domingo, 8 de outubro de 2017

O irremediável

Há coisas que são irremediáveis, portas que se abrem e, mal transpomos o limiar, logo fecham para nunca mais se voltarem a abrir. Já não consigo reconstruir tudo o que vivi nesse dia. Lembro-me que fui acompanhado pela minha mãe e entregue a alguém conhecido dela. Fiquei no meio de uma matula que, desempoeirada, corria, gritava, guinchava, entregava-se a jogos que eu desconhecia de todo. Quando tocou uma sineta – talvez uma campainha – a multidão, trajada de bata branca, distribuiu-se, magicamente, pelas duas salas. Numa delas, aquela para onde entrei, estava uma senhora, talvez também tivesse uma bata branca, cujo nome, confesso com tristeza, acabei por esquecer. Isto passou-se a 8 de Outubro de 1962, uma segunda-feira, o meu primeiro dia de escola. Quando a porta da sala se fechou, nunca mais voltei ao mundo encantado de onde a minha mãe me trouxera. Há coisas irremediáveis.

sábado, 7 de outubro de 2017

Não pensar

Leio: "Os corpos são geografias deslocadas" e já não quero ler o resto do poema de Tolentino Mendonça. Tenho medo que o primeiro verso se estrague pela contaminação dos seguintes. E fico a pensar: o meu corpo deslocou-se de onde? Deixo perpassar por mim a música de Satie, que o velho gira-disco deixa escapar, temeroso de não descobrir esse locus original de onde o corpo se tresmalhou. Sempre podia ir fumar um cigarro, mas fico-me pela água que escorre da garrafa. É verdade, a palavra geografia, mesmo no plural, sempre me fascinou, e dos fascínios o melhor é não haver pensamento.