segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Ciclos de festividades

Estamos no tempo do Advento. É um tempo essencial da liturgia católica, mas que já ninguém, isto é uma hipérbole, foi-me sublinhado, faz a mínima ideia do que seja. Uma cultura pode secularizar-se, pode até tornar-se descrente e viver de costas voltadas para o núcleo de crenças que a formou, mas se perde aquilo que um dia lhe ritmou a vida, os ciclos de festividades entretecidos na vida quotidiana, então está muito doente. Vive para a escravatura. Tudo isto disse-me, na conversa de ontem, o padre Lodo. Só pensei nisso hoje, agora que a hora de almoço já passou e tenho de enfrentar uma tarde em que a realidade reivindica as suas prerrogativas, isto é, a minha participação na escravatura. Também eu perdi o ritmo que deveria pautar a minha existência. Hoje, por exemplo, passei a manhã em visitas a lojas para encher a vida de coisas cuja utilidade nos foi assinalada por um génio maligno, um diabrete ocioso e perdulário, que, sem parar, cogita a maneira de nos perder. Seja como for, muito eu gosto destas expressões que não dizem nada, o Natal com os seus presépios, árvores e restante parafernália já está montado cá por casa. Temo, porém, que sirva para pouco, caso as crianças não ponham cá os pés, confinadas na capital. O bosque da escola ao lado está exuberante nos verdes e cinzas que o compõem, enquanto um sol desmaiado semeia vestígios de luz nas paredes dos prédios. Pombos voam entre telhados e eu penso no pouco sentido de tudo o que existe, mas é apenas um pensamento provocado pela dificuldade de digestão do almoço. Talvez pudesse ter sido mais frugal, ocorre-me.

domingo, 29 de novembro de 2020

O desaguar dos domingos

Visto da cadeira do meu escritório, o domingo desliza placidamente em direcção à foz. De imediato se levantou uma discussão sobre o tipo de fozes – é um plural horrível, que nem a semelhança com vozes poupa ao escárnio – cabem aos dias da semana para desaguarem uns nos outros. Cheguei a acordo. Tudo depende. Os domingos, por exemplo, podem desaguar em delta na segunda-feira, mas que o de hoje se há-de abrir num estuário de águas negras, embora límpidas. Há pouco, falei com o padre Lodovico. Continua abatido com o confinamento, a falta dos jantares de sábado à noite. Perguntou-me o que ando a ler. Disse-lhe o Sillanpää. O finlandês, questionou como se afirmasse. Disse-lhe que sim. Não conheço, sublinhou e pediu-me para lhe ler uma passagem ao acaso. Não foi ao acaso, mas li em todas as condições sociais o tempo já vivido aparece à memória ansiosa com um solene esplendor. Interessante, há muito que noto isso, comentou. Nas confissões, continuou, não é raro observar as maiores idiotices feitas no passado envoltas nesse solene esplendor. Sempre me intrigou, acrescentou, essa luz com que o presente envolve até o mais indesejável que se foi obrigado a viver. Tenho de pensar mais nisso, concluiu. Numa das acácias da praceta restam ainda algumas folhas que tremem ao vento. Num dos ramos, um anjo medita sobre o mistério da encarnação. No céu, nuvens brancas e negras disputam a primazia. Uma rapariga sem máscara e calçada com ténis brancos atravessa a rua, e eu recolho-me, como se vivesse num ermitério. Sítio para onde deveria ter entrado há muito, caso não fossem as tentações do mundo. Escrevo isto, e alguma coisa dentro de mim desata a rir. Sempre encontrei graça nesta ideia de considerar o riso um nó que tivesse de ser desatado.

sábado, 28 de novembro de 2020

Universos paralelos

Antigamente nem me ocorreria fazê-lo, mas de há uns tempos para cá, vou a uma aldeia aqui perto, já em plena serra, comprar laranjas. Um enclave minúsculo tem um microclima que proporciona uns frutos excelentes. À beira da estrada os pequenos produtores locais vendem as suas laranjas e outras coisas que cultivam nas hortas. Hoje fui lá mais uma vez. Chovia e enquanto fazia o caminho para cá e para lá, pensava que todos vivemos em vários universos, que, sendo paralelos, possuem portais que permitem transições confortáveis entre eles. A noite caiu há muito, o dia foi invernoso e rendeu-me pouco. De lá de dentro vem um comentário, as orquídeas este ano estão malucas. Não digo nada, mas sei o que se passa. Estão prontas para antecipar a floração. Não são como eu, sempre pronto a retardar seja o que for. Não são apenas as orquídeas, contudo, que estão malucas. Também o mundo sofreu uma súbita aceleração na tontice e anda um pouco fora dos eixos. Não faltam por aí moços pimpões prontos a proclamar que hão-de pôr tudo na ordem. Depois de escrever esta frase, dou-me conta de que nunca uso a palavra pimpão e não faço ideia por que razão ela me ocorreu. Talvez os moços sejam mesmo apimponados. No telemóvel, recebo um vídeo do meu neto entregue a um jogo de colocar umas bolas de cor em buracos. Isso basta para que a noite me seja benévola.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O peso da identidade

Também eu não conhecia Frans Eemil Sillanpää, um finlandês que ganhou o Nobel da literatura em 1939. Como muitas vezes acontece, um acaso levou-me a ele e consegui comprar os dois romances que a Editorial Inquérito, há muitas décadas, traduziu pela mão de José Marinho. Tratam-se de Silja e Santa Miséria. Estou a ler este último. A personagem central, um homem um pouco lento de raciocínio, vai recebendo nomes diferentes ao longo da vida. Fiquei a invejá-lo, também eu poderia receber diversos nomes conforme os anos se fossem acumulando. Tinha várias vantagens. Diversificaria, coisa que está muito em voga no espírito do tempo. Depois, evitaria o cansaço da identidade. Ter uma identidade é um peso que chega a ser insuportável, ir tendo várias é como se não tivesse nenhuma, o que seria uma grande liberdade. A noite cerrou-se já. Acompanho com zelo o minguar dos dias, enquanto o Outono progride. Hoje dei uma volta, depois de almoço, pela praceta e ruas adjacentes. As folhas molhadas amontoam-se debaixo das acácias, os ramos parecem antenas ocupadas em captar algum sinal de vida alienígena e as pessoas são agora incógnitas sob as máscaras que as protegem dos vírus e do mau olhado. Entrei em fim-de-semana. Nesta expressão ressoa sempre uma qualquer ameaça de apocalipse, mas pode acontecer que o problema resida em mim, uma mente, além de lenta, demasiado impressionável por certas palavras. É o que faz o peso de ter uma identidade.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Algumas armadilhas

São quase cinco da tarde. Fez-se silêncio, depois dos adolescentes que frequentam o centro de línguas se terem evaporado. Um sol outoniço mostra um sorriso triste nas paredes da escola e nas copas dos cedros e pinheiros do pequeno bosque que por lá existe. As sombras, com as suas garras de seda fria, avançam sem pudor e cobrem já uma vasta superfície. Há pouco quis usar a palavra estaleiros. Não me ocorria, tentava ludibriar a memória, estender-lhe armadilhas, mas ela ganhava sempre. Desisti e googlei sítio onde se constroem navios. Gentil e afável, o Google devolveu-me estaleiro. Fiquei-lhe grato, embora a situação não fosse embaraçosa. Por vezes, acontece-me em público. O nome de um livro ou de um autor, e a minha mente é uma cisterna vazia. Comecei a evitar esse tipo de exibições. É como se gaguejasse da memória e isso é sempre perturbador e desconcertante para quem assiste. As tílias desnudaram-se por completo, e as folhas dos jacarandás começam a amarelecer. Na Sá Carneiro, os carros deslizam devagar, desolados, enquanto alguns mascarados enfrentam o Carnaval. Não tarda, e as iluminações natalícias acender-se-ão para acolher a noite com uma névoa despudorada de tristeza. Se tivesse cigarros, fumaria um. Não tenho.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Uma manhã de Inverno

Foi chuvosa e fria a manhã. Juntamente com o vento, a água despiu as acácias da praceta aqui em baixo. Por baixo delas, o chão ficou coberto de um tapete com estranhos padrões, onde se combinam, segundo o ritmo de um quadro abstracto, os amarelos, os castanhos, diversos verdes, tudo isso salpicado pelo branco do calcário dos passeios, que irrompe aqui e ali. Uma sirene uivou sobre a cidade. Anuncia a aproximação da uma da tarde, um hábito que terá ficado dos tempos em que a pequena vila vivia das indústrias que por aqui havia. Agora toda a gente trabalha nos serviços e os seus horários já não se hão-de regular com sirenes, mas pelo brilho do smartphone ou, no pior dos casos, pela pulsação do quartzo dentro de um relógio. O sol atravessa uma camada mais fina de nuvens e uma luz esbranquiçada invade as paredes dos edifícios. Navegamos já na última semana de Novembro. Não tarda e estará aí o Natal e o Ano Novo, onde se haverá de estar mais confinado do que confiado. Chegou a hora de almoço. A tarde espera-me com o seu punhal de aço inoxidável. O mais sensato será retemperar forças.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Contar ovelhas

Cheguei a casa já a noite, com as suas asas de veludo negro, tinha descido sobre a cidade. O desgosto com esta frase só pode ser ultrapassado pela contemplação das cornucópias natalícias da avenida. Olhei-as, enquanto conduzia, e elas cornucopiavam tanta tristeza que a avenida, a mais concorrida deste lugar, exalava tamanha melancolia que não cabe na exiguidade das minhas frases. Há coisas e pessoas assim. Trazem nelas mais melancolia do que aquela que cabe num dicionário e numa gramática. Não porque queiram ser melancólicas, apenas por lhes terem retirado qualquer coisa que não se sabe bem o que seja. Leio que no Utah andavam de helicóptero a contar ovelhas quando depararam com um monólito perdido na paisagem desértica e vermelha. Na verdade, não era bem um monólito, pois não era feito de pedra, mas de metal. Pergunto-me o que encontraria eu se me pusesse a contar ovelhas. Provavelmente, nada, pois não teria à disposição um helicóptero nem a paisagem desértica do Utah. Só ovelhas, um ou outro carneiro, papel e lápis. Talvez uma calculadora para me ajudar nas somas. É a desvantagem de viver na semiperiferia do mundo. Em contrapartida, quando fui levantar uns livros à lavandaria, falo a sério, comi uma fartura. Quente, nada oleosa, doce, como só uma fartura sabe ser. Bem podias comer outra e deixares-te de lugares comuns e frases frívolas, rosnou o homúnculo que habita a caverna da minha consciência. Perguntei-lhe se queria que lhe fizesse um hematoma na testa. Recolheu a penates. Como eu.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Da repetição

Chegámos então a segunda-feira. A vida é muito repetitiva, de sete em sete dias volta-se ao mesmo, até que vem o dia em que não haverá mais dias, nem semanas. Aí nada se repetirá a não ser essa repetição infinita de nada acontecer, mas nessa altura nada disso nos diz respeito. Nem a nós nem aos outros, esta é a verdade crua. A inexistência de cada um é indiferente a ele e a todos os outros. Sem excepção, sublinho. Não faço ideia por que me vieram agora estes pensamentos à cabeça. Num livro, leio que ela, sem nome, quer por prenda de anos que ele a leve à pensão, se não o corpo, o dela, explode. Tudo isto parece um bocado hiperbólico, já que muitas haverá que não são levadas à pensão e não se ouvem por aí explosões. A crer no que leio, a realidade deveria ser um teatro de guerra entre bombardeamentos e deflagrações, mas a vida desliza tranquila. Oiço a Montserrat Figueras a cantar música composta no tempo do Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão. A Figueras não voltará a cantar, infelizmente, mas nós ainda a podemos ouvir. No friso das orquídeas, a branca já lançou umas hastes e ameaça florir antes de todas as outras. Como certas pessoas, também há plantas que sofrem de hiperactividade, perdem a noção do ritmo e vão pela vida fora em acelerações e travagens sem nexo. Por mim, prefiro a hipo-actividade, deslocar-me pela travessa da lentidão, pois sempre se há-de chegar à praça do serôdio bem a tempo. A segunda-feira não me ajuda. Como se pode ler.

domingo, 22 de novembro de 2020

O tempo passa

As minhas netas estão cá a passar o fim-de-semana, mas alguma coisa mudou. Ainda há uns meses, vinham para o escritório e, em voz baixa, brincavam aos colégios, o que envolvia multiplicidade de funções e de máscaras sociais. Ora mães, ora alunas, ora professoras, ora empregadas, ora directoras, ora discutindo em que turma a filha deveria ficar, ora fazendo avisos sérios sobre que avaliações daquelas não seriam permitidas. Passavam horas assim, usando a secretária da avó, sem me incomodarem, sem perceberem o prazer que eu tinha em observá-las pelo canto do olho. Agora, esse jogo acabou. Foi levado pela trama das conversas secretas, dos risinhos sobre assuntos de natureza iniciática, pelas séries da Netflix ou pelos vídeos do Youtube. A mais velha fica a olhar para o infinito e não tarda a mais nova segue-lhe o caminho nessa procura do que está para além do que é visível. Isto prova que os dias passam, e com eles passam as semanas, os meses e os anos. Foi isso que pensei há pouco ao ver-me ao espelho. Não senti náusea ou repugnância pelo que via, apenas a constatação de que nós insistimos em fazer o tempo rodar e ele vinga-se. Há coisas, porém, que têm uma natureza eterna. O mau gosto, por exemplo. Ontem, saí à noite e pela primeira vez, este ano, tive de enfrentar as iluminações natalícias. Em duas rotundas o Menino Jesus continua a ser assado numas brasas vermelhas, sem que nenhum vereador municipal se apiede e O retire daquela inominável situação. Quanto às cornucópias da Sá Carneiro, encimadas por um crescente e uma estrela, nem sei o que possa dizer. Talvez sejam símbolos metafísicos cuja hermenêutica me escapa. A ignorância é um belo e aprazível lugar para viver.

sábado, 21 de novembro de 2020

Uma luz excessiva

Está uma bela Primavera outonal. Reverberam, nas acácias, as folhas amarelas batidas pela cintilação da luz. Na desolação em que a vida caiu, estes dias luminosos, onde o calor excessivo está proibido, cingem a vida com uma promessa maior que o desalento semeado pelo génio maligno que preside ao reino das doenças, pandemias e negócios correlativos. Quando a situação deflagrou sobre as nossas cabeças, a ingenuidade que nunca falta aos homens, perversos que sejam, pensou que seria coisa de dias, duas ou três semanas e tudo voltaria ao que estava. Passaram dias, semanas, meses, e nada voltou ao que estava. Isto não deveria ser novidade, pois nunca, mesmo nos tempos de bonança, se volta ao que estava. Um gato espreguiça-se na relva da escola aqui do lado. Estira-se, o corpo arqueado, e quase o vejo a abrir a boca. Depois, enrosca-se e logo se levanta, sacode o pêlo e entrega-se, com a língua, a abluções rituais. Talvez se imagine no Ganges, talvez seja apenas um gato sem culto nem rito e faz aquilo que o código genético lhe ordena. Da aparelhagem chegam-me as vozes de The Hilliard Ensemble e a música sacra escrita por Pérotin, magister Pérotin magnus, que nos finais do século XII e nas primeiras décadas do XIII encarrilou a música medieval em direcção à estação ferroviária da Renascença. Também naqueles dias – ditos da idade das trevas – havia luz como hoje, talvez uma luz excessiva que cegava quem para ela olhava, mas estas considerações estão-me proibidas. Não porque me façam mal, mas talvez porque eu seja um homem da Idade Média, um monge copista que se perdeu nestes dias. Ah como eram suaves aqueles tempos em que sentado no scriptorium, primeiro como livreiro e depois, já velho, como amanuense, rodeado pelo pergaminho, a pedra-pomes, a tinta e as penas, copiava lentamente os vetustos tratados da antiguidade. Depois, aterrei aqui e é o que se sabe.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Solidão solar

O dia está a chegar à colina do crepúsculo, um sol sem vontade de viver demora-se ainda uns instantes numa das paredes do hospital, depois penso sobre as palavras e ocorre-me que as haverá em maior número do que coisas para dizer com elas. Isto, todavia, é uma formulação obscura e deve ser banida do texto. Não foi uma semana fácil, mas hoje é véspera de sábado, aquele dia que, de manhã, faz parecer que todas as possibilidades estão abertas. Vieram-me à memória antigas manhãs de sábado em que, depois de comprar um maço de jornais, me sentava no café a lê-los. Muitos deles já morreram, jornais e cafés, assim como esse meu hábito. Hoje cultivo uma sóbria solidão e as coisas do mundo reverberam muito menos dentro de mim. Outrora, agora não sei, nas aldeias, os velhos sentavam-se ao sol e ficavam em silêncio. Cismavam, deitavam contas à vida, enxotavam algum cão, se se aproximava. Se alguém os cumprimentava, respondiam lentamente, como se fosse penosa a viagem entre a cisma e as regras do mundo. Um dia, desapareciam do seu lugar, deixavam de cismar e morriam com a vida revolvida naquelas horas intermináveis de solidão solar. Talvez pensassem que o sábado era eterno. Talvez pensassem no que não tinham feito. Talvez pensassem em nada.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Quase

Ocorreram-me de manhã duas coisas. Haveria de escrever sobre elas. Guardei-as na memória. Que melhor sítio do que esse para se guardar seja o que for? Não contei com um possível bug no software instalado na minha mente e o resultado é este. Não faço a mínima ideia do que me ocorreu. Por certo, não se perderá nada, mas fiquei sem assunto, embora não sofra da angústia da página em branco. Na praceta, existe um centro de línguas. Antes ou depois das aulas, os adolescentes estão por ali naquela difícil tarefa de adolescer. Eles gritam, elas trocam segredos e risinhos. Depois, ouvem-se mais gritos, uma rapariga diz é mentira, grasnam as gargalhadas, e o crepúsculo desce sobre eles mais depressa do que passa o intervalo. Num vaso, três bolbos deixam escapar outros tantos jacintos, que se multiplicam em flores, de onde se evola um perfume delicado e persistente. Olho-os e digo prefiro as orquídeas. Eles encolhem os ombros e respondem é o costume. Vejo um anúncio, de um alfarrabista, ao primeiro volume da História Universal da Pulhice Humana, do inevitável Vilhena. Asseguro desde já que o autor fez parte da minha formação. Quase tenho pena de não ter idade para voltar a ler o Vilhena. Quase.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

A dama do Tivoli

Acordei ainda bem antes do despertador anunciar que a hora de sair da cama chegara. Tinha tempo e faltava-me sono. Pego no meu leitor de livros digitais e leio um pequeno conto, umas dez páginas, A dama do Tivoli, de Knut Hamsun. Como acontece sempre com as obras deste autor, fiquei preso ao texto. Acabei de o ler e ainda esperei pela hora de despertar. Há pouco, porém, quis lembrar-me do desenlace da narrativa e ele tinha-se apagado. O que teria acontecido? Fiquei perplexo e temi que ao despertar, como acontece quando sonho, a história se tivesse diluído na minha consciência. Depois, fiquei na dúvida se teria de facto acordado e lido o conto ou se tudo isso não passava de um sonho que teimava em persistir. Agora, porém, sei que não estou a sonhar. O dia resvala veloz e esbranquiçado, uma mulher de casaco amarelo transporta um saco de papel preso ao braço, atravessa a passadeira e perde-se no lado oculto da avenida. De seguida, um homem de máscara azul caminha sem pressa, olha, atónito, para a esquerda e para a direita, enquanto os carros passam furtivos. É triste a história da dama do Tivoli, como são tristes os transeuntes que passam pela avenida, como é triste a cor do céu nesta quarta-feira. Ao menos, podia chover. Seria bom para a agricultura e ajudava a encher as barragens.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Não é bom sinal

Os dias continuam a minguar. Eu empequeneço com eles, mas quando eles, em súbita reviravolta, deixarem de diminuir, eu não deixarei de me tornar mais pequeno. A natureza, com os seus ciclos, é uma armadilha. Dá aos homens uma ilusão de eternidade para os distrair da sua finitude, desse contínuo encurtar da linha da vida. Quando, hoje, atravessei a cidade pela primeira vez, pensei que o Verão de S. Martinho se atrasara. Não é bom sinal a pontualidade falível dos santos. Algum assunto momentoso os reterá para que não cumpram a tempo e horas os seus compromissos. Nas ruas, pessoas mascaradas deslocam-se devagar, como se lhes faltasse a energia e tivessem entrado num ritmo de câmara lenta. A gravidade resplandece agora naquela parte do rosto que ainda é visível. Há notícias de surtos, alteram-se as contabilidades, há quem diga não tarda e está tudo confinado como em Março. Outros vão em silêncio ou passeiam cães à trela. Eu olho para tudo isto e penso que é terça-feira, e este foi o pensamento mais profundo que me ocorreu durante todo o dia.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Morte e ressurreição

As acácias, só de olhar para elas, eram-me ainda há dias motivo de prazer. São agora causa de decepção. Estão a outonar mal, como aquelas pessoas que, com o aproximar do fim, deixam cair o manto da dignidade com que se cobriam. Quando vier, com a sua melíflua rudeza, o Inverno destas paragens, elas, as acácias minhas vizinhas, serão apenas troncos e ramos, súplicas dirigidas aos céus, esqueletos petrificados para sobreviver ao frio. Depois, chegando o tempo ressuscitarão. Talvez tudo acabe por ressuscitar, quando chegar o tempo. Deveria evitar este tom oracular. A profecia não me coube como dom. O dia já esmoreceu, a luz abandonou a tonalidade quente com que há pouco cintilava e arrefeceu. Vai arrastar a palidez até que a noite a cubra de escuridão. Abro um livro e deparo com uma interrogação: Où allez-vous? Ora essa, aonde haveria eu de ir. A lado nenhum. Um grito lancinante corta o entardecer. Fico à escuta, mas apenas oiço o nevoeiro dos carros que passam ao longe.

domingo, 15 de novembro de 2020

O valor da paciência

Está um domingo melancólico, polvilhado de cinza, coberto por um grande véu de tule encardido. Os pombos que andavam arredios voltaram para os prédios envolventes. Não tarda, suspeito, chegarão os anjos com as suas enormes asas, cantando em coro numa língua desconhecida pelos homens. Nada do que escrevi representa uma descrição da realidade, mas como acontece sempre, um devaneio do meu espírito, caso eu tenha um. Toda a realidade, a minha, existe apenas na minha mente de narrador. Há pouco recebi uma chamada do padre Lodo. Disse-me que o confinamento o entristece, que precisa de sair à tarde e fazer o seu jantar de sábado com os amigos, o que não foi possível ontem. Quantos anos ainda terei pela frente, perguntou-me como se fizesse uma afirmação. Lembrei-lhe que a paciência é uma virtude de alta cotação que a Companhia dele deve ensinar. Deu uma gargalhada e respondeu-me que até o Lenine achava o mesmo e não consta que estivesse preocupado com o céu ou que fosse jesuíta. E os Settembrini sempre tiveram uma posição ambígua perante a paciência, acrescentou. Desligou, informando-me que tinha de ir dizer missa, mas que andava com pouca paciência para o vírus. Também eu estou com pouca paciência, não para o vírus, mas para mim. Tenho de ler não sei quantas coisas que não contribuirão nem para o meu agrado nem para a salvação de quem as escreveu. O almoço será tardio. Há uns maduros que não param de insistir que possivelmente não passamos de cérebros conservados numa cuba a ser estimulados por computador, que não há como contrariar isto. Ora, se assim fosse, eu que sou destituído de cérebro, não existiria. Portanto, o melhor é encontrarem outra narrativa que resista ao meu contra-exemplo. Ou será que este texto encerra uma contradição insanável?

sábado, 14 de novembro de 2020

Não tenho ideias, tenho desarranjos fisiológicos

Um acaso levou-me a ver um vídeo sobre a área em que cumpro a corveia que me permite enfrentar a gélida necessidade. Ao fim de trinta segundos, tinha reconfirmado que aterrei num país estrangeiro, com uma língua fruste e onde as pessoas capricham em vestir-se mal, como se isso fosse garantia para a qualidade do que fazem. Por princípio, não atento no que vestem, mas, por vezes, a exuberância do mau gosto é de tal ordem que sou obrigado a ver aquilo que evito ver. Sempre se dirá que não há correlação – utilizar esta noção estatística dá logo um ar científico à arenga – entre o que se é e a forma como nos apresentamos, que os grandes génios não atentam a essas coisas. Claro, mas não há coisa pior do que querer ter a aparência de um grande génio não porque se o seja, mas porque se imita o desleixo com que eles apedrejam os outros com a sua figura. Além do mais, o exterior nunca deixa de ser uma emanação do interior. Deveria ter apagado estas considerações, nas quais me deixei cair, talvez motivado pelo processo com que o corpo digere o almoço de sábado. Muitas das nossas ideias. Refaço, muitas das minhas ideias, se é que lhes posso chamar ideias, nascem de processos fisiológicos. Uma digestão mal feita, uma vibração indevida na batida cardíaca, um atraso na ida à casa de banho, um ataque de sono, um desvario de qualquer hormona que decida, sem me consultar, afastar-se do que é esperado e outras coisas do género de que omito, por pudor, a nomeação. Para ser honesto, eu não tenho ideias, nem pensamentos, nem argumentos, tenho apenas reacções a desarranjos no corpo. O que me aborrece, porém, é a acácia que tinha até ontem um belo fato de folhas amarelas, de um amarelo levemente torrado, a lembrar tâmaras ainda não completamente maduras, mas que impelida por algum desarranjo hormonal, se começou a despir, deixando ver uns membros raquíticos. A beleza é um exercício difícil.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O aspirador de tempo

Há uns tempos a esta parte que sinto uma distorção na realidade. Chego a sexta-feira após o almoço e aquilo que se apresente à consciência não é o fim-de-semana prestes a começar, mas uma sensação de que ele está quase a acabar. Isto não vem acompanhado por qualquer angústia, apenas pelo sentimento de que alguma anomalia existe ou na percepção do tempo ou no próprio tempo. A minha imaginação, coisa pouco confiável visto ser dada a delírios frequentes, diz que há, em qualquer parte, um buraco por onde o tempo está a ser sugado com voracidade. Dentro desse bocarra haverá um aspirador de grande potência que sorve as partículas do tempo a uma velocidade inabitual. No entanto, o melhor é o leitor não dar crédito a qualquer palavra que este narrador diga sobre este assunto. Delírios e hipérboles são a sua especialidade. A sexta-feira continua com vinte e quatro horas, cada hora com sessenta minutos e cada minuto com sessenta segundos. Esta é a realidade, mas o problema é que toda a realidade, nos dias que correm, parece sofrer de uma qualquer deformação, de um qualquer aleijão.  Por exemplo, o meu telemóvel continua a enviar-me sinais. De súbito, tive uma iluminação. É por ele que o tempo está a ser sugado. As partículas temporais entram nele e são enviadas, de imediato, para o grande buraco. Um telemóvel não é um telemóvel, mas um terminal do grande aspirador de tempo. Agora vou tomar a medicação.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O peso das coisas subtis

Há matérias tão subtis que esmagam quem com elas tem de contactar por obrigação ou dever irremissível. Não se trata desse peso que resulta da acção da gravidade sobre os corpos, mas de um outro que advém de certas coisas se furtarem aos efeitos gravíticos e se abaterem sobre espíritos preparados para a trivialidade e não para subtilezas metafísicas. Isto disse-me há pouco o meu amigo Rogélio. E continuou a diatribe, embora eu já soubesse aonde ela ia dar. Numa época onde se propagandeia que tudo é para todos, o que acontece é esmagar essas pobres almas – transcrevo as palavras dele – com subtilezas para as quais não têm vocação nem o mundo lhas exige. Isto faz dos nossos tempos uma era de infelicidade, pois a única infelicidade que existe é arcar com o peso de coisas que não foram feitas para nós. Enquanto falava, ia fumando a sua inevitável cigarrilha. Como costuma acontecer, ri-me e disse-lhe que a teoria dele tinha um aspecto que que me agradava de sobremaneira. Desligava a infelicidade do sentimento e dos afectos, e isso é uma enorme vantagem num mundo onde não há cão nem gato que não fale de afectos. Foi com esta conversa que me distraí e não vi chegar a noite. Agora está tudo escuro, na rua as pessoas parecem almas penadas, e as luzes dos estabelecimentos e da iluminação pública semeiam irrealidade sobre a minha irrealidade, sobre mim, um dos pobres que se sentem esmagados pelo peso metafísico das coisas subtis. Hoje não deveria ter escrito uma linha.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A sensatez do santo

O tempo é um animal implacável. Foi o que pensei ao ver a fotografia de uma pianista que em tempos exerceu um enorme fascínio sobre mim. O passar dos anos não teve piedade para com ela, como por vezes acontece a certas mulheres. Ou talvez a fotografia a tenha apanhado num dia infeliz. Ou, a melhor das hipóteses, estou a ver mal e confundo-me com facilidade. Para a vingar, oiço-a numa sonata para piano de Brahms, e esqueço-me do tempo, do arado que sulca a pele dos mortais, para que eles se cansem de si e da vida. Hoje é dia de S. Martinho. Antes de a pandemia nos ter trazido ao sítio onde estamos, havia por aqui perto grande feira e não pequenas romarias. Tudo em honra do Santo, mesmo as enormes bebedeiras, a estúrdia campestre e as bravatas de senhoritos que são já uma encenação museológica, embora ainda não o saibam. Confesso que gosto desses equívocos trazidos pelo passar do tempo, em que as pessoas ficam presas ao que eram e julgam-se assim merecedoras de uma distinção que ninguém reconhece ou dá por ela. Soubessem elas a verdade e talvez se rissem de si próprias. E o que é a verdade? A verdade é que não passamos de nada, vamos a cominho de lugar nenhum, onde florescem ininterruptamente ninguéns. A poeira ou as cinzas são a nossa verdade, embora o santo não descure as castanhas e a água-pé. É sensato, apesar de santo.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Experiências arcaicas

Cheguei a casa já a noite caíra. Não foi, porém, um grande trambolhão. Escorregou e, tentando equilibrar-se, segurando-se aqui e ali, estatelou-se sem se magoar, sem fazer barulho. Com ela veio a cerração e o mundo tornou-se mais secreto. Outrora, a noite era um grande mistério, uma prova iniciática. Hoje, não passa de um conjunto de pequenos enigmas que não tocam o coração nem o espírito de ninguém, a não ser por convenção. Se está muito escuro, liga-se a luz eléctrica, e os arcanos são engolidos pelos sucedâneos do dia. Num livro de poemas, leio a palavra umbral. Fico a recitá-la devagar, como o fazia quando era criança. Pegava numa palavra e repetia-a vezes sem conta, até o seu sentido se dissolver na consciência. Era um rito encantatório ou talvez tivesse já nessa época um instinto homicida relativamente às palavras. Estava a dizer que gostava muito do som umbral. Também gosto de limiar e, ainda, de fímbria. Que experiências arcaicas nos fazem gostar daquilo que gostamos? Poucas coisas sabemos, e as que sabemos o melhor seria não as saber. Aos ombros, transportamos a ignorância. Enquanto ela cresce e o seu peso se avoluma, o corpo começa a penetrar na terra e acaba por desaparecer. Devia poupar os eventuais leitores a estas derivas retiradas das memórias grotescas de um candidato à loucura perdido à porta do manicómio. O gosto pela hipérbole continua bem vivo.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A beleza, de novo

Os campos de jogos da escola ao lado estão cheios de vida. Ao sol, camisolas de múltiplas cores cintilam e, como anjos travessos, as bolas sobem e descem, partem de mãos exaustas para serem recebidas por outras, ávidas, desejosas de tocar no anjo, para logo se cansarem e o arremessarem aos ares. Então ele sobe em turbilhão, quase que se suspende naquele ponto onde as forças da gravidade e do arremesso se equilibram, para logo cair. Um raio de sol fúlgido perfura a tarde e os olhos vislumbram por instantes essa beleza infinita, que, de tão bela, seria para nós, seres decaídos, mortal. Não há coisa mais perigosa do que a beleza, não pela perversão que possa conter, mas pelo bem que a habita. Quem suportaria tal bondade sem que o coração sucumbisse? Olho para o que escrevi e penso que as segundas-feiras não me fazem bem. As acácias amarelecem e no friso das orquídeas há uma, nova em casa, exuberante na floração malva. As outras entregam-se a uma plácida hibernação, onde as folhas verdes descansam dos dias em que tinham de carregar sobre os seus ombros a beleza com que incendiavam os olhares dos circunstantes. Os campos já estão vazios, o sol declina e eu oiço o Stabat Mater, de Pergolesi. Stabat mater dolorosa… E talvez seja esta a beleza possível. Ou não.

domingo, 8 de novembro de 2020

O belo e o bom

A primeira semana de Novembro já entrou no mausoléu do passado. Embalsamada, espera que a esqueçam. Vai demorar o seu tempo, mas chegará o dia em que dela só restarão pequenos vestígios. Aquilo que nos acontece, seja o que nos alegra ou o que nos dói, possui uma intensidade espúria. Fora do nosso sentimento, praticamente ninguém nota. Está um domingo volúvel. Ora chove, ora faz sol. Temo pelo Verão de S. Martinho. Não é que seja dado a feiras e romarias, mas esse Verão parece-me benévolo e abençoado, ao contrário do outro. As notícias do mundo cansam-me, as da humanidade ainda mais. Quanto às notícias de mim próprio, a essas censuro-as. Já basta o que basta. Uma aplicação acaba de me informar que esta semana não só atingi os pontos cardio recomendados, como ultrapassei bem essa marca. Nem sei como agradecer a todas estas coisas que tanto se interessam por mim, que me controlam a saúde e o que mais lhes aprouver. Há instantes os telhados húmidos resplandeciam sob a luz solar, agora, porém, as nuvens cobriram o sol e tudo se tornou mais baço. Do bar da esquina saiu o Esteves, aquele da tabacaria. Também ele está baço. Deve ser do tabaco. As palavras são seres pouco confiáveis. Escrevi tabacaria e tabaco, logo me apeteceu acender um cigarro, sorver o fumo lentamente, intoxicar-me com aquelas substâncias que não conduzindo ao inferno, hão-de levar ao hospital. Como é belo uma pessoa sentar-se numa varanda, olhar o horizonte, beber um copo de vinho e fumar um cigarro. E com isto desminto aqueles que dizem que o bom e o belo são a mesma coisa. O Esteves continua a fumar no passeio. Por ele passa alguém que não o cumprimenta. Depois, passa outra pessoa e eu ainda oiço um olá Esteves, como vai isso? Talvez eu ande a ouvir o que não devia. Será que terei por aí algum cigarro perdido?

sábado, 7 de novembro de 2020

Uma época desprezível

Vivemos numa época desprezível, a época em que o cliente tem sempre razão. Não acordei mal-humorado, pelo contrário. Estou a reler um romance, Le Tentateur (Der Versucher), de Hermann Broch. É uma obra densa, não traduzida para português. Na edição francesa, tem mais de 550 páginas, numa letra minúscula. Quando o li há anos, a letra era bem maior. Fiz uma pesquisa para tentar encontrar uma edição mais nobre, isto é, com mais páginas e caracteres mais adequados aos meus olhos. Não há, mas descobri o comentário de um leitor, melhor de um cliente. Afinal a obra-prima inacabada de Broch é uma porcaria. Tem demasiadas descrições e meditações filosóficas que nunca mais acabam, o que estraga a história. O cliente, aquele que tem sempre razão, decreta que o génio literário Hermann Broch não sabe escrever, comete erros na narrativa. Este mundo, em que a clientela tomou conta de tudo, não passa de uma mercearia de aldeia, pouco asseada e de honestidade duvidosa. Para estes clientes, o escritor é um merceeiro que vende intrigas para distrair a clientela e amealhar uns cobres para a reforma. Omito a palavra que disse agora. Olho para a rua, esqueço o Broch e o cliente e lembro-me da minha videochamada de ontem. O meu neto, pela primeira vez, disse olá avô, e isso trouxe-me uma grande alegria. Rememoro o acontecimento, enquanto escrevo e olho a avenida. Uma mulher de máscara abre o saco e procura, em desespero, pela chave do carro. Lá a encontra, depois de o revolver, com gestos de enfado e complacência, durante minutos. Um homem ergue um braço e na mão, como uma bandeirola, ondula uma máscara batida pelo vento. De seguida, passam, sem o atavio protector, uma mãe e uma filha. Vão como se não tivessem pressa. Uma das acácias da praceta já amareleceu quase por completo e eu olho-a reverente e fascinado pela cor, enquanto dentro de mim ainda oiço olá avô e penso no livro de Broch, com aquelas letras que não foram feitas para mim. Amanhã será domingo.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

As pequenas coincidências

Nunca deixo de admirar certas perfeições que existem no calendário, como acontece hoje, em que o sexto dia do mês corresponde à sexta-feira. Pequenas e infrutíferas coincidências alegram-me e fazem-me pensar que nem tudo no mundo estará assim tão mal. Se as coincidências ainda funcionam, não se perca a esperança. Chegado aqui, o pensamento turva-se-me, pois não sei qual haverá de ser o objecto dessa esperança. A tarde desce ronronante a calçada, apesar da chuva fria e da noite próxima que traz a escuridão sobre a terra. Da janela do meu escritório olho os campos ao longe. Estão verdes, mas na verdade não é essa a cor que vejo, mas um cinzento violáceo cada vez mais escuro, como se espalhasse, pela terra, uma imensa nódoa negra. Não param as mensagens no meu telemóvel. Trazem notícias sobre um mundo delirante, tecido de pequenos nadas que têm por finalidade empequenecer a realidade. Na Sá Carneiro, os carros passam com os seus fogaréus incendiados, enquanto nos passeios húmidos, as pessoas foram substituídas pela tristeza, que caminha invisível e, a cada passo, se expande para dentro dos olhos de quem observa. Nos bares, há luzes amarelas e mortiças, e, entre o folhedo de uma tília, diviso o círculo verde que me anuncia a farmácia. Estou aqui, penso, e não sei nada acerca do que vejo, nem do que está para lá da minha visão, como se tudo se me tivesse tornado incompreensível e insignificante.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Uma tarde cheia

Bebo lentamente o café. Não uso açúcar, o gosto é intenso e o amargor que a torrefacção lhe dá explode na boca, em instantes de prazer mais longos do que seria de esperar. É possível que esta inclinação do paladar para os sabores difíceis, para aquilo que é amargo, reflicta qualquer coisa do meu carácter que prefiro desconhecer. Deste modo meditativo, entro na tarde. Anuncia-se longa, cheia de videoconferências, esses exercícios de piedade que não convertem ninguém, mas que são essenciais numa realidade que perdeu qualquer sentido do que é razoável. Durante anos vi crescer à minha volta a irracionalidade e o niilismo, como se houvesse em algum sítio cujo nome me recuso a nomear uma fábrica de fomento de entropia nas instituições. As pessoas, essas ou sofrem os efeitos sem perceber o que se está a passar, ou são agentes, quase sempre ingénuos, do processo tenebroso que estende a teia por tudo o que é lugar. Não devia escrever coisas destas depois de almoço. Podem afectar a digestão, ainda por cima estou a ganhar o terrível hábito de falar por cifras. Ontem, estava-me a esquecer, ouvi o conjunto musical da escola aqui ao lado. Imagino uns professores cuja idade se deverá omitir a tocar um arremesso de rock sinfónico. Fico feliz, não pelo interlúdio musical que me oferecem – dispenso-o de bom grado – mas por aqueles músicos. Depois, penso que talvez nem fossem eles, mas apenas uma aparelhagem a reproduzir qualquer coisa gravada numa outra época. É possível. Vivemos num tempo de simulacros. Mansamente, vou deixar a tarde deslizar sobre mim com as suas videoconferências, as suas injunções à salvação das almas que se querem perder e odeiam salvadores, os seus sacerdotes perdidos num labirinto, sem que um fio de Ariane tenham para poderem voltar à luz do dia.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Uma parábola

Sento-me e distribuo o pão pelos pobres. Cada um traz três pratos. Não pense o leitor que encho cada um dos que se apresentam à minha frente. Aquilo que cada pedinte leva cabe num único prato e as mais das vezes sobra. A caridade, porém, deve ser inovadora e abrir o leque das distribuições, pois vendo assim tanta louça à frente, o esfomeado, apesar de comer o mesmo, pensa que come mais, não tardando a comer menos, convencido de que quanto mais pratos lhe derem, maior a ração. Também o doador caridoso fica com a alma mais cheia. Chega a casa e diz à mulher, olha hoje dei três pratos de pão a cada pedinte que me cabe cuidar. Estou muito contente, a minha consciência transborda e o meu coração exulta. Ela, a mulher, pergunta-lhe, então, se endoideceu. Ele não sabe o que lhe responder. Desde quando é que te dedicas à caridade? Ele olha-a de viés e vai ver televisão. Distribuir o pão de um prato por três, multiplicado por dezenas de candidatos é um trabalho árduo e está exausto, mas orgulhoso com a sabedoria dos chefes da caridade. Os pedintes iam agora poder reflectir sobre que pão tinham mais dificuldade em comer. Bastava-lhes apontar um dos pratos e logo uma bateria de análises lhes diria a estratégia que deveriam seguir para o deglutir. Toda a gente andava feliz. Também eu estava muito feliz, mas quando acordei deste sonho pensei por que razão haveria de sonhar coisas tão idiotas. Talvez esteja na tua natureza, disse-me o homúnculo que habita na caverna da minha consciência. Pela primeira vez, estou de acordo com ele.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

O cruzeiro da noite

Cheguei aqui, ao lugar onde escrevo, já a tarde tinha sido engolida pela boca voraz do tempo. Olho pela janela do escritório, o hospital ao fundo, com as suas luzes vermelhas, amarelas e esbranquiçadas, é um cruzeiro tomado pela tristeza da doença a sulcar as águas negras do oceano da noite. As acácias da praceta, batidas pelo vento, ondulam as folhas exíguas banhadas pela tinta da escuridão. Lá em baixo, adolescentes ensaiam breves urros, num exercício de uma memória secreta que prende a humanidade a essas eras em que os homens ainda não o eram, e não havia hospitais, nem cruzeiros, nem luzes, nem quem se sentasse num escritório e escrevesse apenas porque não tem nada para dizer, apenas para ocupar parte desse tempo que medeia entre duas noites eternas, apenas porque não sabe o que fazer com a vida ou com a azáfama dos dias. Invejo os que têm uma mensagem, uma causa para viver e para morrer, um horizonte cheio de objectivos a alcançar, troféus para disputar. Como são beatos, na sua face sorridente. Sou como aquelas garrafas que alguém, não sem alarido, despeja agora no vidrão. Também eu fui despejado no mundo, uma garrafa entre garrafas que, depois de bebida, será atirada para o caixotão que a guardará até que volte ao pó de onde veio. Um carro pára, liga os quatro piscas e o amarelo que se apaga e acende vai alfinetando o veludo da noite. Num outro carro, alguém usa a buzina, e para todos estes acontecimentos não descubro linha que os cirza e com eles possa fazer uma coberta para o frio que há-de vir.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Crepúsculo e romantismo

Escrever ao crepúsculo deveria dar uma tonalidade romântica ao discurso, pensei, enquanto olhava para o céu cinzento do anoitecer. Quando penso nos grandes românticos, é sempre em paisagens crepusculares que os vejo chegar. Depois, o meu pensamento deu um salto, e vi-me internado num hospício. Tinha enlouquecido e, para defesa da sociedade, fora compulsivamente internado. Uma nova acrobacia e esqueço-me dos românticos e da minha loucura, e os meus olhos fixam-se na mulher que passa na praceta. Perscruto-lhe o rosto sob a máscara azul. Os olhos são promissores, belos e profundos, há neles sombras douradas sobre florescências de verde. Poderia apaixonar-me por aqueles olhos. Oiço-me dizer: quais olhos? Os daquela mulher, respondo. Não sejas idiota, ninguém, onde estás, consegue ver os olhos de quem passa lá em baixo. Comecei a pensar que talvez já estivesse internado no manicómio. Tenho delírios e visões, falo comigo mesmo. À minha frente, uma reprodução de um quadro de Caspar David Friedrich, pintado nos anos trinta do século XIX. Um homem caminha, perto da floresta, de cabeça curvada ao crepúsculo. Vai pensativo. Aquela figura não me é estranha e, de súbito, sinto uma grande vontade de falar com ele. Entro pelo quadro e persigo-o. Chamo-o, mas ele finge não me ouvir. Aproximo-me e torno a chamá-lo, ele volta-se para mim e descubro que aquele homem sou eu perdido num anoitecer de um século acabado há muito.

domingo, 1 de novembro de 2020

Todos-os-Santos

Já passavam das quatro da tarde quando me apercebi de que estávamos no mês de Novembro, no dia de Todos-os-Santos. Sempre achei espantosa esta solução para a difícil questão da celebração de cada um dos santos, tantos devem ser que não há calendário litúrgico que tenha dias disponíveis para acolher tal profusão de santidade. Não fora a minha vontade ser fraca, também eu haveria de trabalhar para fazer parte dessa legião que hoje se celebra. Seria um santo anónimo, que ninguém conheceria, mas se alguém visse uma estátua minha numa Igreja, haveria de ler na dedicatória: ao santo desconhecido. Mais tarde, começariam a dizer que era um santo anónimo. Passados mais alguns séculos, haveria o culto do Santo Anónimo. Seria eu, sem que ninguém o soubesse. Eu, da humildade da minha santidade, distribuiria as graças que me fossem dadas e também broas, daquelas de que muito gosto, e se fosse o caso e mo pedissem, um belo copo de tinto. A vontade, porém, é fraca. Não tenho inclinação para o jejum e outras práticas que conduzem directamente à glória dos altares, mas que tenho pena, lá isso tenho.