quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Beco sem saída


Quando hoje passei pela ponte do Raro e olhei as águas lembrei-me de uma velha canção de Simon & Garfunkel, Bridge Over Troubled Waters. Uma lembrança a despropósito, como me acontece com frequência. Nem a minha disposição é de andar a distribuir consolo, nem as águas do rio, do rio da minha aldeia, quase o digo, sonham sequer em ser turbulentas. Estas súbitas aparições do passado não deixam de ser misteriosas. Seguimo-las e não deixamos de ir dar a becos sem saída. Quantas vezes passei por aquela ponte? Quantas vezes, num tempo tão distante, terei ouvido aquela canção? E tudo o que me motivou num e noutro caso tornou-se tão obscuro que sinto crescer dentro de mim uma dúvida sobre se alguma vez atravessei a ponte ou ouvi a canção. E assim lançada, a minha mente já se precipitava para uma meditação metafísica sobre a irrealidade da existência. O que me valeu foi o semáforo ter aberto. A salvação está em qualquer lado, até num semáforo perdido numa cidade que, também ela, parece um beco sem saída.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Falar do tempo


Adiar o inadiável, pensei ao ver a chuva cair. Não tarda e a Primavera chega com o seu cortejo de ilusões, os corpos tomados por uma ânsia de Verão e eu, temeroso, sinto já a penumbra fumegante com que o calor me envolve e me lembra, com o estilete do acinte a enterrar-se nas veias, a finitude e a mortalidade que me constituem. Falar do tempo, penso, é aquilo que cabe a quem já não tem nada para dizer. Aos negócios humanos sou cada vez mais estranho e do resto nada sei. Quando não sou capaz de estar calado, sobra-me o tempo como motivo de conversa. Descrever os dias de chuva, os de sol e os que não são uma coisa nem outra. Ah se tivesse uma libertação para proclamar ou uma salvação para anunciar, tudo seria mais fácil. Nunca faltam adeptos, mas como verdade basta-me a chuva que cai, o sol que brilha, as nuvens que passam, a monotonia com que a noite se ergue do ventre entumecido do dia. Chove, não é mau.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Anjos


Só se ouve um piano, mas o título da peça é “Três anjos cantavam”. Os meus ouvidos não estão preparados para escutar as vozes dos anjos, pensei, enquanto deixava o espírito enovelar-se nos acordes musicais. Talvez o título seja uma metáfora ou uma falsa promessa. Promete vozes de anjos e escutamos um piano. Também a tarde de hoje é feita de falsas promessas, presumo. O céu cinzento anuncia chuva, mas ela recusa-se a cair. Olho para a rua e os transeuntes caminham despreocupados, presos aos seus sonhos, mãos vazias como se soubessem que a água prometida é uma conjectura sem sentido. Volto para a voz dos anjos e oiço as notas saídas do piano. Talvez essa voz não seja mais que o silêncio, esse silêncio que abre o corpo do homem ao segredo da música. Observo inquieto a rua e ainda não chove. Um anjo poisa no telhado em frente, quase se desequilibra. Recolhe as asas e canta.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Memória


Temos uma certa crença fundada em experiências antigas – por exemplo, o caminho que liga duas povoações e que foi percorrido inúmeras vezes nos anos setenta do século passado – e estamos certos dessa crença. A certa altura passa-se, dizemos ufanos a quem nos acompanha, por aqui e por ali. Depois, descobre-se que não se passa nem por aqui nem por ali e ficamos perplexos sem saber se já não se passa ou se nunca se passou. A memória é um poder estranho e pouco confiável. Quando pensamos que ela reproduz uma realidade vivida, ela logo nos mostra que a sua função é inventar vidas que nunca existiram, caminhos que nunca foram percorridos ou acontecimentos que nunca aconteceram. Ou talvez tudo isto seja uma história dominical, onde os caminhos do fim-de-semana não coincidem, por respeito ao ócio, com os dos dias úteis, subjugados que estão à corveia que a existência nos impõe.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Vida examinada


Os dias ensolarados de Fevereiro arrastam consigo a triste propensão de nos darem a pensar aquilo que deveríamos não trazer à memória. Algumas contabilidades esquivas têm tendência, se nos descuidamos, a colocar-nos perante o número de anos já vividos. O pior do exercício não será tanto a compreensão da cada vez mais próxima falência do projecto, com o encerramento definitivo da aventura. A falência é a contrapartida necessária e incondicional de as portas terem sido abertas. O pior é aquela linguagem cifrada em livro razão, balanço, deve e haver. Toda a vida é vista, então, como um acumular de entradas e saídas, a que o exercício esotérico da contabilidade parece ser chamado a examinar. Consta que Sócrates, o mestre de Platão, terá dito que uma vida não examinada não merecer ser vivida. E o anjo negro, aquele que também habita dentro de nós ao lado do anjo branco, pergunta: e uma vida examinada será que merece? O melhor é ir apanhar sol e ver se falta muito para os castanheiros da avenida florescerem.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Precaução


Não há pior tentação, pensei ao entrar no carro para me dirigir para casa, que a de tentar corrigir a natureza humana. Quando a ideia nos toma de assalto, a única coisa que devemos fazer é esperar com paciência que ela passe. O importante, meditei, não é melhorar a humanidade, mas precavermo-nos dela, mesmo – ou principalmente – se entre ela e nós não há qualquer diferença. O sol de sexta-feira tem sempre o condão de me fazer pensar sobre coisas em que não devia pensar.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Cegueira


Penso muitas vezes na inevitabilidade das coisas e na estranha cegueira que cai sobre os mortais. Não estou a falar daquilo que acontece necessariamente devido a uma lei qualquer da natureza. Refiro-me ao que poderia não acontecer – e que, muitas vezes, seria desejável que não acontecesse – mas que acabará por acontecer. Há um momento em que isso poderia ser evitado, mas a cegueira para o que pode vir é tanta que, quando tudo se torna manifesto, já é tarde para o evitar. Os que se riam da mera possibilidade são os primeiros a chorar, como se eles não fossem, por omissão, uma causa do estado lamentoso a que se chegou. Os deuses são travessos e raramente perdem oportunidade para se rirem das lágrimas dos homens.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Mortais


O tempo é faceto ou, talvez, volúvel. Ainda ontem prometia, sem pudor, o devir rápido de uma primavera temporã. Hoje, arrependido e tristonho, enovela-se em sombras, deixando vir uma luz equívoca que, dificilmente, alegrará o coração daqueles que, soturnos, vejo calcorrear a avenida. A tonalidade cinzenta da hora parece chumbo que os meus conterrâneos carregam sobre as suas costas. Cada um, pensei então, é uma encarnação do filho de Jápeto, o infeliz que foi condenado a suportar, em seus ombros, os céus. Não há como a mitologia para enquadrar as coisas da vida. O pior, ocorreu-me logo, é a impossibilidade de ver neles a sombra de velhos titãs conjurados contra um poder supremo. Sob a copa das árvores passam apenas mortais conciliados com o seu destino. Antes assim, conformei-me eu também.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Antevisões


Esta luz faz lembrar já os arpejos da Primavera, pensei. Logo, uma onda de calor desceu sobre mim numa antevisão do que virá. O problema todo está nesta maldita Idade de Ferro que nos foi dada a viver. Como o velho Ovídio explica – e outros antes dele – na primeira Idade, a de Ouro, a Primavera era eterna, mas tendo sido devorado esse tempo, com a passagem à Idade de Prata, as estações foram divididas e a Primavera, antes infindável, é agora breve e logo cede o seu reino ao tormentoso Estio. E com esta recordação os raios solares que descem sobre a avenida em vez de consolo são já uma ameaça tórrida a que ninguém, contudo, presta atenção, entregues que os homens estão à celebração da glória luminosa do sol. Recolho-me em casa e tento lembrar-me dessa outra pátria que haveria de ser a minha se a ordem do frio e do calor, da luz e da sombra coincidisse com o meu desejo. E em mim não há mapa onde a encontre nem voz que a sopre aos meus ouvidos.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Transformações


Devido a uns assuntos da profissão dei por mim a meditar sobre transformações. Como é que um adolescente de 15 anos entenderá a transformação de um princípio, máxima na linguagem de Kant, que determina subjetivamente o meu comportamento numa lei universal que haveria de ordenar a todos os homens, em situação semelhante, a comportarem-se daquela maneira? Penso muitas vezes que seria muito mais fácil ensinar-lhes o processo alquímico da transformação do chumbo em ouro do que tornar evidente que a única singularidade lícita é aquela que coincide com a universalidade. Aos 15 anos, tanto quanto me lembro, a singularidade é tão esplendorosa que nem se concebe que para além dela haja outra coisa, quanto mais uma universalidade na qual deverão coincidir todos os seres singulares, caso seja boa a sua vontade. Noutros tempos talvez se ensinassem coisas mais interessantes e não menos profundas. Por exemplo, explicar por que razão a filha de Mínias, Alcítoe, é ímpia ao negar a Júpiter a paternidade de Baco e, por isso mesmo, afirmar que este não merece os ritos mistéricos onde é cultuado. É então que, por impiedade para com o deus que me permite ganhar a vida, chego a pensar que os atenienses não estiveram mal em condenar Sócrates à morte por corromper a juventude. Havendo a paternidade de Baco para discutir ou a arte da transformação do chumbo em ouro para analisar, não será corromper a juventude querer que saibam que o mistério do comportamento moral reside todo nessa metamorfose do querer singular numa lei universal que há-de determinar todos os quereres?

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Envelhecer


Sentado ao balcão, o homem metia conversa com as mulheres que passavam. Elas, bastante mais novas, condescendiam em trocar umas palavras. É penoso envelhecer, pensei, enquanto ia almoçando apressado num canto do bar. A tarde entrava pela grande vidraça e caía ensolarada e impiedosa sobre as mesas. A Primavera aproxima-se, até um corpo gasto ainda sente o sobressalto, concluí. A boca do homem enrolava-se à procura de uma palavra, uma única que pudesse dizer a memória fugaz do desejo, daquele desejo que se desejaria ter. Quase senti vergonha de estar ali e de assistir à luta desigual do corpo gasto contra o tempo. Elas sorriam perante a banalidade, respondiam com outra e seguiam em direcção à porta, sem que ele esboçasse um protesto. Eram as regras do jogo, deduzi. A rua esperava-as e, na sua complacência, pressenti o medo que as habita, esse medo de chegar a hora em que faltam palavras para o desejo, em que este para se dizer gagueja e descobre as piores, aquelas em que nunca deve ser dito. É penoso envelhecer nestes dias de sol, em que a Primavera se anuncia e o deus anda solto e desamparado pelos campos.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

A seda da noite


As noites nem sempre são boas conselheiras. Envolvem-nos com a sua tecelagem de equívocos e enganos, arrastam-nos para a turbulência que habita o centro de toda a bonança, prendem-nos ao risível que nunca se cansa de aflorar no rosto, no nosso. Então vemos a vida a desfiar-se e raras são as vezes que gostamos daquilo que se vê. Talvez a noite tenha a virtude de tornar mais sombria a realidade e de deixar, na boca dos homens, uma trago amargo, o fel que o passar dos dias foi acumulando. Há pouco, num dos apartamentos aqui perto ouvia-se um bebé chorar. Agora, são uns saltos que golpeiam o chão de pedra e ressoam dentro do cansaço que há mim. Espreito pela janela e tudo parece imóvel. Ao longe ouve-se o frufru da seda da noite. Nada é eterno, talvez a mulher se tivesse descalçado e a criança adormecido. Pego num livro, mas sinto os olhos a picar.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Quarta-feira de cinzas


Chegou a quarta-feira. Cinzas derramam-se dos céus, arrastadas pela melancolia do sol, banhadas na água lustral de nuvens que passam devagar sobre os telhados da antiga vila. E quase sinto saudades daqueles tempos em que havia Quaresma com jejuns e proibições, uma árdua preparação para a ressurreição da carne. Volteio pela cidade de carro e penso que ela, na verdade, entrou há muito tempo na Quaresma e promete por lá ficar, sem que uma ressurreição se adivinhe no horizonte. É agora um lugar de melancolia. As pessoas, aquelas que vejo atarefadas e sombrias, atravessam-na com cuidado, assombradas por um espectro que não sabem identificar. Há muito que estas ruas e praças, que estas gentes, onde me incluo, entraram numa irremissível quarta-feira de cinzas.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Não saber


As árvores do passeio em frente foram podadas. Parecem agora mãos disformes erguidas aos céus e não sei se elas se abrem numa súplica ou se mostram as garras afiadas em ameaça. São cada vez menos as coisas que sei, constato não sem alegria. Por debaixo delas passam, indiferentes, pessoas e cães. Um casal, de mão dada, arrasta-se, ela presa a uma mala excessiva e ele de passo incerto, deixando, a cada instante, a perna esquerda um pouco mais para trás. Talvez a felicidade deles resida naquela mala demasiado grande ou no esforço de trazer a perna ao seu lugar. Nunca sabemos o que torna os outros felizes. E o melhor é não o saber. Umas persianas abrem-se e da janela chega a imagem de uma mulher. Acende um cigarro. O fumo sai-lhe pela boca e pelas narinas. Talvez a felicidade que lhe cabe nesta vida esteja toda nesse fumo que o corpo deseja para logo o expelir. E sigo pela rua fingindo não ver aquilo que vejo. Toda a virtude, concluo, está em fingir não ver o que se vê. Virtude e sabedoria.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Desprezo


Fiquei todo o dia a tratar de expediente escolar, enquanto, lá fora, o sol se abria sobre a cidade e caía delicado nos prédios, soprado por um vento insípido. As nuvens, julgo que serão cúmulos, navegam lentamente pelo oceano bonançoso do céu, alheias aos homens. Envelhecer será, penso-o agora, contentar-se com a indiferença com que a natureza acolhe os meus desejos. Não há nela nenhum projecto para os frustrar, apenas a sabedoria de os não tomar em consideração. E é este desprezo pelas ânsias da humanidade, admito-o, aquilo que ela terá de mais admirável.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Na hora anunciada


Mesmo se sombrios, são gloriosos os domingos, os que não possuem uma segunda-feira no horizonte, pensei ao chegar à janela. O céu cinzento não é uma ameaça mas uma promessa, ilusória como toda a promessa, de uma eternidade mesmo ali ao alcance da mão. E recolhi-me nessa fantasia, ruminando projectos e arquitectando obras, semeando o porvir de esperanças para as quais, sei-o bem, ele não está disponível. Um pombo lacera o céu, plana de asas hirtas como se não houvesse gravidade, sustido pelo vento e pelos meus olhos que não se desprendem daquele voo. E nesse breve instante a eternidade manifestou-se, suspendendo o tempo, e falou com a sua língua de fogo para que eu a escutasse. Fechei os olhos e ao abri-los não havia pombo, nem língua de fogo, nem a eternidade falava dos seus segredos no fundo do meu coração. É domingo e a segunda-feira já se ergueu para pôr os pés ao caminho e chegar aqui na hora anunciada.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Signum citationis

Por vezes deparo-me com expressões que têm o condão de salvar o dia. Não que ele esteja perdido ou que eu sinta a sua queda iminente, mas está embaciado por algum desejo que turba o coração ou ofusca a luz da razão. Sento-me e olho para a rua. O sol persiste em iluminar a terra, reverbera nos vidros dos carros que passam. Um dia ainda será acusado de contumácia no crime de trazer a luz, prognostiquei. Leio alguém que fala sobre esse sinal equívoco que tem o nome de aspas. A dado momento, escreve, referindo-se-lhes, signum citationis. Fiquei siderado a olhar para a expressão e deixei que ele quase cantasse em mim. Só a música nos pode salvar, pensei então, deixando-me embalar pelas aliterações e assonância presentes naquelas duas palavras de uma língua morta. O vento empurrava a ramagem do arvoredo sem que a música se desvanecesse. E de súbito percebi a vida como uma citação de um texto apócrifo, umas vezes marcada pela musicalidade do signum citationis, outras exibindo-se como um plágio sem pudor.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Carnaval


Quando se aproximam os dias de Carnaval sinto crescer a desolação. É possível que outrora tenha existido uma qualquer relação de continuidade com as Saturnais romanas ou com grandes festas dionisíacas. Agora são dias em que o próprio sol se envergonha e, quando brilha, fá-lo quase com pavor de iluminar a terra. De manhã, aqui ao pé de casa, crianças de uma escola desfilavam ao som de uma música abrasileirada. Pais e avós olhavam embevecidos, tiravam fotografias, filmavam. E toda aquela alegria era tão triste e tão desolada, que o coração se apiedou e a razão, misericordiosa por uma vez, não se esqueceu de recordar que em breve tudo terá passado.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Enredos

As noites de domingo são lugares vazios onde qualquer coisa pode encontrar abrigo. Um sentimento, um desejo, a emoção que se escapou ao controlo feroz da razão. Por vezes, chegam memórias antiquíssimas e recolhem-se no desvão com que o fim-de-semana termina. Não sei porquê, lembrei-me da atenção com que, na casa de uns tios-avós, se ouvia no rádio, num tempo em que as televisões eram raridade, a informação sobre as previsões do estado do tempo. Isso seria quase tão importante, penso agora, como ir à missa ao domingo. Talvez estivessem interessados autenticamente no que iria acontecer, se precisariam de chapéu de chuva ou se o calor iria trazer o fogo como ameaça. Prefiro, porém, imaginá-los a registar a previsão para depois verificarem se ela se cumpria ou não, uma atitude de vigilância aos prognósticos da meteorologia. E é na esteira desta memória que entro na noite de domingo. Deixo-a trabalhar dentro de mim, tento lembrar-me das faces desses meus tios, dos seus gestos, das palavras. Silêncio e escuridão. Foi há tanto tempo que tudo isso foi rasurado e dizimado pela voragem com que a vida, como um romance, se enredou. 

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Viagens genéticas

Talvez uma parte dos meus genes tenha feito uma grande viagem, vindos de paragens setentrionais frias e pouco luminosas. Do que sei deles, não há indicação que tal tenha acontecido, mas a minha sabedoria, com tudo o que essa sabedoria tem de precário, não vai muito para além dos dois séculos. A verdade é que cheguei à janela e vi uma tarde cinzenta, sombria, a chuva a cair. Enquanto olhava com prazer para a rua, algo em mim sussurrava: esta é a tua pátria, uma terra de sombras, dias pequenos e frios. As pessoas corriam para se abrigarem da chuva e eu pensava que raramente sentia saudades dos dias de calor, dessas orgias de luz, abulia e transpiração. A chuva parou. A tarde declina e sento-me como se este lugar fosse outro, longe daqui, sem que uma ameaça de fogo sobre ele impendesse, logo que a primavera se aproxima da tormenta estival. Sabemos lá de onde vêm os nossos genes.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

A escada rolante

A semana fechou-se no escuro da noite, deslizou sorrateira para os braços do esquecimento, para o porto onde os homens, depauperados pela inutilidade dos dias, aguardam o festim do sábado, o grande baile em que dançam, dançam, dançam na sala vazia da solidão. As noites de sexta-feira são promessas que o tempo nunca cumprirá. Sento-me, cerro os olhos e deixo o pensamento vaguear. O ideal seria não pensar, parar a corrente de consciência e entrar na escuridão de mim mesmo, escutar o inaudível que uiva no âmago do corpo, aproximar-me desse silêncio que as vezes ecoa numa imagem, num gesto, na pétala de uma rosa que o vento arrasta. Na aparelhagem, um quator solta-se, inunda o ar e cai sobre mim. Também nele o silêncio ladra, penso e levanto-me. Vou jantar e logo sou arrastado pela escada rolante do tempo.