terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Um longo adeus

Fevereiro despede-se com frio e sol, numa cintilação de cristal, de gelo incendiado por uma luz quase primaveril. Nesta hora, em que o resplendor do sol começa a declinar, podia citar o começo de uma pequena narrativa modernista: Conheci Madame Film em Roma, no hall do Excelsior, à hora do chá, essa hora que eu cito frequentemente, porque é a minha hora, a hora em que eu tomo sol aos golos, a hora em que o sol morre nos meus labios… Eu não tomo chicaras de chá, tomo chicaras de sol… Mantive a grafia original, mas o texto não deixa de reverberar. E o autor? Bem, trata-se de António Ferro, o editor de Orpheu, que imolou o talento literário na pira do jornalismo e da política. O mesmo terá acontecido a Platão que abandonou a poesia trágica pela Filosofia, mas aí apenas trocou um género literário por outro, que ainda não existia e que ele acabou por inventar. No lugar da tragédia, temos o diálogo lógico, uma ficcionalização do pensamento. Queria eu despedir-me de Fevereiro e logo umas visitas inoportunas se intrometeram na corrente de consciência. A vida é cheia de intromissões e é preciso uma infinita constância para perseverar no rumo que intromissões e intrometidos tentam destruir. Enquanto a noite se apresta para tomar de assalto a cidadela do dia e uns adolescentes gritam a sua adolescência a plenos pulmões, antes de entrarem na caverna do instituto de línguas, oiço Dark/Light 1, uma pequena peça de Meredith Monk. Deixo-me envolver na voz da cantora e olho o horizonte à espera da hora do crepúsculo, para dizer um longo adeus a Fevereiro.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Cibernética e vida no campo

Quem sofre do vício de comprar livros sabe, um saber de experiência feito, que parte significativa do que compra não será lido. Está aí, ao alcance da mão, e caso seja necessário sabe-se onde encontrar. Descobri há pouco um livro nessas condições. Tinha-o esquecido e no acaso improvável de alguém me perguntar se o conhecia, juraria que jamais ouvira falar dele. Trata-se de La Conscience des Machines – Une métaphysique de la cybernétique, suivi de «Cognition et Volition», do filósofo alemão Gothard Günther (1900-1984). Os motivos que me levaram à compra dissolveram-se, talvez tenha julgado que ali seria dito alguma coisa de importante sobre a essência do nosso tempo, se é que os tempos têm essência, se não são apenas mera existência. Resgatado do esquecimento a que tinha sido votado. Ao lado dele, estavam, nas mesmas condições, dois outros ensaios, The Posthuman, de Rosi Braidotti, e Homo Labyrinthus – Humanisme, Antihumanisme, Posthumanisme, de Frédéric Neyrat. Tudo indica que, a certa altura, alguma coisa me preocupou, mas que o peso da realidade dissolveu o tempo que queria dedicar à preocupação, tendo os livros adormecido até terem sido redescobertos. Agora, sou obrigado a ponderar se a preocupação de então continua a poder ser preocupante. Demorei-me, depois da redescoberta, a olhar as paisagens de João Hogan reproduzidas na Electra do Outono passado. Ali, não se encontra nada de anti-humano ou de pós-humano, pois o humano foi varrido delas. São lugares inóspitos, muito diferentes das paisagens posteriores de João Queirós, onde a ausência do humano não gera a mesma sensação de inabitabilidade, mas traz um sentimento de plenitude da natureza. Num dos textos da Electra, da autoria de Jeff Malpas, é dito o seguinte: Regressar ao campo é reencontrar o sentimento de estarmos no sítio de onde viemos, um sentimento que não se esgota nem é plenamente evidente da cidade por si só. Isto recordou-me uma série da minha infância – ou será da pós-infância? ­– Viver no Campo. Talvez Malpas tenha também visto a mesma série e, na desavença entre marido e mulher acerca da bondade de viver no campo, tenha tomado o partido do marido. Nunca é demais assinalar que nunca se sabe os motivos que nos levam a pensar aquilo que pensamos.

domingo, 26 de fevereiro de 2023

A ordem puritana

Tendo descoberto dois programas de Inteligência Artificial que me permitiam o uso gratuito, entretive-me, durante parte da manhã, a escrever pequenos textos que eram transformados em imagens. Um dos programas, ainda na fase de lançamento, tem já uma vincada personalidade censória. Vincada, pois o texto que lá coloquei não tinha nada de ofensivo seja para quem for, tão pouco palavras que o uso rejeitou como impróprias na conversação social. Uma mensagem informou-me que o texto continha palavras que poderiam gerar imagens inadequadas. Não descobri que imagens seriam essas, mas o pior é que nem sequer discerni quais as palavras que incendiaram, na mente artificial, pensamentos de tal modo escabrosos que ela optou pela censura. Sem se dar por isso, estamos a entrar numa nova era puritana. Apesar dos neopuritanos se encontrarem divididos em grupos inimigos, há uma coisa em que estão todos de acordo, a necessidade e o direito de censurar. Devido à inimizade reinante, podemos prever, sem recurso à profecia ou mesmo à Inteligência Artificial, que o futuro nos trará guerras de censores. Isto não deixa de ser interessante, pois o discurso é tratado como um animal selvagem que há que domesticar. Neste caso, o recuso à Inteligência Artificial parece promissor, pois esta consegue ler o censurável naquilo onde qualquer leitor exímio – embora, humano – jamais o conseguiria encontrar, por perito que fosse na arte hermenêutica. A poesia é o principal inimigo destas hordas bárbaras de puritanos, pois é o lugar onde a insubordinação das palavras gera o selvagem no discurso. Aquilo que era visto como a redenção da linguagem é, agora, tido como uma ameaça à ordem puritana que esbraceja por todo o lado.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Da memória e da nuvem

Acabei de falar com uma sobrinha. Faz hoje anos. Valeu-me a aplicação do telemóvel, que tem a amabilidade de me avisar. Aliás, começa a fazê-lo uma semana antes. Não fora isso, ter-me-ia passado a efeméride. Antigamente, as pessoas usavam agendas, onde colocavam, nos respectivos dias, os acontecimentos que deveriam recordar. Nunca tive agendas. Melhor, tive várias, mas nunca as usei. Por norma, ficavam em branco e esquecidas. As aplicações do telemóvel são coisas mais eficazes para a degradação da memória. Há uns tempos mudei a palavra-passe de uma conta de email que uso na vida real. Como seria de esperar, quando queria aceder à conta, de modo automático, colocava a velha palavra-passe, era-me negado o acesso, mas plataforma informava-me que tinha alterado a senha há x dias. Isso começou a despertar em mim uma curiosidade. Qual seria o dia em que já não me enganaria? Quanto tempo precisava para consolidar na espontaneidade da escrita a nova chave de acesso? Pensei que trinta dias era um prazo razoável para a velha memória ser preterida pela nova. Há pouco, ao tentar aceder à conta, recebo a mensagem de que aquela senha foi alterada há seis meses. Esta questão não é de pouca importância, pois está ligada à natureza dos hábitos. Aristóteles afirmava que estes eram uma segunda natureza, o que significaria mais ou menos que aquilo que resultou de uma escolha ou decisão se tornou numa necessidade. Quanto tempo demorará a trocar uma necessidade por outra? Tem estado um sábado soturno, pouco luminoso, com chuva fria. Não é dia propício para escrever seja o que for. Porém, sempre se pode copiar qualquer coisa de alguém que tenha estado mais inspirado. Numa obra de 1981, com o estranho nome de Introdução à Filosofia, o poeta Fernando Echevarría começa o primeiro soneto do Compêndio de Antropologia com a seguinte quadra: Na memória de Deus se continua / a centelha que fomos de repente. / A nossa sombra segue sendo sua / na suspensão de si que nos consente. Talvez, e isto é uma mera hipótese, possamos recuperar o que perdemos da nossa memória nessa memória que retém a centelha que fomos de repente. O que seria uma forma, usando a linguagem informática, de recorrer à nuvem, embora Deus não seja uma nuvem, mas O que se esconde por detrás da nuvem. O que nos leva a suspeitar que as nuvens informáticas esconderão qualquer outra coisa, talvez um deus virtual.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Feridas

Os dias crescem e as noites minguam. Depois, tudo se inverterá, os dias reduzir-se-ão e as noites haverão de se dilatar. E depois? Bem, depois sempre descobrimos que o equilíbrio na natureza é feito de desequilíbrios. Podemos pensar que o justo seria dias e noites serem sempre iguais. A natureza tem outro critério. A igualdade entre dias e noites nasce do somatório das desigualdades que existem entre ambas. No lugar da constância temos uma lei da compensação. Isto funciona nas realidades cíclicas, e durante muito tempo também os homens pensaram que a sua vida se inscrevia nessas realidades. Os ciclos festivos, com os seus rituais, ordenavam a vida desse modo, o que dava a ilusão de eternidade. O senhor Sigmund Freud, num momento inspirado, descreve a história do homem moderno a partir de três feridas narcísicas. A primeira, vem com Copérnico e a descoberta de que afinal não vivemos no centro do universo. A segunda, trazida por Darwin, coloca a nossa espécie como uma entre muitas outras. O que ela é não resulta de qualquer eleição, mas da mera evolução adaptativa ao meio. A terceira ferida é descoberta do próprio Freud. Ao sermos sobredeterminados pelo inconsciente nem sequer somos senhores de nós próprios. Por interessantes e dramáticas que sejam esta feridas, a única ferida real, a chaga verdadeiramente viva que nos atormenta, é a descoberta de que não somos seres cíclicos, mas entidades lineares que percorrem uma linha recta, por sinuosa que pareça, entre o nascimento e a morte. O que nos cabe não é a eternidade, mas o tempo, e um tempo sempre demasiado curto. A tomada de consciência plena do que é ter uma natureza histórica, um processo tardio na nossa espécie, é uma ferida de tal dimensão que ao pé dela as feridas provocadas pelas descobertas de Copérnico, Darwin e de Freud parecem fantasias de crianças. Para a ferida de se ser temporal não há constância no devir nem lei da compensação que a cure. E é assim, com estas meditações sem nexo, que entro naquela parte do ciclo semanal que tem por centro os benévolos dias da sagrada inutilidade.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Apocrifia e falácias

Uma visita à pasta onde guardo estes textos recordou-me que tinha separado o conjunto de textos escritos durante os tempos mais iniciais da pandemia, entre 1 de Março e 20 de Junho de 2020, e tinha-lhe dado um título curioso: E aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor – diário da pandemia. Ora, este título, excluindo a indicação diário da pandemia, retirei-o de uma passagem de uma obra apócrifa de Bernardo de Claraval, também conhecido por S. Bernardo. A obra em causa ostenta o título Traité de la Maison Intérieure ou de l’édification de la Conscience. Segundo li, apesar de surgir como sendo do monge cisterciense, nada no estilo e na organização, um pouco caótica, indica que seja dele. Por que razão li, em parte, a obra, não me recordo e dela só me ficou a frase que utilizei como título do conjunto de textos dos tempos de pandemia. Se à obra não foi reconhecida autenticidade, será que cada uma das suas frases será também inautêntica? Afirmá-lo seria cair na típica falácia da divisão, que consiste em atribuir às partes uma propriedade do todo. Portanto, poderemos considerar a obra apócrifa, mas não a frase que dela extraí. Isto daria um resultado interessante, a obra não seria da autoria do monge de Cister, mas as frases que a compõem poderiam ser, o que provaria que uma obra escrita é mais do que as frases com que ela foi tecida. Ou então, nem sempre a falácia da divisão é uma falácia. Esta quinta-feira não me parece propícia para escrever. Termino por aqui.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Cumplicidades e suplícios

De um momento para o outro, sem se saber como, uma pessoa torna-se cúmplice. Ora, como se sabe, tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica de fora. O pior é que nem sequer fiquei de fora à espera, mas fui mesmo à vinha. No post de ontem, sem ter dado por isso, escrevi faturas, em vez de facturas. Já coloquei a pobre consoante muda c no sítio de onde a banira. A perseguição às consoantes mudas infringe todos os princípios de não discriminação que existem. Por que razão haveremos de aceitar esse ataque às consoantes só pelo facto de terem emudecido. Ora, elas não nasceram mudas, foram perdendo a voz e é possível que exista quem ainda pronuncie, talvez de modo muito leve, o c que está em qualquer factura. Aliás, se pronunciamos o c em facto, por que razão não o haveremos de fazer em factura? Não se pense todavia, que este narrador é um militante da causa anti-AO 90. Não é militante de coisa nenhuma, nem sequer um rebelde sem causa. O dia começou sorumbático, mas agora recuperou o ânimo e apresenta uma face risonha e ensolarada. Também a cidade recuperou do desânimo carnavalesco que a atingiu ontem. Hoje comporta-se como se não fosse Quarta-Feira de Cinzas, com as gentes entregues às suas ocupações quotidianas, mesmo aquelas que estão desocupadas. A desocupação é uma actividade intensa, pois não goza da possibilidade de distracção que têm as pessoas ocupadas, pois estas sempre se distraem com as suas ocupações. Ora, estar sempre atento é uma tortura digna da mitologia grega, como aquelas que foram impostas a Sísifo, a Tântalo e a Prometeu. Fora este narrador grego e tivesse vivido há mais de três mil anos e criaria um mito em que um herói sofreria o suplício de estar constantemente atento, apesar de continuamente desocupado. Nasci tarde e fora do lugar, é o que dá estas desatenções da realidade.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Descrições

Ainda não dei por hoje ser dia de Carnaval. Espreitei para a avenida, para as ruas circundantes, mas nada de foliões, nenhum mascarado, ninguém a desfilar ao ritmo do samba. As pessoas têm uma cara de quarta-feira de cinzas e parecem ter antecipado a Quaresma, mesmo que já não saibam aquilo que ela significa. Certamente, dispensarão jejuns e abstinências, mas não deixarão de ter um ar compungido. Não por inclinação religiosa, mas para estarem de acordo com estes dias cinzentos e melancólicos. Consta que as temperaturas vão descer e, uma vez por outra, haverá chuva, caso as nuvens estejam para aí viradas. A escola aqui ao lado está vazia. As árvores do pequeno bosque que a ornamenta são agora senhoras do espaço, que parece assim mais belo. As acácias da praceta estão dramaticamente despidas, ainda faltará tempo para que se comecem a cobrir de uma penugem verde. Não, não as árvores não têm penugem, coisa de animais, mas folhagem. Seja, as acácias apenas ostentam os ramos nus e nenhum indício de que se revestirão em breve de uma belo vestido verde. Agora, um cão começou a ladrar, logo se calou, o silêncio caiu sobre as ruas, mas já uma mãe e um filho elevam as vozes para se fazerem ouvir, enquanto ele desliza no escorrega, e ela pensa noutra coisa, no rumor do coração, no pulsar do sangue, nos dias de claridade em que o Sul a espera, oferecendo-lhe uma água meridional para refrescar o corpo tomado pela cintilação do fogo. Podia ir desfilar pelas ruas, mas vou registar as facturas na plataforma das finanças, melhor, numa aplicação do telemóvel, antes que o prazo acabe, pois os prazos tendem a acabar sempre muito rapidamente.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Sonambulismo

Falemos então de sonambulismo. Fixemos para memória futura a definição registada num dicionário. Diz assim: automatismo inconsciente que se manifesta no sono por actos mais ou menos coordenados tais como levantar-se, andar, executar uma tarefa simples, etc., de que não fica lembrança alguma ao despertar. Entre 1931 e 1932, Hermann Broch publicou na Áustria uma trilogia romanesca denominada Die Schlafwandler, isto é, Os Sonâmbulos, constituída por Pasenow ou o Romantismo, 1888, Esch ou a Anarquia, 1903 e, por fim, Huguenau ou o Realismo, 1918. O que está em jogo é uma tematização romanesca do processo de degradação dos valores europeus. Isto já era por si mesmo um assunto, apesar de literário, bastante sério. Os europeus caminham sonâmbulos pela paisagem degradada dos seus valores. Para acrescentar seriedade à seriedade, um historiador australiano, Christopher Clark, publicou, em 2012, um livro com o título Os Sonâmbulos. O pior é que não se ficou por aqui e decidiu acrescentar como subtítulo Como a Europa entrou em Guerra em 1914. Em vez de estar a pensar nos desfiles de Carnaval, também a minha condição não me o permite, nesta segunda-feira, deu-me para isto, mas, por vezes, sou assaltado pelo temor de que nós europeus estejamos a viver há décadas mergulhados no mais profundo sonambulismo. Andamos, executamos as tarefas simples da existência, mas quando acordarmos – porventura de modo violento, pois há despertadores cuja sonoridade é odiosa – não haveremos de ter consciência de como nos metemos na boca do lobo. Fiquei espantado com estas considerações, incluindo a definição dicionarizada, do padre Lodo, quando falámos hoje, coisa que não fazíamos há uns tempos. O que se passa, perguntei-lhe. Tenho estado a ler o livro do australiano e passados bem mais de 100 anos dos acontecimentos que levaram à tragédia de catorze, parece termos voltado à casa de partida, como se a vida não passasse de um jogo de Monopólio. Talvez não passe, sugeri. É aí que está o erro, respondeu. Pensar que a vida é só uma partida de Monopólio é aquilo que fazemos e está errado, pois este não passa de uma forma de sonambulismo. Será que sofre de sonambulismo, perguntei. Não, respondeu, pelo menos não tenho qualquer indício que aponte para isso, mas nunca sabemos o que nos pode acontecer quando estamos a dormir.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

No observatório

Na avenida, o movimento é reduzido, alguns carros procuram o seu destino, um ou outro passeante espera receber a bênção do sol, embrenhado na liturgia do ar livre. Depois, por instantes, só a solidão ocupa a rua, nem gatos ou cães vadios, se os há, por ali se requebram. Então, uma outra revoada de carros. Voltou-me a inclinação para a hipérbole. Revoada não será, apenas um pequeno bando que nem a meia-dúzia chegará desliza sobre o asfalto para se perder além da rotunda, pois aqui não há avenida que não comece ou acabe numa rotunda, fora aquelas que lhes ficam no meio. Os ramos despidos das tílias deixam ver o sinal, ondas de verde em forma de cruz que vão e vêm, de que a farmácia está aberta, caso seja necessário, encontra-se ali auxílio para a dor, a doença, a indisposição do momento, talvez mesmo para a loucura ou a solidão. Uma pessoa olha de cima, contempla o espectáculo e descobre-se como um ser inclinado ao preconceito. Uma mulher passa, vai entretida na sua caminhada, e logo se desenha uma antipatia por aquela pessoa que não se conhece, de que nem o rosto se consegue perceber os traços. O modo como anda, como as pernas se erguem e os pés pisam o chão, geram um desagrado inexplicável. Depois, um casal arrasta-se no passeio. A esses conheço-os. Nunca tiram do rosto a máscara de tédio que sentem um pelo outro. É um sentimento justo, pois é recíproco. Ainda são relativamente novos, podiam divorciar-se e tornar a vida menos fastidiosa, mas talvez o contrato seja mesmo esse, suportar o peso da sombra e viver entediados até que a morte os separe, e o sobrevivente descubra que o amor também pode tomar a figura do tédio. De um dos prédios, sai um homem segurando uma trela e no fim desta um cão minúsculo. Entre o homem e o cão há uma desproporção inaceitável, uma desatenção ao equilíbrio estético que deverá haver entre pessoas e animais. É o que acontece quando se pensa que tudo é uma questão de gosto pessoal, não percebendo que a harmonia das coisas resulta de medidas objectivas e universais. Há que fazer um esforço para as conhecer. A província caminha por dentro do domingo com a mala a tiracolo. Isto lembrou-me um poema do O’Neil que acaba assim: O homem que pedala, que ped’alma / com o passado a tiracolo / ao ar vivaz abre as narinas / tem o por vir na pedaleira. Na província, porém, não há provir, só pedaleiras, mas nas grandes capitais nem a pedaleira alimenta uma alma.

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Da perfeição das coisas

Nas mais pequenas coisas descobre-se o inesperado, por exemplo, a perfeição do mundo. Tendo necessidade de limpar as lentes dos óculos, fui conduzido pela própria realidade a uma reflexão sobre a excelência do mundo em que vivemos, o qual, como se sabe, é o melhor dos mundos possíveis. Um melhor do que este seria impossível. Abro o estojo onde guardo os óculos e constato, mais uma vez, a existência de dois pequenos panos, um oferecido pela marca das lentes e outro, pela das armações. Como sempre, penso estar perante um pano para a lente esquerda e outro para a lente direita. E certifico-me assim de que tudo está conforme a ordem do mundo. Duas lentes, dois panos de limpeza. A perfeição deste mundo, porém, é maior do que aquela que estamos dispostos a conceder. Imagine-se o caso de perder um dos panos, coisa que pode acontecer-me devido ao facto da perfeição do mundo não ser absoluta e dentro da imperfeição que há nele, encontro-me eu. O que fazer se se der essa perda? Ficará uma das lentes por limpar, enquanto a outra regurgita de transparência e cintilação? Isto aconteceria se este mundo fosse pior do que realmente é. Precavido, o oculista – agora designado por Óptica L… – ofereceu-me um terceiro pano, dentro de uma bela embalagem de cartão branco, onde, como se fora um brasão medieval, se inscreve o logotipo e sob o qual se vê a informação desde 1963. Não será uma aristocracia óptica muito antiga. Não se poderia comparar com uma cuja ascendência remontasse a Espinosa, caso este tivesse tido filhos, e estes também os tivessem tido, e assim sucessivamente, todos eles a polir lentes, depois a criar telescópios, óculos, binóculos, ao mesmo tempo que escreviam tratados sobre a reforma do entendimento, ensaios teológico-políticos ou mesmo, por desfastio, livros de ética. Contudo, a aristocracia óptica de Espinosa morreu com ele, sem deixar descendência, perdendo-se um número indeterminado de tratados filosóficos e de lentes polidas. Voltando à questão essencial, a perfeição do mundo manifesta-se também no facto de os próprios comerciantes de óculos, isto é, de armações e lentes, anteciparem a imperfeição dos clientes e contribuírem para que, em caso de perda, não fique uma lente baça, fosca, esmaecida, nebulosa, ocultando a realidade a um dos olhos, enquanto o outro vê tudo, até aquilo que não devia ver. Estamos no Carnaval. É sábado gordo e no telemóvel vejo uma fotografia do meu neto feito transformer. O super-herói chega mais logo. Vou limpar os óculos e esforçar-me por não perder os panos.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Mundos

A médica de medicina familiar com que me consulto ultrapassou, há um bom par de anos, os setenta, mas continua em forma e com um espírito agudo, a que junta uma grande bonomia. Não gosta muito de usar o computador e as requisições – ou serão prescrições? – de exames são manuscritas. Usa uma caneta Montblanc de tinta preta para escrever nas folhas brancas com o símbolo da clínica a azul no canto superior direito. Então, o papel enche-se de uma ondulação de caracteres, enquanto o aparo desliza deixando um rasto vindo de longe, de muito longe. Acabada a requisição e antes de colar a etiqueta – imagino que tenha um nome específico – com o seu nome, código de barras e não sei bem mais o quê, usa uma outra folha como mata-borrão. Nesses momentos, confronto-me com um mundo que acabou, onde as pessoas escreviam com canetas de tinta permanente, preta ou azul, compravam tinteiros para encher o depósito da caneta e tinham mata-borrões nas secretárias. Aliás, uma das estratégias publicitárias de então era oferecer mata-borrões no verso de um postal com os produtos da empresa. Olho para a escrita dela, agora diante de mim, e sinto estar perante um mundo absolutamente confiável. O lado negro desta minha posição foi o comentário que fiz sobre a médica, aliás bastante simpática e cuidadosa, que atendeu a minha mãe numa ida às urgências. Disse: era uma médica pouco mais velha do que a… As reticências indicam o nome da minha neta. Ora, isto é bastante preconceituoso, pois ela teria mais do dobro da idade da… Não escreverá com caneta de tinta permanente, usará o computador com rapidez e eficácia, mas pertence a um mundo que já não é o meu, apesar de eu nunca usar a minha Montblanc e conviver com bastante à-vontade com o mundo digital, de tal modo que muito raramente escrevo à mão. Schubert acompanha-me na entrada da noite desta sexta-feira. O Carnaval aproxima-se e sinto já imensa piedade pelos desfiles carnavalescos nacionais. Isto recordou-me a conversa ouvida hoje de manhã na fila de um hipermercado. Uma rapariga, com idade da médica que atendeu a minha mãe, confidenciava a outra que iria ao Carnaval de… com o namorado. E havia entusiasmo nessa confidência, não sei se motivado pelo namorado, se pela ida, se pela confidência. Não temos de saber tudo.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Pedras

Estes dias de Fevereiro parecem os de uma Primavera antecipada. Trazem calor e algazarra às ruas, como se toda a gente estivesse exausta dos dias sorumbáticos de Inverno. Agora, os corações sonham com o Estio, as águas do mar, as viagens de férias, mas tudo isso ainda pertence ao domínio da promessa. Talvez ainda volte a chover. No friso das orquídeas, o tempo passa devagar. Apenas uma está florida, tem duas flores amarelas e promete ainda outras para breve, enquanto as suas companheiras de habitação permanecem sonolentas, talvez castas, cheias de pudor, temerosas de mostrar a beleza que as habita. Da janela, ainda avisto uma nesga da torre do castelo, mas a cada ano que passa, com o crescimento de um pinheiro, a nesga é menor. Talvez mais um ou dois anos e a torre desaparece, oculta na verdura da árvore. Resta, no meu campo de visão, a outra, mas essa não esta ameaçada por nenhum ser vegetal. Contemplo as velhas pedras e penso que já viram muitas coisas. Algumas, por certo, seriam dispensáveis, pensarão elas. Sim, também as pedras pensam e, sobre os homens, têm a vantagem de não cometer erros lógicos, nem de se entregarem a sórdidas falácias. É o que penso, quando olho para elas e as vejo cintilar batidas pelo sol, como se fossem a encarnação da verdade num sítio dominado pelo prazer da mentira.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Uma revelação

Cheguei tarde a casa. Sentei-me e, mais uma vez, sopesei a estranha herança que me coube em sorte. O que fazer com os cadernos de Eduína que um acaso me tornou proprietário. Talvez não tenha sido o fruto de um esquecimento acidental. Não é impensável que a herança seja uma dádiva consciente. Um artifício para que permanecesse em mim a sua memória. Quando pediu que os guardasse, não imaginei que não os pediria de volta. O que ela pensou na altura, porém, não faço ideia. Não os leio de modo sistemático. Por vezes, espreito para dentro de um caderno, por instantes, perscruto umas frases e fecho-o. Hoje tive uma surpresa. Não esperava deparar-me com o que li, um pequeno poema: eu era a rosa de mim desconhecida / extraviada no odor das pétalas / presa nos espinhos do silêncio // eu era a rosa de mim desfolhada / a corola vazia à espera // do fogo na memória ateado. A surpresa não vem de encontrar um poema nos seus cadernos. Era uma possibilidade em aberto, embora nunca tivesse sabido que Eduína escrevia poemas. A nossa amizade, vejo-o agora, nunca chegara ao ponto que justificasse tal revelação. Tão pouco é a metafórica de origem botânica declinada à volta da rosa que me espanta. A surpresa vem da palavra memória, como se fosse uma designação metonímica do seu ser. Via-se já, nesses longínquos dias, como uma figura do passado. Transcrevi o poema e pensei que ela, ao dar-me a guarda dos seus cadernos, queria que também eu a visse como um ser do passado, alguém que me visita por instantes quando a minha curiosidade não se detém perante as folhas escritas. A noite caiu há muito, uma voz feminina, Bernarda Fink, interpreta um lied de Schubert, um tema sobre os deuses gregos.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Dos meses

O Word irrita-me. Insiste que estamos em fevereiro e não em Fevereiro. Ao grafar-se com capitular estamos a referir a natureza essencial do mês, de qualquer mês. Os meses não são coisas para se sujeitarem ao opróbrio da letra minúscula. Fevereiro deriva do latim Februarĭu. Este tem origem no verbo februāre, que significa purificar. Portanto, estamos no mês das purificações, o Word devia respeitar estas coisas. Caso se esteja disposto a retomar a querela entre os antigos e os modernos, há que reconhecer que os antigos têm uma vantagem sobre os modernos. Enquanto nós vivemos num tempo marcado pela monotonia e a indiferenciação, eles viviam num tempo diferenciado, onde o tempo do sagrado impunha rupturas na linearidade do calendário. Esses cortes davam sentido à existência, protegiam-na contra o cepticismo que toda a observação objectiva da realidade arrasta consigo. Essa necessidade de protecção, com a vitória dos modernos sobre os antigos, não deixou de se manifestar. O que justifica a nossa existência? Que trunfos temos para enfrentar o lado negro da realidade? A crença optimista no progresso e no futuro. Houve uma deslocalização das fábricas de protecção contra o cepticismo do presente para o futuro, mas o futuro é aquele lugar onde acabaremos todos por estar mortos. O melhor será purificarmo-nos em Fevereiro, fazermos a guerra em Março e assim sucessivamente, até chegarmos a Setembro. Daí até Dezembro, o nome dos meses apenas indica a sua ordem no calendário. Talvez estes meses, e só estes, devam ser escritos com inicial minúscula. Uma tristeza.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Sem história

Um dia sem história, a não ser uma levíssima dor de cabeça a tamborilar nem sei bem onde. Imagino as causas e, pior, as consequências. O mais interessante, todavia, é a equivocidade da linguagem. O que significa dizer um dia sem história? Será um dia em que nada há para narrar ou um dia em que história se ausentou do seu palco habitual? Preferiria esta última hipótese. Haver dias em que a história não exerce a sua função, até que acabe por desaparecer. Seria o fim da história e todos teriam razão para festejar, tão velhaca é a megera. Ela não está pelos ajustes e não há dia que não se exiba no teatro do mundo. Faz-se acompanhar por um cortejo de violências, como se a dor fosse a única maneira de chamar a atenção dos homens para a sua presença. Não era disto que queria falar, mas estou cansado para falar de alguma coisa. Não haverá pior narrativa do que a de um narrador cansado. Vou descansar.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Um domingo

Receio que o portátil que me permite escrever estes textos sem nexo esteja com vontade de entregar a alma ao criador. Este deve querer tudo menos a alma da coisa que criou. Nem faço ideia da idade, mas talvez caminhe para os 10 anos. Adquiriu, com o tempo, estranhos hábitos. Por vezes, imita um gato assanhado e sopra desvairado, apesar de a ventoinha ter sido limpa há pouco tempo. Outras, limita-se a suspender tudo o que estou a fazer e fecha-se em copas, sem dizer palavra. As tarefas que lhe peço são triviais, mas a idade ter-lhe-á roubado as forças. Tem havido mesmo casos de boicote, corrompendo ficheiros que não deveriam ser corrompidos. Um domingo a contas com a realidade, isto é, a trabalhar desde as dez e meia da manhã, com poucas interrupções. Dedico-me, não sem brio, à produção de coisas inúteis, mas esse é o destino de todos os seres humanos, produzirem inutilidades. Com isso prolongam a vida, caso contrário morreriam de tédio. A inutilidade é um colírio contra o fastio. Entre uma vida enfastiada e uma inútil, esta é mais confortável. Uma pessoa começa a ler um poema e de súbito é iluminado por um verso, como este de João Miguel Fernandes Jorge: defronta o dia com a laje da noite. Diz tudo o que aconteceu por aqui. A laje da noite, essa pedra pesada de escuridão, caiu e esmagou o dia, até ele desaparecer. Na verdade, apenas se escondeu para se vingar dessa mesma noite e rasgar-lhe as vestes, expondo-a, para sua eterna humilhação, à luz do dia. Não haverá coisa mais aviltante para uma noite do que ser vista à luz do dia.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Taxionomia frásica

Como é sem sabor a imaginação que herdei nesse jogo sublime a que se dá o nome de lotaria genética. Uns herdem genes que lhes permitem activar a faculdade de fantasiar, outros apenas recebem os genes lhes permitem desejar activar a imaginação, mas que não lhes permitem ir além do desejo. Este intróito serve para justificar o sem assunto com que me deparo hoje e a natureza manca da minha imaginação para inventar um. Aliás, o estar sem assunto é um dos principais assuntos que me ocupam aqui. Esse e o do tempo. Ocorreu, porém, fazer uma visita ao senhor Dante Alighieri, pessoa a quem a imaginação não recusava os seus favores. Num tratado que abandonou antes de chegar a meio, De vulgari eloquentia, propõe uma taxionomia da construção frásica. O que me interessou foi que a gradação do mais baixo ao mais elevado remete para uma experiência sensorial de um dos nossos sentidos que não tem o peso  que a visão ou a audição apresentam na reflexão humana. Trata-se do gosto. O grau de construção mais baixo, próprio dos incultos, é o insípido. O seguinte, próprio de estudantes e professores sem maleabilidade, é o sápido. Depois deste vem aquele que é próprio dos que absorvem superficialmente a retórica, e designa-se por sápido elegante. O mais excelente de todos os graus, distintivo dos declamadores ilustres, é o sápido elegante e sublime. Portanto, quem queira escrever belas frases, o que deve fazer é treinar o palato para distinguir não apenas o insípido do sápido, mas também os diversos graus em que aquilo que é saboroso se apresenta. E com isto caiu a noite, uma frase digna de um inculto, tão má quanto o exemplo que Dante oferece para uma construção insípida de um ignorante: “Pedro ama muito a senhora Berta.” Em defesa do inculto diga-se que mesmo por detrás de uma frase sensaborona se pode ocultar um drama, senão uma tragédia. Há coisas sublimes na vida que começam por frases bem piores, embora não me ocorra nenhuma, para fazer dela exemplo.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Uma tarde metafísica

O largo do primeiro andamento da sonata número 1 para violoncelo e piano, de Alfred Schnittke, acentua a melancolia que caiu sobre a tarde desta sexta-feira. O azul do céu foi-se cobrindo de cinza, a luz entregando o júbilo da cintilação ao reino da sombra, como se tudo tivesse sido tomado por uma tristeza lutuosa, e o coração, talvez o meu, talvez outro, cerrou-se suspenso de uma inexplicável saudade. O presto do segundo andamento, apesar da velocidade, foi incapaz de fender a paisagem opaca que se desenhou e acabou por retornar, no terceiro, a um largo que, de início, parece soltar um grito de dor, mas que logo se contém, mergulhando na melancolia de quem olha para um passado irremissível, para, depois, um jogo lento entre a dor física e a tristeza moral abrir caminho pelas ruas da cidade, onde as pessoas passam como se não passassem, e alguém, que me faz lembrar o Esteves, entra num bar que me recorda uma tabacaria. Claro que é o Esteves sem metafísica. Ora, se há coisa que não se pode acusar Alfred Schnittke ou, por exemplo, Andrei Tarkovsky, o cineasta, é de lhes faltar metafísica. Talvez a alma russa seja, mais do que outras, uma alma metafísica, mas de uma metafísica que se manifesta na figura da arte e não da filosofia, uma metafísica encarnada, sensível. Tudo isto é alheio àquele que parece o Esteves e sai agora do bar que me recorda uma tabacaria. O Esteves é a alma portuguesa, a que falta metafísica, isto apesar do Antero de Quental e do Teixeira de Pascoaes. Se me perguntassem qual o instrumento musical mais claramente metafísico, responderia sem hesitar – a ignorância tem atrevimentos destes – o violoncelo. Está uma tarde metafísica, se soasse, ouvir-se-ia um violoncelo.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Meditações linguísticas

Acabei de dar uma vista de olhos pela imprensa online e vislumbrei – pobre de mim, simples narrador sujeito à vontade do autor – o motivo que leva a que conversas sobre política estejam aqui rigorosamente proibidas. Imagino que na cabeça do autor exista uma férrea censura a uma linguagem que se degradou. Os gregos antigos pensavam que os grandes homens, e os políticos seriam grandes homens, teriam também grandes palavras. A grandeza vinha das acções e do discurso. Ora, o discurso político, nos dias que correm, reduziu-se à berraria inflamada para explorar emoções primárias ou a uma linguagem estereotipada cuja finalidade é dizer o menos possível, pois pouco se tem para dizer. O discurso político é uma linguagem em quarto minguante, à beira de chegar à lua nova. Este empobrecimento linguístico é também um modo de empobrecimento da realidade em que se age. A oclusão do horizonte da pólis é fruto de uma linguagem que se degradou. Uma das teses do autor, sobre a qual eu, narrador, tenho dúvidas, se não mesmo completa discordância, é que a degradação do discurso nasce da ideia tonta, para usar a sua classificação, de que a linguagem é, antes de mais, um veículo de comunicação. Se assim é, então quanto mais simplória for a linguagem mais facilmente estabelece comunicação. A linguagem, todavia, só acessoriamente tem uma função de comunicação. Ela é uma forma de trazer à luz aquilo que é. Na linguagem, as coisas mostram-se na sua especificidade e diferença. Aquele que fala é um mediador e um revelador da realidade na sua profunda complexidade. A linguagem mostra o incomum. Quando se reduz à comunicação fica presa ao comum, isto é, à trivialidade. O discurso político reduziu-se à trivialidade comunicacional. Tornou-se impotente para manifestar aquilo que na vida da pólis é incomum. Isto, porém, são pensamentos do autor, que o narrador não partilha. Depois desta arenga sem sentido nem necessidade, podemos escutar, a primeira estrofe de um poema de Maria da Saudade Cortesão: Oh Posêidone / deus de cabelo dissoluto e azul / a cadência das marés surge / de teus braços fluidos, oh Taureus. / Pelo sacrílego perjúrio de Minos / a tua vingança cai, como é uso dos deuses, / sobre uma vítima alheia àquela culpa.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Um pré-moderno

Afinal, não será uma patologia, mas o eco persistente de um hábito que os tempos modernos vieram destruir, talvez sem o conseguir por completo. Estou a falar por enigmas? É possível, mas são estes o sal da vida. Referia-me à vexata quæstio da insónia que, com regularidade, me atormenta. Uma entrevista, na excelente Electra (Inverno 2022/23), a Roger Ekirch, autor de At Day’s Close: Night in Time Past, descubro que a ideia de que o padrão consolidado do sono é o de oito horas contínuas não passa de uma invenção moderna, demasiado moderna. O autor descobrira que, antes da Revolução Industrial e da iluminação nocturna, o sono era bifásico, havendo uma interrupção de cerca de uma hora, entre o primeiro e o segundo sonos, na qual as pessoas se entregavam às mais diversas actividades. Quais, perguntar-se-á. Bem, actividades que não exigissem grande iluminação. Como por exemplo? Certas tarefas domésticas, ou meditar, rezar, ter relações sexuais. Constato que as possibilidades tinham certa variedade, embora algumas fossem de compatibilização se não impossível, pelo menos difícil. A não ser que se fosse um cultor do Tantra, como se poderia compatibilizar o sexo e a meditação? E o que tem isso que ver com a insónia de que padeço? Segundo a tese de Ekirch, a insónia a meio da noite é um eco persistente desse anterior padrão de sono. Talvez isto seja um sintoma de que o meu tempo não é este, mas um que já passou, aquele em que a escuridão induzia a um sono bifásico (outra tese do autor). Em resumo, fui atingido pelo ferrete da obsolescência. Não há dia que não descubra mais um indício do estado em que me encontro. Definitivamente, sou um pré-moderno.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Pensamentos ociosos

Há muito tempo que não oiço as Hochzeitskantaten, de Bach. Por acaso, ou por uma determinação cujas causas desconheço, peguei num CD em que Christine Schäffer as interpreta, acompanhada pelo Musica Antiqua Köln, dirigido por Reinhard Goebel. Uma edição da Deutsche Grammaphon. Que razão me terá levado a esse disco e não, por exemplo, à Sinfonia “Kullervo”, de Jean Sibellius, ou a Kagel by Mauricio Kagel. O que me interessa é se o acontecimento foi aleatório ou, parecendo fruto do acaso, alguma secreta inclinação me conduziu, em primeiro lugar, à obra de Bach e, só depois, às outras. Afasto três explicações. A primeira, a tese aleatória, diz que o acaso é mero acaso e não mais do que isso. A segunda diz que uma cadeia causal, vinda dos primórdios do universo e gerida pelas leis da natureza, me levou até àquela obra. Uma terceira sublinha que estava fadado pelo destino a encontrá-la neste preciso momento. O que gostaria de saber é que secreta decisão se deu em mim para que, inconsciente, me dirigisse a ela e a reconhecesse como aquilo que queria ouvir. Portanto, nada de leituras influenciadas pelo indeterminismo da mecânica quântica, nem pela física determinística, nem pela metafísica esotérica. Em que ponto de nós se dá uma decisão que parece ter sido formada antes de se ter dela consciência? Melhor seria falar do estado do tempo, do adiantamento dos trabalhos dos campos ou, então, de um poema que começa assim: De perfil. As rugas por metade. / Mais fundas junto à boca desgostosa. / Nenhuma rosa. / No cristal da idade. O que seria um poema pouco concorde com o espírito nupcial das cantatas de Bach. Nem sempre as terças-feiras são dias propícios à clareza de espírito. Volto para a realidade, essa casa de correcção que trata de pessoas com condutas viciosas e não há coisa mais viciosa do que ter pensamento ociosos.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Puro e impuro

Um dos pares de categorias mais antigo, por isso, mais estruturantes da vida social dos homens, será o de puro e impuro. Por motivos alheios aos meus interesses, mas movido por um certo acaso, deparei-me com uma pequena notícia de 2019 do Expresso. Uma jovem mulher nepalesa morrera sufocada numa cabana sem janelas, onde acendera uma fogueira para se aquecer. Estava isolada, pois, estando no período menstrual, era considerada impura, o mesmo aconteceria se tivesse acabado de dar à luz. Os tempos de impureza implicavam isolamento, o que muitas vezes acabava mal. Este par de categorias talvez esteja na origem de todas as atitudes discriminatórias que compõem a vida da espécie. Podemos pensar, na ignorância que temos dos factos, que num momento muito arcaico da cultura humana, arcaico pois a força dessas categorias parece ser universal, algum acontecimento traumático levou a consciência dos nossos antepassados a fixarem-se no problema da mácula e a construir um terrível jogo de distinções entre o puro e o impuro, o maculado e o imaculado. Estas distinções não tiveram apenas valor cognitivo, mas deram origem a múltiplos mandamentos que ordenam as acções dos seres humanos. Uma irracionalidade, dir-se-á, a que tempos mais esclarecidos acabarão por pôr fim. Disso, este narrador tem fundadas dúvidas. Esse jogo entre o puro e o impuro acontece mesmo – por vezes, com inusitada intensidade – em culturas modernas, marcadas por forte educação da razão. Mesmo um filósofo supinamente racional, Immanuel Kant, não resistiu à atracção que o par puro/impuro exerce sobre o espírito humano, ao escrever a sua mais célebre obra, a Crítica da Razão Pura. Também ele pretendeu isolar numa cabana destituída de janelas o uso da razão contaminado pela sensibilidade. Ora, se o expoente do pensamento iluminista caiu na armadilha do puro/impuro, o que haverá de suceder connosco, pobres mortais, cujo pensamento não se eleva às alturas onde habitava o senhor Kant, enquanto dava aqueles célebres passeios pela velha Konigsberg e as pessoas acertavam os relógios pela sua passagem?

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Da tristeza

Domingo. A tristeza da tarde escorre das paredes batidas por um sol pálido. Na avenida, pessoas passam devagar. Duas mulheres, talvez amigas de longa data, caminham com lentidão, para que a pele receba ainda a luz solar. Um homem passeia um cão minúsculo. Outro entra no bar da esquina. São assim os domingos de província, quando já não há cinema e ninguém vai ao futebol ver jogar a equipa da terra. Poderá haver outros eventos mais animados, mas esses escondem-se dos olhos públicos, e daquilo que não se dá à publicidade, o mais sensato é não falar, não vá o desconhecimento cobrir com o véu escuro da mentira a verdade daquilo que acontece. Sobre a tristeza, Montaigne começa assim o ensaio que lhe dedica: Conto-me entre os mais isentos desta paixão, que não amo nem aprecio, pese embora os homens a terem honrado, como que por convenção, com um favor particular. Vestem com ela a sabedoria, a virtude, a consciência; néscio e monstruoso ornamento! Os Italianos baptizaram-na mais convenientemente com o nome de malícia. Há no texto do pensador francês uma dificuldade. Começa por dizer que a tristeza é uma paixão. Ora, paixões são coisas que se sofrem, nas quais somos passivos. Podemos resistir-lhes, mas não está na nossa mão evitar que nos atinjam. Depois, faz notar que os homens vestem com a tristeza a sabedoria, a virtude, a consciência. Se o fazem, então essa tristeza resultada de uma decisão. Se assim é, então a tristeza não será uma paixão. Se, no entanto, for realmente uma paixão, aquilo com que os homens revestem a sabedoria, a virtude, a consciência não será a tristeza, mas um simulacro. Simulam-se tristes para adquirirem uma gravidade que temem não possuir. Um domingo de província não é uma simulação da tristeza, mas a tristeza em acto. Os dias são mais autênticos do que os homens, coincidem consigo mesmos, enquanto nós nunca coincidimos connosco. Entre nós e nós existe sempre uma fenda. Talvez a vida seja essa tentativa vã de preencher o hiato. Ou talvez seja outra coisa qualquer de que não sei o nome, nem conheço o sentido, nem descortino a que se refere. Isto, porém, não é motivo de tristeza, mas de júbilo.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Do sofrimento das palavras

Esteve, está ainda, um magnífico dia de Primavera, apesar do Inverno oficial estar mais ou menos no meio. Está a faltar à estação fria resiliência, para utilizar uma palavra que, caso tivesse poder para tal, aboliria. Em si mesmo, o vocábulo é inócuo, mas ao cair nas bocas do mundo, tornou-se jargão de homilias insuportáveis. Pergunto-me, não poucas vezes, sobre o mal que terão feito certas palavras para terem assim um destino tão atroz. Depois, é verdade, passada a fase pandémica, voltam à normalidade, entrando a mais das vezes no esquecimento. Uma outra é paradigma. Não há cão nem gato que não se veja perante uma mudança de paradigma. Como é que uma noção polémica vinda da história da ciência, da interpretação das transformações nos campos científicos, se propagou nas vãs bocas deste mundo? Sabe-se lá. O mais interessante é que o autor da ideia de aplicar paradigma à mudança científica, sete anos depois altera o nome de paradigma para matriz disciplinar, mais conforme com os seus intentos e reservou o termo, agora mágico, para outra coisa bem mais modesta e que não vem ao caso. O mal estava feito. Agora, andamos sempre, cheios de resiliência, a mudar de paradigma, prova de que os paradigmas estão cada vez menos resilientes. Tenho de me preparar para observar como chega a noite, para compreender aqueles versos de Homero referindo-se ao deus Febo Apolo:  Nos ombros trazia o arco e a aljava duplamente coberta; / aos ombros do deus irado as setas chocalhavam / à medida que avançava. E chegou como chega a noite. É uma extraordinária analogia. Os deuses chegam como chega a noite. Homero, porém, estaria a explorar uma ciência comum que existiria nos homens, a de saber como chega a noite, ou, pelo contrário, pretendia explorar a mais banal das ignorâncias, aquela que nasce de o hábito da noite chegar, mas nunca deixar de ser um mistério o como ela chega? Em que paradigma o semiverso de Homero deve ser colocado? É melhor acabar, não me ponha por aí, resiliente, a semear uma seara de interrogações.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Toponímia

Desconfio que não tardará e estaremos, mais uma vez, em seca severa. Depois de um Janeiro que, após um começo lacrimoso, se desfez das águas e abraçou a causa do fogo, estamos no terceiro dia de Fevereiro e a tendência mantém-se até, pelo menos, meados da semana que vem. Já floriu a primeira orquídea cá por casa. Outras prometem para breve o abrir-se em flor. Esta expressão, abrir-se em flor, deveria ser evitada. Não me ocorreu outra melhor. O pequeno bosque da escola aqui ao lado é uma mistura de luz e sombra. Na Sá Carneiro, os transeuntes transitam com vagar, gente sem idade que procura as esplanadas onde possa ainda deixar o corpo sorver um pouco de sol. O nome da avenida não se refere ao poeta, mas ao antigo primeiro-ministro. Não é o resultado de um reconhecimento artístico, mas da paixão política. Julgo que a nenhuma rua ou avenida daqui foi atribuído o nome de um grande escritor. Nem Eça, nem Pessoa, nem mesmo Camões. Há uma excepção, a grande referência nacional do século XIX, Alexandre Herculano. Consta que o autor de Eurico, o Presbítero teve tanta glória em vida, quanto Camões ou Pessoa depois de mortos. Essa glória chegou aqui e tomou o nome de uma rua. De resto, as artes e as letras não comovem a comissão toponímica local, uma congregação que imagino secreta, reunindo em conclaves nos quais, com gravidade, se delibera a alteração de nomes existentes ou, se aparece alguma rua nova, o baptismo da recém-nascida. Daqui a pouco, chegam as minhas netas para passar o fim-de-semana. Os novos óculos continuam a oferecer-me uma visão mais nítida da realidade, o que pode não ser um bem.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Próteses

Surpreendentemente, as letras não apenas cresceram como se tornaram mais nítidas. No Word, caderno onde estes textos são escritos, o negro apresenta-se acintosamente retinto. Não imaginava que o preto fosse tão preto. Para esta metamorfose, bastou a troca de óculos. Pena não haver uns óculos para a inteligência. Por certo, tornar-me-ia num cartesiano. Tudo seria mais claro e mais distinto. Uma prótese para o intelecto ser-me-ia ainda mais útil do que para os olhos. Sendo assim, contento-me com o que me saiu na lotaria genética. Saliente-se, todavia, que ver as coisas difusas tem enormes vantagens, pois é provável que quando as coisas se apresentam de modo claro e distinto não consigam disfarçar aquilo que nelas há de repelente. Imagino que um poeta como Herberto Helder tivesse essa compreensão do mundo quando escreveu Os jardins contorcem-se entre o estio e as trevas. Eu veria apenas um jardim agradável, ele vê-o a contorcer-se, em espasmos, talvez mesmo a babar-se. O oculista onde mandei fazer os dispositivos que me aumentam a visão terá a minha idade. Pertence a um género de comerciante em vias de extinção. Lida com cada cliente como se este fosse a pessoa mais importante do mundo, embora não passe nunca a linha da contenção, aquela fronteira que impede a queda no ridículo. Faz-me lembrar uma história contada, salvo erro, pelo historiador britânico, descendente de rabinos lituanos, embora os pais fossem judeus seculares, Tony Judt. O avô tinha um grande armazém e dedicava um dia por semana para estar à porta onde cumprimentava qualquer cliente, rico ou pobre, com a máxima deferência. Para dizer a verdade, não estou certo de que a história seja de Judt e já não sei onde a procurar. Talvez seja do sociólogo norte-americano Richard Sennett, ou de um outro autor que agora não me ocorre. Pena não haver óculos para a memória. Seja como for, juro que a história não é apócrifa.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Sub specie aeternitatis

Janeiro, como água, escapuliu-se entre os dedos. O novo mês entrou levemente buliçoso, uma mistura de frio cortante e sol fúlgido. Ontem alguém que conheço muito bem sugeriu-me a candidatura a uma certa actividade, numa certa publicação cujo nome não vem ao caso. Estariam interessados, por certo. Respondi que não. A publicação, apesar de estar na moda, não era do meu agrado, o meu interesse em dar-me a conhecer nulo, o assunto não me comovia, apesar de poder escrever sobre ele muitas páginas e de o conhecer com alguma profundidade. E, acrescentei, que já era tarde para fazer uma coisa dessas, mesmo num lugar que me agradasse. É preciso ter consciência de que todos temos um tempo de validade e o meu passou, acrescentei como argumento final. Os gregos distinguiram duas modalidades de tempo, chronos e kayrós. O primeiro é o tempo banal, aquele que medimos através de relógios e calendários. O outro é o tempo oportuno, a hora propícia para tomar uma decisão ou realizar uma acção. Não sei bem a razão, mas sempre tive dificuldades com ambas as modalidades do tempo. Imaginemos um certo romance que sai. Não olho para ele do ponto de vista da novidade, o que implicaria uma atenção ao chronos e à sua oportunidade de leitura, o kairós, mas sub specie aeternitatis, isto é, tanto faz lê-lo agora como daqui a dez anos. O que acontece com esse imaginário romance, acontece com muitas outras coisas, mesmo as mais pessoais. Olho-as do ponto de vista da eternidade. Isto tem as consequências mais funestas. Por um lado, na dimensão cronológica, tenho uma enorme propensão para o serôdio, num mundo que valoriza o temporão sob a designação de precoce, e, na dimensão kairológica, inclino-me sempre para perder a hora. Se alguém, tomado por alguma insensatez, me pedisse um conselho sobre como agir no mundo, coisa que certamente não ocorrerá, dir-lhe-ia apenas que nunca sobre si deixe que caiam os raios da eternidade. Destroem os relógios, confundem os calendários e escondem o momento certo.