domingo, 30 de julho de 2023

Ter

Um domingo de Verão é sempre uma tarefa difícil. Depois de almoço, tomado pela preguiça, adormeci. Se sonhei, não dei por isso, como é habitual, mas talvez o meu psiquismo seja dotado de um princípio de realidade que se impede a si próprio qualquer devaneio. Outra possibilidade é que a instância censuradora seja de tal modo poderosa que elimina o vestígio das coisas que fantasio ao dormir. Não tarda, terei de fazer uma viagem de uma centena de quilómetros. Ainda não conduzo, vou sentado ao lado, contemplando a estrada e os campos que a estrada atravessa. Não são verdes. Ressequidos, terão cor de palha. Tenho de me preparar e tenho pouco a dizer. É estranho o verbo ter, mas não tenho paciência para pensar sobre a sua estranheza, a sua inquietante estranheza.

sábado, 29 de julho de 2023

Mais livros da minha vida

Como estou sem assunto – coisa, aliás, recorrente – e como não me apetece falar do clima, retorno a um assunto abordado no outro dia, os livros da minha vida. A certa altura, os livros de aventuras no longínquo oeste norte-americano foram substituídos pelas aventuras da Enid Blyton. Talvez exista aqui uma imprecisão. É possível, muito possível, que tenham sido coevos. Contudo, não é essa fileira que me interessa aqui, mas uma outra que me acompanhou mais tempo, mesmo quando já lia coisas sérias, muito sérias, e pensava que era existencialista e que o absurdo dominava o mundo. Imagino que isso seria para fazer número. Essa fileira é a do romance policial. Contudo, não admirei apenas as forças do bem, os Holmes, os Poirot, as Marple, os Mason, os Wolfe, os Maigret. Todos estes tinham um génio orientado para tornar manifesto os maus que praticavam o mal. Confesso que gostava imenso do gentleman gatuno Arsène Lupin e do sociopata, mestre em disfarces, Fantômas. Apesar das horas passadas na sua companhia, nunca me senti impelido para os imitar. O mal que eles praticavam nunca me pareceu o bem. Há relativamente pouco tempo comprei e li dois ou três romances de Arsène Lupin, mas não tiveram qualquer impacto sobre mim, nem negativo, nem positivo. A certa altura da minha existência, ainda com relativa pouca idade, li algumas obras de Hermann Hesse. Na altura, fiquei fascinado, mas por volta dos trinta anos, quando tentei lê-los de novo, senti uma enorme estranheza por aquela literatura e perguntei-me como tinha conseguido ler aquilo. Talvez me devesse perguntar outra coisa: como consegui ser aquilo que era para gostar de ler aquilo. Contudo, essa pergunta poderia levar-me a um trabalho excessivo para encontrar uma resposta e fiquei pela primeira. Diante de mim tenho um romance de Maurice Leblanc, Arsène Lupin Joga e Perde. Será que o vou ler?

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Mistérios

Há mistérios indecifráveis. Não me refiro, claro, aos segredos que o Pentágono ocultará de naves e restos biológicos alienígenas, coisa que não terá qualquer mistério. Há pouco, ao abrir um livro, deparei-me com um bilhete de entrada numa casa-museu existente no Ribatejo, antiga propriedade de um importante republicano, filho de um acérrimo monárquico, coisa que acontece muitas vezes. É um bilhete curioso, pois tem o preço de entrada em escudos e em euros, o que me leva a presumir que terei feito a vista nesse tempo em que ainda não nos tínhamos esquecido dos escudos, mas que já só circulavam os euros, o que está de acordo com a minha memória. O mistério está nos números escritos a lápis no verso do bilhete. Reproduzo: 284-355; 357-385; 243-255; 125-153. Descobri que indicavam excertos específicos do livro. Até aqui não há mistério. Este surge quando considero aquela caligrafia. Aqueles números não foram escritos por mim. Ora, o livro em causa não foi adquirido em segunda mão e não me lembro de alguma vez o ter emprestado a alguém, até porque quem poderia interessar-se por ele também o terá. Quem terá escrito aqueles números? A caligrafia é marcadamente feminina, mas não conheço ninguém do sexo feminino que se interesse por aqueles temas, e as mulheres que se interessam por ele não me conhecem e, por isso, não me poderiam ter dado sugestões de leitura. Restam-me hipóteses metafísicas. Por exemplo, alguma mulher me enviou uma mensagem codificada, que eu terei guardado no livro, mas cujo código de decifração esqueci, assim como o envio da mensagem e a própria mulher. Outra hipótese é a da existência de anjos do sexo feminino. Uma delas, querendo que eu lesse aquelas páginas deixou-me a mensagem no interior do livro. Parece-me uma hipótese bastante plausível. Não consigo, porém, perceber qual o interesse desse anjo feminino em orientar-me na leitura de coisas tão terrestres. Vou ler aquelas páginas e talvez descubra a razão de a mensageira me ter deixado tal mensagem. Talvez o mistério não seja indecifrável, embora, lamentavelmente, eu não seja um Sherlock Holmes.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Falta de asas

Por aqui está um tempo estupendo. O céu coberto de nuvens, um ar fresco, mas não gélido, mesmo o vento quase frio sopra com sensatez. Nem sequer chove. Para um dia de Dezembro está mesmo muito bom. A perfeição não é coisa que faça parte da minha natureza, por isso sou inclinado ao egoísmo. Eu sei que os veraneantes se sentem deprimidos, alegam faltar-lhes sol, para que possam mergulhar no oceano e depois deitar-se na areia, mas com tantos lugares para uma pessoa se deitar, por que razão terá de ser na areia? Eu sou um banhista não praticante. Creio firmemente que a água do mar faz muito bem, que o iodo faz ainda melhor, mas a fé não me leva a pôr um pé na praia. Este ano estou ainda mais limitado, pois suspendi as longas caminhadas junto ao mar. Um défice na acumulação de pontos cardio que se aproxima da dívida pública. O pé, o meu pobre pé direito, continua em convalescença, com visitas semanais ao cirurgião e, com mais assiduidade, às salas de enfermagem, onde é submetido a esmerada atenção e a comentários que vou registando. Pois, dizem, é um sítio difícil, logo aí, ah, pois, de novo, vai demorar tempo a cicatrizar. Olhe, abriu um pouco. Olho, mas não vejo nada. Eu digo que sim e oiço: o melhor é evitar andar. Dá-me vontade de perguntar se tenho de voar, mas contenho-me. Esqueci-me de trazer as asas e se me dissessem para voar, sentir-me-ia vexado por não ter como fazê-lo. A memória já teve melhores dias, como é possível esquecer as asas em casa? Porque está um excelente dia de Inverno, vou almoçar na rua, sob um telheiro. Se chover, estarei protegido.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Os livros da minha vida

Os livros da minha vida. Esta frase esconde uma enorme presunção, a de que a minha vida tem alguma importância para nomear os livros que fizeram parte dela. Apesar disso, hoje dedico este episódio, pois estes textos não são mais do que episódios de uma história sem nexo e mal contada, aos livros da minha vida. São livros singelos, obras cujos autores desconheço, mas que me ocuparam longas tardes de Verão. As aventuras de Texas Jack, na revista Mundo de Aventuras, ou do Major Alvega, na revista O Falcão, as histórias que eram contadas no Condor ou no Ciclone, e aqueles romances do Oeste das colecções 6 Balas, Cow Boy, Gatilho e Fúria de Bravos. Estas colecções, ao contrário das referidas antes, revistas de banda desenhada, eram compostas por livros com dimensões minúsculas (8,5 cm x 12,5 cm) e letra que, nos dias de hoje, me seria indecifrável, mesmo com óculos. Tinham 64 páginas e seis delas eram preenchidas com desenhos alusivos à narrativa. Foram estes livros que me fizeram gostar de literatura. Talvez me tenham influenciado mais do que aquilo que eu imagino. A histórias, tanto quanto me recordo, tinham dois pólos. Um primeiro, em que uma injustiça introduzia a desordem numa comunidade, e um segundo, no qual o herói, um herói singular, restabelece a ordem e faz triunfar a justiça. Estes são os livros da minha vida, pois são os alicerces sobre os quais fui construindo outras leituras.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Mesmerização

Um azul cintilante brilhava para os meus olhos. A pequena ondulação abria nas águas rasgões por onde emergia um sangue branco e espumoso, que logo desaparecia. Não se avistavam barcos. Algumas pessoas, empequenecidas pela distância, entravam no mar na orla das praias. Não se ouvia os gritos dos veraneantes nem o rosnar estrepitoso das gaivotas. Vista da esplanada, a baía apresentava-se como uma realidade fantasiosa, a produção de um génio benigno. Não sei quantos minutos me absorvi na contemplação do quadro, até que uma notificação do telemóvel me trouxe para a realidade. O café esfriara e reparei que à minha volta havia pessoas, todas elas, pensei, mesmerizadas pela mesma paisagem. Talvez já ninguém use mesmerizar para falar de fenómenos de fascinação, mas haverá ainda quem dê crédito ao médico alemão Franz Anton Mesmer, morto há mais de 200 anos, e à sua teoria do magnetismo animal. Esta ideia de magnetismo animal, agora transformada em energia universal e com certo cariz sexual, ou pan-sexual, foi retomada, já no século XX por um dos ídolos da juventude contestatária dos anos sessenta e setenta do século passado, Wilhelm Reich, através da teoria do orgone. Este seria uma substância destituída de massa, presente em todo o lado, uma espécie de energia vital. Tanto quanto me lembro, pois entre as coisas sem sentido que li, os livros de Reich foram uma delas, o discípulo desavindo de Freud criou um dispositivo para acumular o orgone. Serviria para curar tudo e mais alguma coisa. Seja como for, apesar da perda de tempo da leitura, o orgone nunca me mesmerizou. Talvez por não ter magnetismo animal, coisa que poderia existir, esta manhã, na baía que me fez deixar arrefecer o café.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Lentidão

Um dia sem história, nenhuma acção valorosa para acrescentar à gesta que vou narrando. Nem todos os dias há oportunidade para se ser um Cid Campeador, ou, em caso de desespero, um Quixote ribatejano, pois isto do Ribatejo não é menos povoado de gigantes e outros seres maléficos do que as terras manchegas. A verdade é que não me faltou, neste dia, viagem por esse Ribatejo lezirioso, embora não me tenha abeirado do Vale de Santarém e, por isso, não me tenha deparado com a Joaninha e os seus olhos verdes. Sei, a fonte é segura, que seriam esses olhos que Camões cantou uns séculos antes de eles terem visto a luz nesta terra. Como se sabe, Camões, para além do dom poético, tinha também o de perscrutador de futuros. Ele pôs-se a perscrutar, a perscrutar, e zás: Verdes são os campos / De cor de limão: / Assim são os olhos / Do meu coração. Eram os olhos da Joaninha que, vindos do futuro, ofuscaram com a sua verdura o coração do poeta, que, ao que consta, se ofuscava com facilidade. Estou a desviar-me do assunto, a minha gesta gloriosa. Repito, nenhuma acção para me ilustrar. Se tivesse chegado ao Vale de Santarém, talvez ainda fosse a tempo de tomar parte na peleja entre liberais e miguelistas, uma peleja que começou no século XIX e ainda não acabou. Talvez, num dia destes, ainda vá a tempo de participar nela. Em Portugal, tudo é, felizmente, muito lento, e eu aprecio cada vez mais a lentidão.

domingo, 23 de julho de 2023

Uma força do Passado

Domingo de Verão. Um acaso – mas haverá acasos? – conduziu-me a um belíssimo poema de Pier Paolo Pasolini. No Youtube, oiço o poema na voz do poeta, mas a experiência é desagradável. Prefiro ser eu a soletrá-lo a meia-voz, num italiano que não sei vocalizar. O poema começa assim Io sono una forza del Passato. / Solo nella tradizione è il mio amore (Eu sou uma força do Passado / Só na tradição está o meu amor). O poema acaba por ser uma elegia por essa tradição, o que se manifesta logo no segundo verso. Só se ama aquilo que não se é. Ama-se a tradição porque já se está fora dela, ama-se uma reminiscência. Os três últimos versos confirmam o diagnóstico: E io, feto adulto, mi aggiro / più moderno di ogni moderno / a cercare fratelli che non sono più (E eu, feto adulto, vagueio / mais moderno que qualquer moderno / em busca de irmãos que já não existem). Há um terrível julgamento sobre a condição de ser moderno. Ser um feto adulto, isto é, ser alguém que envelheceu sem ultrapassar a condição fetal, alguém que continua como uma potência que nunca se consuma num acto, que nunca chega a ser um homem. Eu sou uma potência do passado, mas que nunca chego a ser aquilo que essa potência traz em si. Talvez os domingos de Verão sejam também eles uma potência que é incapaz de se tornar um acto, pois também eu trago comigo esse amor por uma tradição composta por inúmeros domingos estivais que desapareceram para sempre.

sábado, 22 de julho de 2023

Um ateísmo contumaz

Por aqui, Deo gratias, está uma manhã sombria. O Sol escondeu-se atrás das nuvens e, enquanto oiço murmurações contra a gestão do clima por estes lados, rejubilo. Talvez isto seja vergonhoso, talvez me falte empatia pelos seres adoradores de areia e sol, talvez seja um egoísta refastelado numa cadeira. A situação, porém, não será particularmente dramática. Os raios solares romperão a cortina nebulosa, os adeptos das orlas marítimas terão oportunidade de ir molhar o pé e eu estarei resguardado desse culto pagão. Por aqui, há um velho ditado que enuncia, sem pudor, primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Há na máxima acentuado exagero, mas terá alguma verdade. Talvez não se trate de uma máxima, mas de uma caricatura oral, com tudo o que as caricaturas têm de hiperbólico. As minhas netas estão por cá, o meu neto não tardará. Também não faltam cães, mas com esses a minha relação é de respeitosa distância, embora um ou outro insista em ser meu amigo. Explico-lhe que não fomos feitos para a amizade, mas eles não se comovem com a minha racionalidade e continuam a tentar estabelecer contacto. Uma vez por outra, cedo, mas não faço parte dos cultores dos animais de estimação. Nada tenho contra eles, claro, mas que sejam outros a praticarem a religião. Neste caso, sou ateu. Aliás, depois de a religião tradicional ter sido vítima da rasura dos costumes, surgiu um número incalculável de deuses, todos a exigirem fé inabalável e ritos abstrusos. Tento manter, perante todos eles, um ateísmo contumaz. Agora, alguém chama pelo meu nome. Posso fingir que não oiço, mas o mais sensato será ir ver o que se passa.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Suportar-se

Há três dia junto ao mar e só hoje olhei bem para ele. Continuo de pé entrapado, embora já tenha substituído a cadeira de rodas pelas canadianas, com as quais fiz um pacto de não agressão. O mar estava ao fundo e este narrador permanecia longe da areia. Há muitos anos que a minha relação com o oceano se tornou meramente contemplativa. Nada de aventuras, quero dizer mergulhos e banhos, essas coisas que fazem os banhistas. Este ano está-me interdito um dos prazeres da época balnear, as longas caminhadas com as águas à vista. Troquei-as, como se pode depreender do que foi escrito ontem, por sestas em frente ao computador ou sentado numa cadeira com um livro entre mãos. Esta afirmação é quase falsa. Entre mãos não tenho um livro, se por isso se pensa um objecto de papel com capas e folhas. Tenho um dispositivo electrónico, onde existem muitos livros que não são livros, mas simulacros de livros que se deixam de ler como tal. Prefiro os simulacros aos livros. Posso negociar com eles o tamanho da letra e nunca são pesados. Depois, se me apetecer sublinhar alguma coisa ou fazer uma anotação, nada disso perturbará a imaculada pureza da obra, pois não tem a irreversibilidade das anotações no papel, mesmo que sejam feitas a lápis. Eu sei que muita gente reprovará o meu gosto, mas eu não tenho nenhum fetiche com o cheiro do papel ou com a sensação táctil que certas capas proporcionam. Eu sei que é defeito meu, mas cada um tem de suportar não apenas as suas virtudes, caso tenha alguma, como os seus vícios e defeitos.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Procrastinar

Depois de almoço, tendo-me sentado em frente ao computador para levar a cabo algumas tarefas, o corpo foi bem mais sensato e decretou que deveria cabecear e dormir, num equilíbrio instável. É uma decisão arriscada, a do corpo, pois pode ter como consequência ganhar uma desagradável dor no pescoço, o que não veio a acontecer. Agora, desperto e com energia renovada, tomo a feliz decisão de procrastinar e deixar para amanhã o que posso fazer hoje. Num dos meus livros de leitura da escola primária, talvez da terceira classe, havia um texto em que um camponês foi pedir um conselho a um advogado famoso. Este respondeu: não deixes para amanhã, o que podes fazer hoje. Durante décadas pensei que o conselho era uma criação do autor do texto ou a referência a alguma máxima da sabedoria popular. Mais tarde, bem mais tarde, vi que era atribuída a um tal Ralph Maxwell Lewis. É assim que a internet destrói o encantamento do mundo. Consta que o tal Lewis foi um importante Rosa-Cruz, nascido em 1904, embora não imagine o que seja um Rosa-Cruz. Uma coisa é certa, o senhor era um inimigo dos procrastinadores, pois não contente com o não deixes para amanhã, o que podes fazer hoje, ainda lhe acrescentou o não deixes para a tarde, o que podes fazer pela manhã. Talvez um Rosa-Cruz seja, por natureza e destino, workaholic, sempre a correr para cumprir tarefas, evitando adiamentos e ultrapassagens de prazos e essas coisas que um europeu do Sul reconhece como a essência da sua cultura. Portanto, insisto na procrastinação. Amanhã, logo se verá.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Metafísica

Acabei de descobrir mais um livro repetido. Esta repetição, porém, não é recente. Os dois irmãos gémeos jaziam lado a lado na prateleira de uma estante. É um livro que utilizei em tempos, mas se me perguntassem se eu o tinha, a resposta seria não. A relação dos seres humanos com a realidade é sempre de desconcerto, mas este vai crescendo conforme os anos se vão somando. Para não pensar nestas coisas, ontem e hoje, tenho passado algum tempo a ver o Tour de France. Não que o ciclismo me interesse. As filmagens paisagísticas são sempre excelentes e aquele esforço de subir e descer montanhas quase me faz lembrar Sísifo. Não é que os homens da bicicleta não a consigam fazer rolar até ao cume dos montes. Conseguem, mas logo têm de descer até ao sopé para muitas vezes voltar a subir até a um outro cume. Não é uma pena eterna, pois nada nesta terra é eterno, mas a mim parece-me um arremedo de eternidade. Esta coisa de falar de Sísifo parece ser um truque para dar um ar erudito ao escrito, uma tonalidade metafísica ao pedalar terra fora. Ora, quem prestar alguma atenção aos comentários desportivos, descobre que cada modalidade contém em si uma metafísica, a do ciclismo será a metafísica da roda pedaleira. Imagino.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Opiniões

Até certa altura da existência, uma pessoa espanta-se por haver opiniões diversas das suas. Depois, espanta-se pelo facto de existirem, sobre o mesmo assunto, diversas opiniões verosímeis. Por fim, espanta-se por existirem opiniões sobre seja o que for. Como é possível que um ser finito e limitado tenha a ousadia de ter opinião? Não faço ideia o que me terá dado para escrever o que escrevi acima. Ou talvez saiba. Não foram as abstrusas opiniões alheias que se encontram espalhadas por todo o lado, foi o cansaço com as minhas próprias opiniões. As pessoas gostam muito das suas opiniões. O melhor seria que tivessem vergonha delas e as guardassem dentro de si. Para começar, pode-se fazer uma dieta de opiniões. Por exemplo, evitar ter mais do que uma opinião por hora. O ideal regulador seria chegar à perfeição e não ter opinião sobre nada. As acácias que vejo daqui não têm qualquer opinião, mas são belas, dão sombra e oferecem o tronco a algum cão que necessite de alçar a perna.

domingo, 16 de julho de 2023

Via crucis

Um carro ronca no vazio da tarde. O condutor, por certo um homem, confunde-se com o vazio das ruas e pensa que está no circuito de La Sarthe, onde se correm as 24 Horas de Le Mans, e não numa pacata cidade de província, onde as pessoas, nos domingos do Estio, almoçam tarde e ficam por casa à espera que a soalheira passe. Há um problema qualquer com o QI dos portugueses, que se manifesta mais acentuadamente quando têm um carro nas mãos. Nunca deixa de me espantar a Electra, a revista cultural da Fundação EDP. São 250 páginas de grande qualidade. Desde o papel, aos artigos, passando pela reprodução de fotografias e de pintura. O mais impressionante é o preço, nove euros por número. A assinatura fica por vinte e sete euros/ano, quatro números. A do Verão de 2023 traz algumas reproduções de quadros do pintor suíço Felix Valloton, de que gosto bastante. Traz artigos sobre o wokismo e ócio e lazer, assim como um trabalho sobre o escritor italiano Carlo Emilio Gadda. Este é considerado um dos grandes clássicos do século XX, ao lado de figuras como Proust, Musil, Joyce, etc. Nunca li nada dele e não encontrei rasto de traduções em português de Portugal, embora existam algumas em português do Brasil. Um dos destaques do artigo de Luca Mazzocchi reza assim: É inegável que ler Gadda é tarefa difícil e espinhosa, mas as dificuldades que se apresentam ao leitor nunca são arbitrárias, nem criadas para fazer efeito. Pelo contrário, são coerentes com a sua visão filosófica da realidade enquanto sistema de sistemas, onde cada um deles existe em relação aos outros, e é modificado e deformado pelos outros, tal como a realidade continuamente se modifica e deforma. Neste momento, lamento não saber italiano para me confrontar com as obras de Gadda. Resta-me o recurso a traduções em línguas amigáveis para tentar essa tarefa difícil e espinhosa, isto é, dolorosa. Talvez a leitura do escritor italiano seja uma via crucis, um caminho de salvação.

sábado, 15 de julho de 2023

Pecados provinciais

Quando é que está bom do pé para irmos jantar naquela brasserie com nome de bairro nova-iorquino? Foi assim, à queima-roupa, que o padre Lodovico Settembrini começou a conversa desta manhã. Está de férias, pensei, na casa da Companhia, e trocou o sábado pelo domingo. Respondi-lhe que a gula ainda constava na lista dos pecados capitais. Ele desconversou, afirmou que estava na província e não em Lisboa. Os pecados cometidos fora da capital são pecados provinciais, o que o autoriza, sem sentir o peso da perdição eterna sobre os ombros, agradecer ao divino criador ter permitido que o homem prodigalize os pequenos prazeres que atenuam o calvário existencial. Ainda não sei quando vou para aí, está dependente da evolução das opiniões do cirurgião, as quais podem ser adversas. A casa, como sabe, não se presta a cavaleiros andantes montados numa cadeira de rodas. Seja como for, continuei, no próximo sábado, estaremos lá, toda a família, para comemorar o aniversário da…. Está convidado, obviamente. Quanto anos faz ela, perguntou. Quarenta, informei. E a ementa? Surpresa, retorqui. Sem essa informação, não me sei orientar nos vinhos que gostava de levar. Não se preocupe. Está tudo tratado. Sem essa preocupação, tenho mais tempo para me concentrar no presente para ela, sempre são quarenta anos, acrescentou. É verdade, disse-lhe, e mais tempo para se dedicar à oração e aos deveres do seu estado. Riu-se e pronunciou uma frase em italiano, cujo sentido não percebi, mas que a entoação me deu a certeza de ser mais um pecado provincial no rol do padre Lodo.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Relações causais

Os baloiços do parque infantil aqui em baixo voltaram a ranger. Conforme as crianças vão e vêm, o ferro das roldanas, ao rodar no ferro do eixo, emite um grito angustioso, a que se segue, passados instantes, um eco também ele lancinante. Não se pense, porém, que o ambiente é pungente. As crianças riem, gritam, chamam umas pelas outras, correm. Ouvem-se pontapés numa bola, vozes maternais a chamar pelos filhos, admoestações leves e benevolentes, encorajamentos assertivos, mas o ferro não se cansa de gritar a dor que o acomete. Quando a luz solar incidir no parque, tudo voltará ao silêncio. Alguém, uma voz adolescida, gritou golo e o ranger dos baloiços calou-se. Haverá uma relação causal entre os dois fenómenos? Quem sabe? O ruído voltou e como ninguém grita golo, promete continuar. Pouco depois das três da tarde, a cavalo do Rocinante, terei de ir fazer uma visita. Tenho de enfrentar esse desafio, logo eu que não li o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela, o que me teria habilitado para os mais desafiantes concursos hípicos e preparado para as justas equestres, função que cabe a qualquer cavaleiro que se preze. Irei assim timorato, sem preparo, a não ser uns treinos domésticos, enfrentar os desafios do vasto mundo. Os baloiços não param de ranger. Que raio, ninguém grita golo?

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Presunções e ensejos

Vasculho com atenção os dois livros que recebi. Datam de 1937 e formam um romance histórico de um autor português que já ninguém sabe quem é. O nome dele não vem ao caso. O que procuro são sinais de antigos proprietários da obra. Umas notas numa página, uma carta esquecida, um postal recebido e deixado entre as folhas, umas contas para pagar, sei lá o que mais poderia ser. Nada, nem uma simples dedicatória, uma assinatura com data de aquisição. Este deambular metafísico pelo estranho país de um passado que me é desconhecido não me deu assunto. Hélas! No romance, a certa altura, o autor informa: Francisco de Padilha saiu como um louco. O mal dos autores é presumir que os leitores sabem certas coisas. Como sairá um louco? Ponho-me a imaginar, mas não consigo chegar a um acordo comigo mesmo, tantas são as possibilidades de um louco sair do lugar onde se encontra. Seja como for, não posso deixar de sublinhar as razões que poderiam enlouquecer a personagem. Ser rejeitado por uma mulher seria, naqueles dias, uma desgraça. Parece-me, todavia, que é excessivo estabelecer um nexo causal entre uma rejeição e enlouquecer, ainda que seja apenas como metáfora. Paro as considerações por aqui, antes que entre por caminhos ínvios e escreva frases carregadas de aleivosias, o que poderia dar ensejo a alguém para instruir um processo de cancelamento deste narrador sem narrativa.

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Jogar xadrez

Apesar da natureza encantatória do título A insustentável leveza do ser, nunca fui um kunderiano. Li algumas obras, entre elas a supra referida, mas a que mais me agradou foi a Arte do romance, que não é um romance, mas uma reflexão sobre essa modalidade narrativa. Tanto quanto me lembro, entre a minha leitura e a escrita de Kundera nunca se estabeleceu um efectivo contacto. Talvez sensibilidades diferentes. Coisa muito diferente sucedeu com autores da Europa central, como Kafka, Musil, Broch ou Thomas Mann. Talvez um dia volte às obras do agora desaparecido escritor checo. Continuo numa espécie de confinamento, devido à indisponibilidade do pé direito. Entretenho-me a gincanar pela casa. Uma crise atingiu as minhas netas com o drama dos bilhetes para um concerto, mas são coisas que coloco à distância. Não faço ideia quem é a cantora que gera lágrimas e suspiros, mas sei que a adolescência é uma doença aguda, embora passe com relativa rapidez. Num jornal online, vejo que em certas zonas da Estremadura espanhola a temperatura do solo atingiu os sessenta graus Celsius. Tudo indica que a coisa não vai acabar bem. Isso recordou-me um poema de Ricardo Reis. A primeira estrofe reza assim: Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia / Tinha não sei qual guerra, / Quando a invasão ardia na Cidade / E as mulheres gritavam, / Dois jogadores de xadrez jogavam / O seu jogo contínuo. Tornámo-nos todos jogadores de xadrez e nem o incêndio do mundo nos retira da contemplação do tabuleiro, não vá a nossa rainha fugir com o rei adversário, e, por causa disso, tenhamos de ir de novo montar cerco a Tróia.

terça-feira, 11 de julho de 2023

Um jardim

Em 2018, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han publica um livro com o título Louvor da Terra – Uma Viagem ao Jardim. Na origem da obra estariam razões que se podem resumir no seguinte: Um dia senti uma profunda nostalgia e, além da nostalgia, uma necessidade premente de proximidade da terra. Por isso tomei a decisão de praticar diariamente jardinagem. Apesar da nostalgia e da necessidade que terão assaltado o filósofo, a ideia de cultivar o seu jardim não é uma novidade no mundo da filosofia. Também Voltaire, no Candide, se refere a essa necessidade. Contudo, ela não é impulsionada por uma nostalgia da terra, mas pela necessidade de protecção dos males provenientes do mundo da acção política. Uma outra diferença entre ambos os filósofos é que o jardim do francês é uma horta, o sítio onde se produzem vegetais, o do coreano contém plantas ornamentais. Não se pense, todavia, que não há uma linha que una as duas intencionalidades. Cultivar um jardim é trazer um princípio de ordem ao caos do mundo, essa ordem que, miticamente, existia no Éden e para a qual os homens não foram suficientemente sensíveis. Talvez cada ser humano traga, no fundo de si mesmo, a imagem de um jardim que deveria cultivar.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Capitais

Mais uma viagem à capital de distrito, que deve também ser capital de outra coisa qualquer. Uma epidemia atingiu com ferocidade as vereações municipais, pois não deverá haver cidade, vila, vilória ou aldeia deste país que não seja capital de alguma coisa, por certo apoiada na generosa imaginação de quem preside aos destinos de cada concelho. Eu diria que tanta imaginação é uma pena capital que cai sobre as terras, cobrindo-as de ridículo, mas isto sou eu a pensar, cavaleiro da triste figura, desfasado no tempo e no espaço, um ser anacrónico e atópico. As nossas duas principais cidades poderiam ser as capitais da alface e das tripas. Espero, não sem ânsia, que as respectivas edilidades as proclamem como capitais de tão importantes produtos, o que lhes daria uma marca distintiva e lhes abriria um nicho de mercado, atraindo o investimento estrangeiro, e ainda mais turistas desejosos de conhecer esses produtos existentes apenas em Portugal. Tendo nós uma capital do feijão-frade ou da couve-penca, por que razão não devemos ter uma da alface e outra das tripas? São estes problemas que me ocupam nas tardes quentes de Julho. Há em tudo isto uma metafísica, pois tudo o que diz respeito à cabeça, o significado de capitāle em latim, tem uma natureza não apenas física, mas também metafísica, pois seria, segundo Descartes, num certo sítio da cabeça, a glândula pineal, que corpo e alma se ligariam. Basta.

domingo, 9 de julho de 2023

Ser pessoa

Um domingo de clausura, como se ainda estivéssemos no tempo dos confinamentos. Deixei as horas deslizar, coisas em que elas são de uma competência inexcedível. Troquei telefonemos com amigos e familiares, dormitei, enfim um dia sem história. Peguei num ou noutro livro, abri-os ao acaso. Num desses encontros acidentais li: Qualquer pessoa musical consegue distinguir melodias de meras sequências de sons.  Não foi o conteúdo da proposição, da autoria de Roger Scruton, que me fascinou, mas o sujeito dessa proposição, a pessoa musical. Haverá pessoas não musicais? Imagino que dizer pessoa musical será redundante. Ser musical é uma condição necessária para ser pessoa, mas, reconheça-se, não será suficiente, pois consta que animais que não são pessoas são musicais.  De Scruton saltei para Montaigne. No ensaio sobre a amizade, a certa altura, diz não sem graça: Ao convívio à mesa, associo gracejo, não seriedade; na cama escolho a beleza antes da bondade; na conversação, a competência mesmo sem a virtude. Há na frase uma prosápia insuportável, a manifestação pública de uma imagem hiperbólica de si como sujeito refinado, de bom gosto e espirituoso. Em qualquer circunstância escolho sempre o meu prazer, isto é, escolho-me. Este parece-me, todavia, um caminho para alguém perder a sua musicalidade e, sendo esta condição necessária de ser pessoa, para se perder enquanto pessoa.

sábado, 8 de julho de 2023

Um Rocinante

Ao fim de umas miseráveis trinta e seis horas dependente de canadianas, decidi ir em busca de um Rocinante que me levasse aonde eu quisesse ir, ou quase. Uma cadeira de rodas, onde me transporto sem temer cair. Descobri que não tinha vocação de funâmbulo. Bem tentei equilibrar-me, bem tentei aproveitar as lições online, mas o resultado foram dores no pescoço e um dedo do pé esquerdo preto, motivado por um inesperado encontro com uma das canadianas. Quase ia caindo, mas lá me encostei a uma parede. Sempre tive vertigens e nunca achei que seria boa ideia pôr-me a fazer equilíbrios na corda, fosse ela bamba ou não. O culpado deste desvario foi o cirurgião, quando me disse olhe, tem de usar canadianas por uns tempos. Confesso que olhei, mas não vi nada, não percebi o filme em que estava metido. Poderia ter dito olhe, use uma cadeira de rodas para se transportar e chame-lhe Rocinante. O mal do médico, um rapaz novo e talvez um pouco azougado, é desconhecer quem foi o Rocinante e não perceber que também eu sou um cavaleiro da triste figura. Agora, faço gincanas pela casa. Isto não melhora a minha figura, mas para isso é já demasiado tarde.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Instruções

Como D. Quixote, tenho à minha frente um mar de desafios que farão parte da gesta que será cantada até ao fim dos tempos. Não são coisas ilusórias como moinhos tomados por gigantes ou feiticeiros e encantadores que geram os males do mundo, mas canadianas reais em que me apoiarei, durante as próximas duas semanas, sem que o pé direito, pobre dele, tenha direito (uma contradição nos termos) a suportar o corpo de que faz parte. Desde ontem à tarde que tento estabelecer com os dispositivos de suporte uma aliança e um tratado de paz e cooperação. Não me têm parecido particularmente cooperantes, mas com o passar do tempo, como se deseja nos casamentos por conveniência, as canadianas e este candidato a cavaleiro andante talvez cheguem a amar-se e estabeleçam uma relação harmoniosa, apesar de efémera. Como se fosse ler uma arte de amar, vou ver uns vídeos onde se explica como estabelecer uma boa relação matrimonial com as canadianas. Neste mundo, que é o melhor de todos os possíveis, há vídeos com instruções para tudo, até para as mais inusitadas núpcias.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Remeter-se ao silêncio

O Verão tem sobre mim um efeito nefasto. Já constatei isto milhares de vezes, e já o anunciei aos ventos quase outras tantas. Cheguei à idade em que uma pessoa está condenada a repetir-se. Este pendor para a iteração nada tem de misterioso. É uma forma de luta contra o esquecimento. É verdade que essa propensão tem um poder especial de irritar os outros, os que não podem fugir dos nossos discursos, mas a memória lá se vai aguentando à tona de água. Há também uma outra possibilidade. Remeter-se ao silêncio. Esse silêncio cria um espaço onde a pessoa rememora continuamente aquilo que lhe dá prazer. Se, um acaso, traz uma memória desagradável, basta um encolher de ombros ou um franzir de sobrancelhas, e ela vai-se embora, para que aquilo que é radioso ocupe o palco. E é isso que vou fazer a seguir, remeter-me ao silêncio e contemplar as paisagens luminosas que a memória me traz.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Errância

A certa altura dos Parerga und Parlipómena, Schopenhauer diz: O ponto em que se dissociam em primeiro lugar as virtudes morais e os vícios do ser humano é essa oposição de ânimo fundamental em relação aos outros, que assume o carácter da inveja ou o da compaixão. Como salienta o filósofo alemão, estes atributos opostos nascem da comparação que cada um faz do seu estado com o dos outros. A inveja, fonte da actuação viciosa, levanta um muro entre o eu e o tu, a compaixão torna esse muro menos espesso, mais transparente, podendo mesmo derrubá-lo. Contudo, parece-me, há invejas virtuosas e compaixões que traem a marca do vício. Quando alguém admira o desempenho de alguém excelente, nunca deixa de ressoar uma ponta de inveja. É virtuosa, contudo, porque não deseja eliminar o outro, mas superar-se a si mesmo. Por outro lado, certas formas de compaixão não são outra coisa senão afirmações de uma superioridade, e ser compassivo é uma forma viciosa de prender o outro na sua suposta inferioridade. Imagino que, quando nos prendemos à oposição entre virtude e vício, já nos perdemos no caminho. Perdemo-nos quando cedemos à tentação de nos compararmos com os outros, de aferirmos a nossa singularidade pela de terceiros. Nesse momento, entramos na errância de onde raramente, muito raramente, se sai. Nem todos têm um destino como o do filho pródigo, perdendo-se uns na inveja, outros na compaixão.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Dragões

Julho manifesta a exuberância com que foi dotado. Ri-se com gargalhadas quentes, da sua boca saem baforadas de fumo. Julho é um dragão disfarçado de mês para poder figurar no calendário. Os dragões, como é do conhecimento geral, são seres esquivos, por isso disfarçam-se e metamorfoseiam-se. Ao virar da esquina podemos deparar-nos com um transformado em automóvel ou camião, de preferência. Quem não se deixou enganar foi S. Jorge. Trespassou com a lança um dragão que tinha ultrapassado as marcas. A princípio, como é hábito de todos os dragões, pedia apenas que lhe dessem duas ovelhas por dia para deixar os homens em paz. A certa altura, todavia, em vez de ovelhas quis a filha única do rei da Líbia. Foi a sua perdição, o que está de acordo com a tradição. S. Jorge, imagino que na altura ainda não estivesse canonizado e, por isso, sem direito a título, surgiu do nada, que é o sítio de onde surgem todos os verdadeiros heróis, e zás. Matou a dragão. Não sei se o derrotado teve direito a funeral ou ficou abandonado aos cães selvagens e às aves de rapina. Também não tenho informação sobre se S. Jorge, que ainda não o seria, casou com a filha do rei. Se não casou, é uma pena. Era uma história que além de acabar em bem ainda envolvia a marcha nupcial, apesar de nem Mendelssohn nem Wagner terem escrito as suas, mas na terra onde existem dragões tudo é possível, mesmo a existência de coisas antes de terem sido criadas. Está calor.

domingo, 2 de julho de 2023

Uma demanda falhada

Uma saída de manhã em busca de um produto que, afiançaram-me, estaria num certo sítio. Chegado ao lugar designado, dou conta de que o artigo será tão elusivo quanto o Santo Graal. Como acontece com muitos daqueles que demandam o Graal, acabei por descobrir um sucedâneo e, conformado, troquei o objecto da aventura por aquele que encontrei à mão de semear. Afinal, não sou nenhum cavaleiro da Távola Redonda. Aliás, aquilo que procurava não seria tanto o graal, mas o que se poderia pôr dentro dele. Apesar de tudo foi uma viagem instrutiva. Aprendi que não se deve confiar em certas informações, por mais fiáveis que pareçam ser. A realidade é de tal modo mutante que aquilo que ontem era verdade, hoje será mentira. Depois, a experiência da atmosfera seca que envolve estes sítios recordou ao corpo a realidade, corpo que tinha andado protegido dos calores por terras mais amenas. Tudo se paga. Hoje é domingo, mas não consigo imaginar o que isso significa, tão lassos estão os meus neurónios. Escrevi, sem incorrecção, lassos, mas se escrevesse laços também não estaria incorrecto, pois a lassidão neuronal que me acomete arredonda-me os neurónios, que se curvam sobre si, formando laços e remetendo-se a uma implacável greve ao contacto com os parceiros. Uma tragédia. Pelo WhatsApp recebo um vídeo. O meu neto deu as primeiras pedaladas na bicicleta sem cair. Valha-me isso.

sábado, 1 de julho de 2023

Nêspera

A França, como pertence à sua natureza, está efervescente. Nessa efervescência reflecte-se a tragédia europeia e a morte de um sonho, de uma utopia que não se constituiu a partir da destruição das liberdades e de uma vida de perseguições. Um célebre sociólogo francês, Raymond Aron, publicou, em 1981, um livro de entrevistas com o título O Espectador Comprometido. A expressão assenta num oximoro. A imparcialidade parcial. Na ideia de espectador manifesta-se aquele que observa imparcialmente o que se passa, o filósofo, no dizer de Pitágoras. No compromisso declara-se a parcialidade de tomar partido, de enviesar o olhar para afirmar o bem. Talvez a posição do filósofo seja insuportável. Olhar sem tomar partido parece o desígnio de um deus e não de um homem. Por isso, fantasio, Aron foi um sociólogo. A pergunta perturbante, perante o panorama de uma Europa em convulsão, é se se deve ser apenas um espectador ou se se acrescenta ao acto de olhar a ideia de compromisso? Quem pensa em comprometer-se fica refém da parcialidade do compromisso. Quem se decide por permanecer como espectador poderá ter a sorte da nêspera do poema de Mário-Henrique Leiria: Uma nêspera / estava na cama / deitada / muito calada / a ver / o que acontecia // chegou a Velha / e disse / olha uma nêspera / e zás comeu-a // é o que acontece / às nêsperas / que ficam deitadas / caladas / a esperar / o que acontece. Como narrador, tenho o destino de uma nêspera, ser comido por uma Velha. Talvez, medito, não seja pior destino do que o compromisso, o qual está longe de assegurar que no caminho não existam Velhas que gostem de nêsperas.