando pus o carro a trabalhar, para sair da Maria Lamas, a Antena 2 estava a dar um programa sobre os irmãos Grimm. Alguém referia, não cheguei a saber quem era, a forma como os Grimm tinham tornado os contos populares em algo mais aceitável para a moral da sua época. O exemplo usado foi o da Branca de Neve. Originariamente, o conflito não era entre a madrasta malvada e a bela e doce enteada, mas entre mãe e filha, provavelmente uma rivalidade de tonalidade psicanalítica. A idealização, com a clara demarcação entre o bem e o mal, por muito encantadora que possa ser, tem o vício de apagar a experiência que o conto popular traria consigo. Olho para aquilo que me envolve, para as pessoas por quem passo, para a avenida por onde encontro o caminho de casa, e a tentação de envolver a realidade com o véu do encantamento é grande. Os Grimm – e outros como eles – tiveram um enorme papel no treino para nos tornarmos cegos. Não, uma mãe e uma filha não podem rivalizar, isso é imoral. E, por isso, não há nada como esse exercício de cegueira que transforma uma mãe numa madrasta. A realidade tem sempre um peso insuportável.

domingo, 15 de outubro de 2017

Vento de Outono

Ao abrir a janela, atingiu-me uma lufada de ar quente. Afinal, as previsões confirmam-se, ponderei. Chegaremos aos 35º. Não sei o que hei-de pensar desta minha nova obsessão com o estado do tempo. Temperatura de Verão, mas a cor da luz não engana ninguém. Os prédios, onde ela se reflecte, ostentam agora um ar de melancolia tão distante da irritante jactância com que se mascaravam nos dias mais violentos de Julho e Agosto. As pessoas passam enroladas em conversas de domingo. Dois cães olham-se, medem-se, ganem e afastam-se de rabo a abanar. Os domingos são assim, disse para mim, territórios onde nem os cães gostam de se confrontar. O folhedo caído, levanta-se enovelado pelo vento. Este não engana. É o velho vento de Outono. Tenho sede. Fecho a janela e recolho-me reconciliado.

sábado, 14 de outubro de 2017

Comprar cadernos

Por vezes, compro cadernos. O papel em branco fascina-me. Imagino, então, que os posso encher com aquilo que me venha a ocorrer. Sou muito hábil em produzir justificações deste género. Tivesse eu talento para outras coisas como tenho para a justificação. Depois, chego a casa e arrumo-os e eles desaparecem da vista, do coração e até da memória. Poderia desconfiar que há em mim uma propensão para a acumulação. Nada de mais errado. Acabo por dá-los. Substituo a utilidade pela caridade. As minhas netas estão naquela idade em que precisam mesmo de um caderno que, rapidamente, se há-de encher de desenhos ou de jogos cujas regras me escapam ou, o mais provável, me seja vedado o conhecimento. Nunca é, contudo, o desejo de agradar aos outros que me leva a comprar esses cadernos. É a textura do papel ou a brancura da página rasgada por linhas de cor indefinida, se escolho um pautado, ou, acima de tudo, a necessidade que tenho de anotar neles o que me há-de ocorrer. Há décadas que não escrevo uma linha em papel. 

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Fronteiras

Sou um amante de fronteiras, desses espaços transponíveis à custa de ritos de passagem e de cerimoniais de acolhimento e de rejeição. Amo-as também porque são uma quimera inscrita na secura do espaço… ou do tempo. Por exemplo, a sexta-feira à tarde é uma fronteira ténue, mas viva, entalhada na ficção do calendário. O pior é a sua porosidade, a incapacidade de reter o tempo do negócio e afastá-lo, sem piedade, das horas de ócio. Por vezes, desconfiamos que essa raia não passa de um logro. É então que mais a amamos, pois não há amor que não exija o véu de uma ilusão. 

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Cuidar das orquídeas

Uma grande excitação vai por aí. Fala-se de acusações e arguidos, e do regime e sei lá eu mais de quê. Lá fora, alguém diz que tem de ir tratar das orquídeas. Empurrada pelo vento, uma porta bate. A água corre, oiço-a. Estou sentado e olho a janela. Ao longe, os cedros estão a secar e as paredes do hospital cobertas de bolor. Um pombo fendeu o horizonte e desapareceu. Pego num livro, mas, nem sei porquê, começa a desfilar diante de mim a sorte miserável de alguns déspotas odiosos. E nunca sei quem é pior, se o odioso justiçado, se a multidão que ulula por aí o seu ódio justicialista. A luz do sol ainda bate na parede do prédio da frente. Débil. Temerosa. Ao menos, se eu fosse um Nero Wolfe teria umas orquídeas para tratar e tudo seria mais fácil, penso. Morreriam, grita em mim a voz que nunca se cala.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Peso

Há dias que deslizam como uma sombra e caem, abruptos e inóspitos, sobre os nossos ombros. Não vale a pena erguer a voz. A noite virá para que, nascido o Sol, um novo dia se faça sombra e pouse, com o seu peso nunca suportável, no vozear sem fim dos homens. Eles, porém, não se calam.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Atraso

O dia amanhece com uma penumbra a toldar-lhes o rosto. Depois, a máscara há-de cair-lhe e, contra o meu desejo, a temperatura subirá impiedosa e impenitente. Levanto-me, enrolo-me nessa ameaça estival Outono dentro, e oiço o rumor matinal dos carros a precipitarem-se, ao longe, como sonâmbulos, auto-estrada fora. Olho pela janela e encolho os ombros. Fecho os olhos e vejo a terra seca e gretada, ervas e árvores, imagino-as em genuflexão, murmúrios levados pelo vento para que a misericórdia de um deus lhes traga água. Nenhum pensamento perpassa, só a sensação do calor que a tarde trará, o sol a lacerar-me já a pele. Nos olhos de quem há-de passar por mim antevejo uma ameaça de deserto, a areia a golfar-lhes das órbitas. Uma longa caravana serpenteia as dunas. Ponho a água a correr e penso: estou atrasado.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Fraquezas

Por vezes, entretenho-me em discussões que, sei-o à partida, são inúteis. Inúteis porque não conduzem a lado algum, não levam a um acordo mínimo. As partes olham de pontos de vista diferentes e, como não podia deixar de ser, vêem coisas diferentes. E aquilo que descobrem é tido como uma verdade. Difícil é explicar que sobre certos assuntos não há outra coisa senão perspectivas, visões parciais, limitadas, as quais pouco têm a ver com a realidade sobre a qual se terçam argumentos. Mais difícil ainda é fazer perceber que é possível sobre esses assuntos defender um ponto de vista sabendo que ele é limitado e, essencialmente, desadequado. Não por um desejo de persistir no erro, mas pela natureza belicosa do espírito humano. Nem sempre se resiste a si mesmo.

domingo, 8 de outubro de 2017

O irremediável

Há coisas que são irremediáveis, portas que se abrem e, mal transpomos o limiar, logo fecham para nunca mais se voltarem a abrir. Já não consigo reconstruir tudo o que vivi nesse dia. Lembro-me que fui acompanhado pela minha mãe e entregue a alguém conhecido dela. Fiquei no meio de uma matula que, desempoeirada, corria, gritava, guinchava, entregava-se a jogos que eu desconhecia de todo. Quando tocou uma sineta – talvez uma campainha – a multidão, trajada de bata branca, distribuiu-se, magicamente, pelas duas salas. Numa delas, aquela para onde entrei, estava uma senhora, talvez também tivesse uma bata branca, cujo nome, confesso com tristeza, acabei por esquecer. Isto passou-se a 8 de Outubro de 1962, uma segunda-feira, o meu primeiro dia de escola. Quando a porta da sala se fechou, nunca mais voltei ao mundo encantado de onde a minha mãe me trouxera. Há coisas irremediáveis.

sábado, 7 de outubro de 2017

Não pensar

Leio: "Os corpos são geografias deslocadas" e já não quero ler o resto do poema de Tolentino Mendonça. Tenho medo que o primeiro verso se estrague pela contaminação dos seguintes. E fico a pensar: o meu corpo deslocou-se de onde? Deixo perpassar por mim a música de Satie, que o velho gira-disco deixa escapar, temeroso de não descobrir esse locus original de onde o corpo se tresmalhou. Sempre podia ir fumar um cigarro, mas fico-me pela água que escorre da garrafa. É verdade, a palavra geografia, mesmo no plural, sempre me fascinou, e dos fascínios o melhor é não haver pensamento.