Descubro, com a prestimosa ajuda de Alexander Kluge, que Theodor Adorno, em carta escrita a de 2 de Agosto de 1935 para Walter Benjamin, afirmou o seguinte: Chaque époque rêve la suivante. Estas frases nunca deixam de ser fascinantes, mas o fascínio é um exercício de cegueira. Poder-se-ia perguntar quais as provas que Adorno tem do que afirma. Se isso fosse verdade, bastaria descobrir o que sonha cada época para saber o que virá a seguir. O pior é que as épocas não sonham e os homens, que nunca deixam de sonhar, sonham com coisas tão diferentes que, caso o dito de Adorno fosse verdadeiro, a época a vir seria não uma, mas múltiplas épocas, em conformidade com os diversos sonhos existentes na época anterior. Este tipo de afirmações revela que os homens, mesmo os mais racionais, estão sempre dispostos ao augúrio. Seja no voo das aves, seja nos sonhos dos indivíduos ou das épocas. Existe um inconformismo com o facto de o futuro estar oculto por uma espessa e intransponível muralha. Este narrador está convencido do contrário do que afirma Adorno. Nenhuma nova época se reconhece nos sonhos da anterior, achá-los-á sempre descabidos e, irremediavelmente, presos ao mundo que acabou. Se por acaso as épocas sonhassem, não sonhariam o mundo do futuro, mas o do presente, a do seu presente. O que nos vale, porém, é que as épocas não sonham.
sexta-feira, 9 de junho de 2023
quinta-feira, 8 de junho de 2023
Encarnações
Por quantas encarnações passa uma alma? Ora, não se pense que este narrador se tornou adepto da teoria da reencarnação. Por encarnações entende-se as várias faces, ou máscaras, que, ao longo da vida, uma pessoa vai usando. Nada de transmigrações, apenas metamorfoses. Será que eu sou a mesma pessoa do que aquela que eu era há vinte anos. Tenho dúvidas. Estas meditações foram desencadeadas por uma súbita nostalgia que me pôs a ouvir coisas que eu ouvia noutra encarnação. A nostalgia, porventura, será um sintoma de que sou a mesma pessoa, mas talvez não seja prova suficiente para me convencer. O dia está triste e ventoso. Um sol anémico, alguns chuviscos. Entrego-me a meditações silenciosas. Na verdade, não são meditações, mas antes ruminações e cismas. O pensamento vai correndo, embora, como um bom ruminador e um ainda melhor cismador, não chegue a lado nenhum. Os meus argumentos nunca têm conclusão. E se por acaso encontro alguma conclusão, ela é destituída de premissas. A música parou. Vou deixar a nostalgia dissipar-se e recuperar aquilo que sou nos dias de hoje. O passado é uma sombra pesada, um país estrangeiro em que, acredito, nunca vivi.
quarta-feira, 7 de junho de 2023
Não jogo aos dados
Estava a preparar-me para o feriado de amanhã quando me deu o sono. Tive de fazer um grande esforço para não interromper a preparação. Estas coisas têm de ser levadas a sério. Nunca se deve entrar por um feriado dentro sem o devido planeamento, antecedido por um período mais ou menos longo de deliberação. Há quem dê valor ao improviso, defenda que a vida se deve enfrentar com tudo aquilo que tem de inesperado e inquietante. Na verdade, desculpas de mau pagador de quem gere a existência segundo o princípio de incerteza de Heisenberg. Eu sei que o princípio de aplica nos domínios da mecânica quântica, e só neles, um lugar pouco recomendável para pessoas de bem. Contudo, ao falar dele, sempre posso aparentar erudição, e as aparências são a realidade de quem é, como este narrador, destituído de essência. Não me vou pôr aqui a falar de posições e momentos lineares, do facto do crescimento da certeza de um implicar o aumento da incerteza do outro. Não falo disso, em primeiro lugar, porque não sei nada sobre o assunto. Depois, porque não vem ao caso. Aqui defende-se tudo o que é certeza, mesmo que seja a mais estúpida, e procura-se com denodo a sua certificação. Se Deus não joga aos dados, como afirmou Einstein, seria eu que iria jogar aos dados com um feriado, ainda por cima dia santo? Não sou assim tão estulto, embora, não raras vezes, o pareça. Vou continuar a preparar o feriado de amanhã.
terça-feira, 6 de junho de 2023
O mais decisivo
Junho não é um mês fácil, embora tivesse a obrigação de o ser. Deveria entregar-se a amenidades, longe do furor estival e esquecido das intempéries invernosas. A prova de que estamos numa era negra manifesta-se no comportamento dos próprios meses, no esquecimento ostensivo dos seus deveres, da sua desatenção a todos os imperativos a que se submeteram na origem dos tempos. Quando foi altura de arranjarem um lugar no calendário, comprometeram-se a tudo e a mais alguma coisa. Agora, é o que se vê e o que se sente. E não há quem ponha o calendário nos eixos. Temo que nem um astuto Ulisses, tão devotado aos ardis mais inconcebíveis, teria poder para pôr os meses nos eixos ou nos carris, caso se prefira a metáfora ferroviária. Enquanto escrevo estas lamentações tão cheias de trivialidades, não paro de bocejar. Se dou sono a mim mesmo, o que não farei aos outros? Em resumo, sou um chato e talvez essa seja a minha principal característica. De lá de dentro vem um diálogo sobre propriedades matemáticas, diálogo a que minha pobre neta tem de se submeter, apesar dos mais de cem quilómetros de distância. Esta coisa das videoconferências é uma chatice, pensará ela, enquanto boceja e tenta resolver um exercício. Ora, não fora um maçador inveterado, escreveria coisas como estas: Então, sorrindo, abriu a sua bela braguilha e, levantando no ar o seu membro, mijou para cima deles tão energicamente que afogou duzentos e sessenta mil quatrocentos e dezoito. Sem contar com as mulheres e com as criancinhas. Como sou o que sou, tive de deixar isto para o senhor Rabelais, o qual deu bem conta da tarefa. Diante de mim tenho um livro que é uma longa entrevista a um amigo meu, um amigo de há mais de quarenta anos. A certa altura ele diz: Platão ainda me desafia, continua presente… e delicia-me enquanto leitor! Uma grande parte da filosofia como a conhecemos é franchising de Platão, se é que não é toda. O que torna duas pessoas amigas é o facto de coincidiram naquilo que é decisivo. E Platão é, atrevo-me a dizê-lo, aquilo que é mais decisivo na tradição ocidental, e não apenas na filosofia. Um vento de noroeste atravessa Junho e eu penso numa grande baía onde pequenos veleiros deslizam à procura do porto do crepúsculo.
segunda-feira, 5 de junho de 2023
Enigmas
Sento-me para ver a Primavera passar, mas um calor lúgubre cai sobre o corpo, a pele parece estalar. Se viesse chuva e trovoada, tudo melhoraria, ouvi há pouco, quando, na rua, me escondia do sol. Retornado a casa, paro diante das orquídeas. Apenas uma ainda não floriu, mas já não faltará muito. O que não sei é se será possível estarem todas floridas ao mesmo tempo. As temporãs começam a ter dificuldade em segurar as flores, que têm um ar tristonho, um semblante que anuncia a queda iminente. A língua, qualquer língua, é uma coisa extraordinária. Veja-se a distância semântica que vai de iminência a eminência. Troca-se uma vogal e tudo muda. Talvez isso se passe em todas as coisas. Imagine-se uma equipa de um desporto qualquer. Troca um jogador e a realidade passa a ser outra. Pensa-se na língua como instrumento de expressão, mas ela também é, no seu conjunto, um símbolo do mundo, a sua estrutura reflecte a estrutura desse mundo. Todo o mundo se encontra em qualquer língua. Podemos pensar, talvez sem errar, que qualquer coisa no mundo pode ser o símbolo desse mundo. Jorge Luís Borges dá-nos, num conto denominado Aleph, uma visão restrita desta simbolização. Haveria um ponto do espaço, por acaso, em Buenos Aires, que abarcaria toda a realidade do universo. Ora, podemos ir mais longe e pensar que qualquer coisa ou ponto do universo contém a totalidade do universo, mesmo um habitante da mais recôndita província ainda traz consigo esse universo. O que é espantoso é que não sinta o peso que transporta. Este será o enigma dos enigmas, que nem o calor mais sinistro poderá apagar.
domingo, 4 de junho de 2023
Da perfeição
Acabei de ler, durante a insónia desta última noite, o romance de Heinrich Mann, o irmão mais velho de Thomas Mann, Professor Unrat ou o Fim de um Tirano. É um excelente romance e prova provada de que o génio dos Mann não recaiu apenas em Thomas. Não encontrei mais nenhuma obra de Heinrich traduzida para português, apesar da sua produção ter sido considerável. Talvez alguém se lembre de dar continuidade à tradução das suas obras. Os livros de Heinrich foram queimados pelos nazis, quando ele já estava fora da Alemanha. Passou por Portugal a caminho dos Estados Unidos. A tradução portuguesa de Professor Unrat contém múltiplas informações sobre o escritor, desde as relações tensas com o irmão Thomas, que acabaram em reconciliação, até à notícia do suicídio de duas irmãs Mann. Este tem sido um belo domingo, entregue ao não fazer nada, a mais nobre das ocupações, aquela que é um sintoma da perfeição, num mundo repleto de imperfeições. Isto não significa que aquele que entra na casa do não fazer nada é um ser perfeito. Não, não é, mas reconhece que a perfeição reside não na azáfama que tomou conta do mundo, mas nessa imobilidade que imita o motor imóvel, para retomar, de novo, uma metáfora proveniente do velho discípulo de Platão. Agora, enquanto nada faço, tenho de decidir qual o romance que irei ler nesses longos minutos de insónia.
sábado, 3 de junho de 2023
Problemas de linguagem
Troveja, relampeja e choveja. Bem, choveja era uma ideia para rimar, mas não se pode rimar por dá cá aquela palha. O Word anda a ter lições de erudição. Não gostou que tivesse usado a expressão ‘dá cá aquela palha’, sublinhou-a, em estilo pontilhista, e propôs a substituição, sem se rir, por ‘um motivo fútil’. A realidade é que tem estado a chover copiosamente, enquanto se ouve e vê nos céus a ira de Zeus, num espectáculo multimédia, com laivos realistas. Voltemos ao ‘dá cá aquela palha’. O processador de texto achou-a linguagem informal, apelando a uma mais formal. Pergunto-me quem andará a educar o Word. Vivemos num mundo informal, se não mesmo informe, logo a linguagem deve estar de acordo com o mundo. Só assim ela será capaz de o exprimir. Imagine-se que eu escrevia ‘mas não se pode rimar por um motivo fútil’. Logo se pensaria que tinha enlouquecido e que agora me tinha entregado a uma linguagem pomposa, empolada, que eu sofria, além de outros males físicos e morais, de afectação, e sabe-se lá mais de quê. Com esta conversa mole, Zeus abrandou a ira, a chuva deixou de cair, entre as nuvens avista-se, agora, pedaços azuis do céu, e o Sol, escondido atrás de uma nuvem esbranquiçada, envia uma luz porosa que cai sob a copa das árvores e as retira da cinza em que tinham caído, permitindo-lhe verdejar diante dos meus olhos. Gosto de espreitar as primeiras frases de um livro, talvez seja uma espécie de voyeurismo, mas já é tarde para abandonar o vício. Diante de mim tenho um que começa assim: A 13 de dezembro de 1880, cêrca das onze horas da manhan, era enorme a affluencia de gente na pequena povoação de Paardekraal, situada proximo de Heidelberg, cidade do Transvaal ou República da Africa do Sul. Esta era a ortografia ainda em vigor no ano de 1905, uma ortografia monárquica, ou que a monarquia não conseguira destruir, apesar de o ter tentado, com o álibi da simplificação, coisa em que a república foi mais bem-sucedida. Não me interessa muito saber as razões que levaram àquela afluência inusitada numa aldeola do Transval, nem o motivo por que um escritor português, Eduardo de Noronha, dedica um romance, O Extermínio de um Povo, ao assunto. Basta-me contemplar aquelas palavras que os simplificadores decidiram exterminar. Tens de te decidir, vociferou o homúnculo que vive na caverna da minha mente, se és adepto da escrita ao gosto popular ou da velha escola armada em erudita, cheia de consoantes mudas. Encolhi os ombros. Não há paciência para idiotas, pensei. Voltou a chover, mas não troveja.
sexta-feira, 2 de junho de 2023
Santa ignorância
Há coisas que os homens nunca deviam saber. Veja-se por exemplo o seguinte: O rei Uther Pendragon, governante de toda a Grã-Bretanha, estava em guerra havia muitos anos com o duque de Tintagil na Cornualha, quando soube da beleza de Lady Igraine, a esposa do duque. Eis uma novidade desnecessária a um rei. Nunca se sabe quão funestas são as consequências que um conhecimento arrasta atrás de si. Não se pense, porém, que este caso é original. Basta recuar ao paraíso. Também o saber que Eva adquiriu era desnecessário e as consequências dessa sabedoria são aquelas que todos experimentamos. Até o mais extremo e radical dos ateus sabe pelo menos uma coisa. Mesmo que nunca tenha existido um paraíso originário, nem um Adão, nem uma Eva, nem uma árvore do conhecimento, as consequências do acto de Eva e de Adão são absoluta e incondicionalmente verdadeiras. Alguém interessado em discussões estéreis perguntará de imediato como é que um efeito pode existir e ser verdadeiro, sendo falsas as causas. Uns rudimentos de lógica dão a chave para o mistério. Imaginemos a seguinte proposição condicional: Se existiu um paraíso e nele havia um casal humano (Adão e Eva) criado por Deus, que se deixou tentar e comeu o fruto proibido, então os seres humanos tornaram-se mortais, têm de trabalhar e tudo o mais que lhes acontece a cada dia. Se a proposição antecedente, a que vai do ‘Se’ até ao ‘então’ é falsa, a consequente, a que se segue ao então, é verdadeira. Logo, a proposição condicional é verdadeira. Se Eva não tivesse curiosidade em saber ao que sabia o fruto da árvore do conhecimento, também Uther Pendragon não saberia da beleza de Lady Igraine, e o mundo seria um lugar mais respirável. E assim entro na parte final desta sexta-feira. Há uma trovoada seca, a atmosfera está irrespirável e este narrador, sem apetite para os deveres que tem pela frente, ouve os Gurre-Lieder, de Arnold Schönberg.
quinta-feira, 1 de junho de 2023
Designações
quarta-feira, 31 de maio de 2023
Em louvor da convenção
Maio, maduro Maio. Amadureceu de tal modo que está a cair de podre. A frase não é particularmente imaginativa, mas tem uma dupla vantagem. Assinala a efeméride, o fim do mês, e abre este texto, para o qual não me ocorria ideia alguma. Também poderia escrever o seguinte: Todos cantaram, dançando: / - Maio está morto! Viva Junho! Viva o novo mês! Isso , porém, seria apropriar-me de um excerto de Irène Némirovsky, que no romance Dois escreveu: Todos cantaram, dançando: / - 1920 está morto! Viva 1921! Viva o novo ano! O problema não seria tanto o plágio, mas a falta de força do escrito, do deste narrador. Uma coisa é comemorar a passagem de ano, outra bem diferente é a de assinalar a transição de um mês para o outro. Do ponto de vista físico, a realidade é exactamente a mesma, mas na perspectiva da psicologia colectiva são coisas absolutamente diferentes. Uma convenção, dir-se-á. Sim, uma convenção, mas nós seres humanos somos o que somos também porque existem convenções. Quando se é adolescente ou pós-adolescente é-se anticonvencional, mas esse sarampelho passa com idade. Se, para infelicidade da pessoa, se torna crónico, então é melhor consultar um médico da especialidade. Isto significa que este narrador é profundamente convencional e não se espere dele nada mais do que convenções e trivialidades. Se alguém estiver interessado em vanguardas, então está no pior sítio para as encontrar. Aqui não se marcha para a frente, mas também não se recua. Aqui é o lugar da pura imobilidade. Mais quieto só o motor imóvel, o qual, apesar da imobilidade, faz mover o mundo.
terça-feira, 30 de maio de 2023
Palavras
Um dilema. Deixemos de lado os calendários digitais e concentremo-nos nos de papel. Que tipo será preferível? Aquele em que as folhas dos meses estão presas num sistema de argolas e que, acabado o mês, se faz girar a folha para trás ou os que exigem que a folha seja arrancada e deitada fora? São duas concepções de tempo diferentes. Na última, o tempo é visto como linear, esgotando-se para toda a eternidade. Na primeira, porém, subiste um sintoma do tempo cíclico. Ao fazer rodar a folha para trás, fica-se com a impressão de que ela acabará por voltar, numa cadeia interminável. É uma ilusão como todos sabemos, pois, acabado o ano, o calendário não volta ao Janeiro que passou, mas é deitado fora e substituído por outro, com um Janeiro novinho em folha. No entanto, uma ilusão pode ser bem mais do que um erro cognitivo. Pode ser um sinal de que a sensação de um tempo linear que se devora a si mesmo está incrustada no eterno retorno do mesmo. Nos dias que correm, as pessoas estão muito preocupadas com a vexata quaestio da verdade. Uns porque não suportam a sua luz e querem apagá-la, outros porque desejam que ela brilhe mais intensamente. O núcleo do drama reside nas palavras. Com elas podemos fazer quase tudo, inventar ou apagar problemas, estabelecer as mais inusitadas relações, produzir as meditações mais levianas, como a das folhas do calendário ou outras que se propagam nestes textos, cujo núcleo central é o disparate em forma de pensamento. Nos anos setenta, havia uma canção interpretada por Alain Delon e Dalida. A certa altura, ela dizia: paroles et paroles et paroles. Ora, se me falta uma filosofia para tratar do assunto, há sempre uma cançoneta, daquelas que passavam na rádio, perdida no fundo negro da minha memória que explica aquilo que há a explicar. Palavras, leva-as o vento.
segunda-feira, 29 de maio de 2023
Questões climáticas
Isto anda mal. Por isto refiro-me à imaginação. Parece estar pouco disponível para encontrar tema para esta narrativa. Resta-me falar do clima. Por aqui chove e chove desde a manhã. Aliás, já chovia quando ainda não tinha despontado a aurora de róseos dedos, pois acordei às tantas da noite e ouvi aquilo que me pareceu ser chuva. Até o assunto do clima se esgota rapidamente. Talvez seja essa a medida de todas as coisas humanas, esgotarem-se demasiado depressa. Sim, eu sei, há coisas que parecem nunca ter fim. Isso, porém, não passa de uma aparência e nem tudo o que parece é, como sublinha a sabedoria popular. Por desfastio, estou a ouvir uns quintetos com piano, de João Domingos Bomtempo. Ora, a questão climática persegue-me mesmo na música. Logo o homem haveria de se chamar Bomtempo. Por aqui, há uma família conhecida como os Má Tempo, assim mesmo. Não consta que tragam mais tempestades e ciclones do que qualquer outra família. Estes nomes são um mistério. Aliás, tudo é um mistério e o que não nos parece ser misterioso deve-se apenas à habituação do olhar. De tanto vermos uma coisa, pensamos que a conhecemos. Isso, porém, é uma armadilha que as coisas lançam e nós caímos nela. Elas querem repousar descansadas, temerosas das nossas indagações, então deixam que criemos ilusões sobre o nosso conhecimento. Quando estamos distraídos riem-se de nós. Se ficamos atentos, fingem-se de mortas, o que é sempre uma boa solução.
domingo, 28 de maio de 2023
Da estupidez
O último ensaio do livro Ensaios, de Robert Musil, não é bem um ensaio, mas o texto de uma conferência proferida em Viena, no dia 11 de Março de 1937, com o título Über die Dummheit, Da estupidez, na tradução portuguesa. Eis um tema sobre o qual sou versado e sou-o de uma forma decisiva, isto é, de uma forma prática. Não se pense, porém, que me reconheço como estúpido. Impossível. A prática vem de pensar muito no assunto, como se verá na sequência. Todos nós, seres humanos, estamos convencidos de que estamos rodeados pela estupidez, mas pela estupidez dos outros. Se se fizer um inquérito, por maior que seja a amostra, não se encontrará um caso que seja de alguém que se reconheça como estúpido. Isto conduz-nos a uma primeira conclusão, a estupidez é sempre um problema dos outros. Nenhum eu tomará a palavra e dirá: eu sou estúpido. Se o bom senso, no dizer de Descartes, é a coisa mais bem distribuída no mundo, pois não há quem queira ter mais do que aquele que tem, a estupidez, pelo contrário, é a coisa que mais está em falta nesse mesmo mundo, pois não há ninguém que não reconheça estar desapossado dela, de ser um miserável no que toca à estupidez. Portanto, a estupidez é um problema dos outros pronomes pessoais. É um problema do tu, do ele e do ela, do vós e do eles e do elas. Só as primeiras pessoas, do singular ou do plural, não são estúpidas. Se o fossem como poderiam ser primeiras pessoas? É sabido que aquilo que faz com que uma primeira pessoa seja primeira, mesmo na região etérea da gramática, é a ausência de estupidez. Alguém poderia objectar que não é certo que um nós não contenha um conjunto de estúpidos. Um nós resulta da junção de vários eus. Ora, se não há nenhum eu que seja estúpido, aonde é que um conjunto de eus iria buscar a estupidez? A nenhures. Um problema prático. Muitas almas cheias de boa-vontade costumam perguntar sobre como erradicar do mundo a estupidez, coisa de estão desprovidas, mas que sabem existir ao seu redor. Eu tenho uma solução, embora desconfie que quem me poderia auxiliar nessa gesta gloriosa não esteja disposto a fazê-lo. Bastaria reduzir os pronomes pessoais às primeiras pessoas do singular e do plural. Não havendo nem tu, nem ele, nem ela, nem vós, nem eles, nem elas, também não haveria estupidez. Haverá, porém, algum gramático com alma de redentor do mundo disposto a abolir esses malfadados pronomes pessoais? Desconfio que não, ou não fora ele um estúpido ele.
sábado, 27 de maio de 2023
Mar da vulgaridade
A manhã passada em trivialidades, daquelas que compõem a vida e que sem elas, esta não seria possível. Imagino que o programa existencial produzido para gerir a vida humana ache relevante que a maior parte da curta existência que cabe a cada um seja gasta em banalidades. Talvez não suportássemos ter sido feitos de outra forma. Não conseguiríamos viver, ou mesmo sobreviver, num mundo onde a vida fosse composta por singularidades, extravagâncias e originalidades. Cairíamos por terra logo ao segundo assalto. Vistas assim as coisas, faz sentido que mergulhemos no mar da vulgaridade e orientemos o frívolo barco da nossa existência por essas ninharias que compõem o quotidiano. Comprar pão, beber café, mandar lavar o carro, comprar peúgas ou uma caixa de cerejas, com a qual se foi trivialmente enganado. Caixas de diversos preços e calibres. Compra-se uma de maior calibre, paga-se mais. A realidade, todavia, é que estamos em Portugal, e o calibre que justificava o preço só tinha tocado as cerejas de cima. As de baixo eram miseravelmente pequenas e, para azedar o ânimo, sensaboronas, ao contrário das outras. Julgo que isto fará também parte da trivial arte de ser português. A música corre por aqui, vai variando, de Satie a Messiaen, embora o que me vai na alma seja o desejo de dormir uma sesta, como se fosse espanhol, o que, manifestamente, não sou, nem tenho nostalgia de uma unidade ibérica. Tenho muitas coisas para fazer, mas o melhor é ir dormir.
sexta-feira, 26 de maio de 2023
Do sólido ao gasoso
Uma visita ao registo civil. Eis um belo título para uma novela de suspense. Por aqui, o registo civil mudou, há dias, das antigas instalações para umas modernas. Uma pessoa chega, um segurança levanta-se da secretária e, depois de questionar a finalidade da visita, dá instruções sobre o modus operandi. Retirada a senha de uma máquina que tem por função dar senhas a quem as pede, as pessoas sentam-se e aguardam que num monitor surja o número da sua e a indicação do balcão a que deve dirigir-se. Sentei-me e aguardei, isto é, fui aguardando, pois estamos num território onde o tempo é vagaroso. Quando estava a chegar a vez da minha senha, a senhora evaporou-se do balcão. Passado um espaço de tempo apreciável, vejo-a aproximar-se do lugar, senti que tinha chegado a minha hora, mas sem que eu desse por isso tornou a evaporar-se. Estou num mundo onde as coordenadas físicas são diferentes das habituais, pensei. Passado mais um intervalo generoso, a senhora que tem um talento especial para viajar entre os estados sólido e o gasoso, lá se solidificou na cadeira e, como na lotaria, saiu o número da minha cautela. A senhora foi amável, talvez não muito segura, mas enfim. A certa altura confessou sabe, este processo é um pouco moroso e nós somos apenas três e uma das minhas colegas, por problemas pessoais, teve de faltar, são coisas que acontecem. Pois são, anuí. E continuou a confissão o melhor é mesmo fazer uma marcação para outro dia, onde estejamos todas e assim haverá mais tempo, a senhora conservadora pode dar uma ajuda. Fazemos assim, fica aqui marcado na agenda (uma agenda em papel), o senhor tira a senha na mesma, mas dirige-se logo ao balcão, diz que tem uma marcação. Encolhi os ombros e disse que sim, que faria isso. Tenho esperança de que a colega resolva os problemas e volte ao serviço, não vá ser precisa outra marcação. A burocracia nacional é uma instituição. Em tempos havia uma coisa extraordinária, que, entretanto, caiu em desuso, julgo. Era a certidão de nascimento. Para as coisas mais estapafúrdias não bastava a presença da pessoa e o bilhete de identidade. Sem a certidão de nascimento, a burocracia nacional não tinha a certeza de que aquela pessoa que estava ali tinha de facto nascido. Imagine-se que um não nascido chegava e queria tratar do casamento ou do divórcio, ou sabe-se lá o quê, o que um não nascido pode querer fazer neste mundo, neste universo onde há pessoas que passam, com facilidade desusada, do estado sólido ao gasoso, embora tenham mais dificuldade em voltar a solidificar-se.
quinta-feira, 25 de maio de 2023
Magnanimidades
Maio escoa-se. Da rua vêm barulhos que me incomodam. Talvez ande a dormir pouco e de dia não tenha paciência para o que perturba uma atmosfera pacífica e silenciosa. Acabei de ler o romance Devorar o Céu, de Paolo Giordano, autor de A Solidão dos Números Primos, que nunca li. Na contracapa de Devorar o Céu estão impressas várias opiniões sobre a obra. Um romance magnânimo, segundo o The New York Times Book Review. Fico perplexo. Será a magnanimidade uma categoria literária ou de crítica literária? Não consegui encontrar o texto onde a obra terá sido assim sentenciada. Faz-me lembrar um dito de Roland Barthes sobre o adjectivo agradável, um dito que talvez seja apócrifo. Diz-se que uma coisa é agradável quando nada se tem a dizer sobre ela. Depois de um convite, profere-se, como agradecimento, foi uma noite agradável, muito agradável. É possível que Barthes nunca tenha dito ou escrito nada de parecido, mas seja ou não ele o autor, o dito capta a coisa. Ora, um romance magnânimo pode estar longe de ser um romance magnífico. É verdade que existe alguma magnanimidade, talvez excessiva, para coisas que o romance manifesta, mas o adjectivo magnânimo soou-me a agradável. Contudo, o romance não é agradável, no sentido do dito de Barthes, mas um romance que merece ser lido e que capta o ethos de uma geração que me é estranha. Quando se fala no ethos de uma geração, faz-se uma generalização imprópria. As gerações têm múltiplos ethos. Uns diferentes, outros antagónicos. O do romance é o dos activistas climáticos radicais e do niilismo que se esconde em todo o agir que, ultrapassando a justa medida, se torna hiperbólico. Acabado o romance, tenho um problema para resolver. Qual será o próximo? Depois penso numa coisa que terei lido já não sei bem onde. Na hora da morte, ou depois dela, o Supremo Juiz perguntar-te-á o que fizeste e não o que leste. Essa frase perturbou-me em tempos. Havia nela uma estranha semelhança com a 11ª tese de Marx ad Feuerbach: Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. Ora, sempre preferi a interpretação à transformação, sempre dei mais importância ao ler do que ao fazer. Quanto mais se faz, pior se torna a realidade. Exagero, mas talvez esteja hoje dedicado à hipérbole. Maio aproxima-se do fim, mas isso não é um alívio.
quarta-feira, 24 de maio de 2023
Défice hermenêutico
Chove e troveja, o sopro do vento empurra a ramagem das árvores, não avisto ninguém na rua, mas um gato esconde-se debaixo de um carro, espreguiça-se, bem o vejo, mas logo se senta como só os gatos se sabem sentar. Olho os céus à procura de sinais, mas não existem, ou se existem não consigo descortiná-los. Talvez seja melhor assim, pois se os visse não haveria de saber interpretá-los. Apesar da pequena intempérie, os pássaros meus vizinhos continuam a entregar-se a estranhas conversas. Presumo que sejam estranhas, pois também não consigo decifrá-las. Os meus poderes hermenêuticos andam por baixo. Hoje, ao passar pela avenida marginal duas coisas chamaram-me a atenção. A primeira foi os castanheiros. Todos os anos, a época em que florescem é para mim um grande prazer. Este ano, contudo, a floração foi miserável, senão pindérica. Eis outro sinal que não consigo interpretar. A segunda coisa que me chamou a atenção foi o anúncio das festas da aldeia – sim, eu sou um aldeão – onde aterrei neste planeta. Não tenho grande experiência dessas efemérides, mas continuam a ser para mim um mistério. Via as pessoas muito envolvidas, exuberantes, orgulhosas, um entusiasmo transbordante, para não falar em rivalidades, mas nunca consegui encontrar o que motivava tais estados de alma. Aquilo não era mais decepcionante do que a generalidade das coisas humanas, mas não deixava de o ser. Talvez a grandeza da festividade resida na sua pequenez, mas hoje não é o melhor dia para fazer interpretações. As minhas relações com Hermes estão tensas. Numa plataforma que agrega notícias e pseudonotícias vejo anunciar um artigo em que me revelará quais são os três signos mais poderosos do zodíaco. Decido ver. O meu não está lá. Bem me parecia que era um falhado. Contudo, segundo me disseram em tempos tenho o ascendente e a Lua num daqueles que se encontra no top três dos mais fortes. Em resumo, não me saiu a sorte grande, mas tenho a terminação. Há muito que não ouvia esta expressão. Seja como for, não sei como empregar a força que impregna o meu ascendente e a minha lua, se é que possuo um ascendente (sobre quem?) e uma lua. Talvez por isso não passe de um miserável narrador. Parou de chover.
terça-feira, 23 de maio de 2023
Uma teoria da loucura
Um alarme, presumo que de um carro, esteve mais de um quarto de hora a tocar. Estava a começar a enlouquecer quando alguém o parou. Foi uma sensação de alívio. Não nego a utilidade do dispositivo, mas tem efeitos colaterais desagradáveis, pois parecem ter sido concebidos para afastar ladrões e espalhar loucura no mundo. As pessoas começam a ouvir o ruído, nasce de imediato a esperança de que o proprietário acorrerá para calar a coisa. O proprietário, porém, não reconhece o som ou finge que não está a ouvir. A cabeça começa a ficar em água. Nesse ambiente húmido introduzem-se os primeiros germes da loucura. Quanto maior a humidade, mais depressa os germes se multiplicam. A norma, representada pela curva de Gauss, mostra que geralmente o som é desligado antes que os processos de enlouquecimento se tornem irreversíveis, mas, posso afirmá-lo, nem sempre isso acontece. Então, as pessoas entram no túnel na loucura, com os germes desta a turbilhonar por dentro do cérebro, de onde começa a sair uma água suja e malcheirosa. Nesse momento, incomodado com o aroma, alguém se apieda da vítima e chama uma ambulância. Chegada esta, saem dela polícias que tomam conta da ocorrência e transportam o novo louco para o lar dos loucos, onde a maior parte está ali devido a alarmes que não são desligados a tempo. Escapei por pouco.
segunda-feira, 22 de maio de 2023
Da menoridade
Hoje, as promessas foram cumpridas e choveu por aqui com alguma abundância. Isto salva a face da meteorologia como ciência profética. Por vezes, acertam nas previsões, coisa que mais raramente acontece na Economia. Mesmo depois de tudo consumado os augúrios sobre o crescimento do PIB mostram-se, muitas vezes, incapazes de oferecer um palpite que não seja depois corrigido. Quando era muito novo, ainda pensei em aderir à seita económica, mas o destino, na prudência que o caracteriza, resguardou-me de dar esse passo no mundo das trevas, que mais parece uma casa de apostas do que o lugar onde existe e se pratica uma ciência. Ontem, talvez por ser dia de descanso, vi alguns vídeos antigos com o antropólogo René Girard, que morreu em 2015. Não é desinteressante a tese sobre a origem da violência na sociedade. Trata-se de uma consequência da rivalidade mimética. Os seres humanos desejam aquilo que o outro deseja. Se A deseja x, então B também deseja x, não pelo valor deste, mas porque A o deseja. A imitação do desejo instaura a rivalidade e esta conduz à violência. Toda a sociedade se estrutura a partir deste modelo, seja a política, a economia, a universidade, o futebol. Aceitando a tese como boa, não podemos deixar de nos espantar de que a espécie humana nunca saia da sua menoridade, pois essa rivalidade é aquela que atira irmão contra irmão pela disputa da fatia de bolo. A causa da menoridade da espécie não seria então, como pensava Kant, a falta de coragem para usar o seu próprio entendimento, mas o fascínio pelo pedaço de bolo que o irmão irá comer. Não é um problema do uso da razão, mas da orientação do desejo. Deixar de desejar o desejo do outro e descobrir o objecto do seu próprio desejo, isso seria tornar-se adulto. Quando me sentei aqui, depois da azáfama do dia, para escrever, não imaginava que a conversa se desviasse para estes assuntos. É possível que me faltassem outros mais sérios, agora que a chuva parou.
domingo, 21 de maio de 2023
Uma sugestão
Parece que tudo se conjuga. A terra está a pedir chuva, os sites meteorológicos prometem-na com grau elevado de probabilidade. Esta conjugação deveria permitir-me, quando olhasse através dos vidros da janela, ver a água cair dos céus. Ora, o que se prova é que mesmo quando tudo se conjuga para que algo aconteça isso não significa que aconteça. Não chove, está um céu esbranquiçado, uma luz anémica. S. Pedro, o grande regulador dos estados anímicos do clima, não está pelos ajustes e diverte-se com as expectativas frustradas. Está na altura, parece-me, de ele ceder a função a um outro santo mais jovem, com menos problemas auditivos e com a visão mais acurada. Poder-se-ia dar o título de meteorologista emérito a S. Pedro, enviá-lo de férias, enquanto o novo titular punha ordem na casa, isto é, no clima da Terra. Caso escolhido com critério, o novo detentor do posto poderia ser capaz de resolver o problema das alterações climáticas, coisa que o actual incumbente parece não ter a força suficiente ou a paciência para fazer. Como se pode comprovar pelo que se escreveu acima, este narrador é um poço sem fundo de óptimas sugestões para a resolução dos problemas do mundo, mas a que ninguém dá ouvidos. É uma pena, pois se os seus sábios conselhos fossem seguidos, tudo andaria pelo melhor. Sendo assim, quando é preciso chuva, não chove. Quando ela não é necessária, há-de cair a cântaros, com inundações a lembrar o dilúvio, e nós sem um Noé que construa uma arca. As acácias da praceta estão a cobrir-se de folhas, mas ainda se vêem os ramos, como se fossem braços esguios dirigidos ao céu em oração peticionária, mas o Santo, quase cego e quase surdo, não dá por nada, entretido a cismar, a falar com os seus botões, cansado da função. Como eu o compreendo.