domingo, 26 de setembro de 2021

Inutilidades e aparências

O último post, neste blogue, foi publicado exactamente há duas semanas. Têm sido umas ricas férias. Não férias efectivas, mas um descanso de vir aqui todos os dias debitar inutilidades. Ora, quem tem propensão para o inútil, e esse é o meu caso, pouco consegue resistir a tentação de o cultivar. Terá o mundo mudado durante estas duas semanas? Eis uma questão completamente inútil. Claro que mudou e ainda mais claro que tudo continua na mesma. Andamos neste impasse há mais de dois milénios e meio, e ainda não encontrámos maneira ou modo de resolver a pendência entre o eleata Parménides e o efésio Heraclito. O melhor é venerar os dois, o que dará a aparência de erudição e ostentará um gosto pelo paradoxo. Importante é manter as aparências, pois não se sabe se sob elas existe alguma coisa. Há aquela história de o rei ir nu, embora toda a gente o visse com as mais belas roupas. Seria mais dramático, porém, se toda a gente comentasse a roupa do rei, depois outros afirmassem que ele ia nu, mas na verdade não existisse qualquer rei, vestido ou nu, nem outra pessoa, animal, planta ou coisa. Conclusão: mantenham-se as aparências pois são as únicas que sabemos existirem. Há no pavilhão da escola ali ao lado uma grande azáfama. Convocados às urnas, os eleitores para lá se dirigem para cumprirem o seu dever cívico. Também, não tarda, o irei fazer, embora a viagem não seja longa, pois, sentado na minha secretária, só não vejo as mesas de voto devido à existência de paredes exteriores no pavilhão. O mundo há-de conter sempre alguma imperfeição.

domingo, 12 de setembro de 2021

Viajar

À maneira de Xavier de Maistre – isto é, sem sair de casa, ora sentado no escritório, ora recostado na cama – continuo a descer o Danúbio na companhia de Claudio Magris. Tenho estado em Viena. A última visita, por volta das sete da manhã, foi ao complexo de habitação social denominado Karl-Marx-Hof, concebido pelo arquitecto Karl Ehn e inaugurado em 1930. Não é apenas o estilo arquitectónico – Arte Déco – que espanta, mas o facto de os 1382 apartamentos destinados a famílias da classe operária terem, desde a origem, a sua casa de banho privada, pelo menos foi isso que espantou não Claudio Magris, mas o autor da entrada em língua portuguesa da Wikipedia referente ao complexo. A minha leitura da obra de Magris segue por caminhos muito tortuosos, que têm o condão de desperdiçar muito do que está escrito. Uma leitura virtuosa seria fazer a viagem narrada no livro, acompanhando-a passo a passo, o que permitiria registar com precisão aquilo que o tempo fez aos espaços visitados e descritos pelo escritor triestino. Passados 35 anos da publicação da obra, alguma coisa há-de ter mudado. Talvez isso desse um novo livro. Para aqueles que não têm possibilidade de fazer a viagem com vagar que ela exige ou que não gostam de viajar, a leitura deveria ser feita com um acesso permanente à internet, para ir se consultando tudo o que o escritor refere. No fim, ter-se-ia compilado uma pequena enciclopédia. O que me vale é que não sou lá muito virtuoso e, ainda por cima, intercalo essa leitura com outras, num exercício de infidelidade contumaz. Ao mesmo tempo penetro na vida das personagens de O Milagre Segundo Salomé, de José Rodrigues Miguéis, e no coração inquieto de Delphine, protagonista do romance epistolar homónimo, de Germaine de Stäel-Holstein, mais conhecida como Madame de Stäel. Um dia destes, talvez, fale sobre esses livros, caso não me esqueça ou esteja para aí virado. Hoje é domingo, dia de almoço tardio, mas que não será de pleno descanso. Há uma série de coisas a fazer, para tranquilizar a realidade e mostrar-lhe que a sirvo com dedicação. Aparente, mas não há outra essência senão a aparência. Cultivemo-la.

sábado, 11 de setembro de 2021

Descontinuações

Por aqui, o calor voltou, veio menos dramático, mais dado à fleuma, do que antes. A luz solar está mais amarelada, como se o Sol fosse um enorme vegetal cujas folhas começam a apresentar sinais de maturidade. Tive de ir às compras e estou decepcionado com a longa ausência das prateleiras de um certo chocolate que combina o cacau e o piripiri. Omito a marca, na verdade havia por aqui duas marcas, uma nacional e outra estrangeira, que tinham essa combinação no catálogo. Talvez o tenham descontinuado, coisa que, nos tempos que correm, acontece muito. Ninguém deixa de fabricar seja o que for, apenas descontinuam o produto. Assim, os seres vivos que morrem não morrem, são descontinuados pela vida. Este tipo de linguagem irrita-me. Os trabalhadores foram descontinuados. Agora só existem colaboradores. Noutros tempos existiam colaboracionistas, mas sobre isso omito o comentário. Também há palavras que me irritam. A mais recente é resiliência. Estou cansado de tanta gente resiliente que desaba ao primeiro choque com a realidade. A espécie humana tem uma inclinação natural para o fetichismo e nunca perde a oportunidade de transformar uma pobre palavra, que não passa de uma curta emissão de ondas sonoras, um flato vocálico, num fetiche. Estou convencido de que se os seres humanos se contivessem na emissão de palavras, os gases com efeito de estuda poderiam diminuir na atmosfera. Como tenho dito, sou dado à hipérbole, embora me falhe a ironia. Para isso teria de ser inteligente. Ora, não é esse o caso. Que saudades do chocolate negro com chili. A vida está sempre a descontinuar-se. É pena que não descontinuem a resiliência.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Louvor da ignorância

A vida é feita de coisas muito variadas, entre elas a própria morte. Hoje morreu um antigo Presidente da República. O que não se sabe é se não terá nascido outro, aquele que o futuro espera para ocupar o cargo. A incapacidade humana para saber o futuro é o que permite uma vida suportável. Se o que há-de vir fosse acessível, a existência dos homens tornar-se-ia um inferno. Viveríamos como condenados à morte à espera do dia da execução. A ignorância salva-nos e abre a possibilidade de uma vida aprazível. Talvez aqueles que se empenham em predizer o futuro sejam verdadeiros amantes do inferno. Vale-nos o porvir ser um animal esquivo, um bicho que se furta a armadilhas e capturas. Sobre o Presidente morto não falo, pois, enquanto narrador, estou proibido pelo autor. Ele lá terá as suas ideias políticas, mas criou-me destituído delas. Posso falar, todavia, da ignorância. A partir de certa altura da história da humanidade, a ignorância foi vista um dos piores males que afligiam a nossa pobre espécie. Esta é uma visão unilateral. Como em tudo, também na ignorância há um bem. Todos seriam mais felizes se ignorassem certas coisas. Viver inocentemente no desconhecimento de certos factos pode ajudar não só a uma vida melhor como mais longa. O excesso de informação inútil é um produto tóxico e, como se sabe, as toxinas não fazem bem ao frágil organismo que, devido a um terrível esquecimento de Epimeteu, nos calhou em sorte.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Transposições

Fui pôr o carro a lavar. O pobre coitado tinha poeira acumulada de várias eras geológicas. Tenho uma relação meramente instrumental com os carros e não lhes dedico mais que o cuidado estritamente necessário. Se na adolescência automóveis e o automobilismo me fascinavam, a realidade agora é bem outra. Seja como for, é preciso que aquela coisa tenha uma apresentação mínima. Enquanto ele era aspirado, mangueirado, ensaboado e colocado numa máquina de tortura, aproveitei para dar um salto a uma FNAC. A ficção científica é um tipo de literatura que, ao contrário, do romance policial, nunca me atraiu. Tendo visto ontem o filme Solaris, do realizador russo Andrei Tarkovsky, decidi comprar o romance que lhe deu origem, do polaco Stanislaw Lem. Consta que este é um génio literário. Tenho medo, porém, de achar que o livro não está à altura do filme. Apesar de romance e cinema serem ambos géneros ficcionais narrativos, não é fácil a transposição de um lado para o outro. Alguns casos, porém, o filme pode ser muito melhor que a obra romanesca que lhe deu origem. Além disso, eu tenho uma visão enviesada. Tarkovsky faz parte do meu top três de realizadores de cinema, para usar uma metáfora desportiva. Os outros são o japonês Akira Kurosawa e o sueco Ingmar Bergman. Como diria alguém que eu conheço, só gente chata. Não é, mas se forem, então estão adequados à minha natureza. Também eu sou um chato. O carro saiu muito lavado, mas, mal chegou à rua, desabou-lhe o céu em cima. Vou ler o romance do Lem. Quando acabar, talvez compre a adaptação cinematográfica feita, em 2002, por Steven Soderbergh, esse mesmo que realizou Sexo, Mentiras e Vídeo.