Um alarme dispara não sei bem onde. O som progride como um
insulto a quem escolheu o silêncio para esquecer a alegria do sol ou algum
dever que a vida, esse naufrágio entre dois esquecimentos, sempre traz no
aconchego da sua farta algibeira. Duas pessoas vão pelo passeio e o seu andar
lembra-me uma redondilha, e logo começo a escandir-lhes os passos, a
espreitar-lhe a prosódia, certo que também o mover dos corpos na rua obedece ao segredo de uma poética, que apenas a distracção nos faz ignorar. O melhor seria pensar
noutra coisa, reflicto, ser útil e dar à indiferença estes pensamentos que são
como flores feias e estéreis. O que vale é que o alarme se calou, e o dia mutilado
refaz a mão decepada e com ela acaricia a infrutuosidade de tudo o que penso.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2019
domingo, 20 de janeiro de 2019
A porta do meio-dia
O vento ondula o arvoredo como se este fosse uma seara
arcaica trazida dos confins da terra. E eu aguardo o deslizar do dia, a espuma
das horas que se derrete ao sol, o rigor do esquecimento que a tudo há-de
trazer paz e purificação. Uma nuvem passa diante do sol e a luz entenebrece um
pouco, mas logo o vento leva a intrometida e deixa que os raios caiam como
punhais sobre os transeuntes. Estes vão em pequenos bandos, lembrando famílias
a caminho da igreja num domingo de há cinquenta anos. Com o florete das
palavras desenho na areia os frutos que me cabem, enquanto imagino o canto das
cigarras ou o sabor do vinho novo. Afasto-me das minhas paixões e cruzo o adro
da manhã para entrar, inútil e cego, pela porta do meio-dia.
sábado, 19 de janeiro de 2019
Anacrónico
Os pássaros que ainda há pouco tempo cantavam perto da minha
janela emudeceram. Eram pássaros tardios, sei-o bem, e há muito que deveriam
ter partido. O tempo fê-los perder a memória e confundiram a púrpura dos dias
com o fulgor do Verão. Também eu confundo os tempos e caminho pelo Inverno como
se ainda fosse Outono. Pensava em tudo isto, enquanto contemplava a mansidão da
luz batida pelas águas frias de Janeiro. Alturas há em que me assalta uma
estranha convicção: este não é o meu tempo. Sou, atavicamente, anacrónico.
Rio-me e pergunto se há outra coisa que possa fazer senão rir-me de mim mesmo.
Num poema de Eugénio Andrade encontro a afirmação o teu destino és tu. Não, o
meu destino não sou eu. Sou como os pássaros que emudeceram na minha janela ou
como a chuva que se calou tomada pelo peso da tarde. Se estivéssemos em Outubro
tudo seria perfeito, pensei, enquanto o meu destino galopa, incendiado e pueril, diante de mim.
sexta-feira, 18 de janeiro de 2019
Desculpa
Esta chuva impaciente e frágil veio mesmo a calhar. Que boa
desculpa encontrei para não ir dar a minha caminhada profiláctica. Assim, fico
por aqui a ruminar sobre o desvario do mundo, a meditar na água que cai e na
bem-aventurança que ela é para a agricultura. Há quem tenha alma de caminhante,
mas esse, por um qualquer motivo que desconheço, não é o meu caso. Prendo-me
então ao flanco do silêncio e enquanto leio aguardo o crepúsculo que me há-de
anunciar o aconchego furtivo da noite.
quinta-feira, 17 de janeiro de 2019
Notícia
Vai-se pela rua ou entra-se numa rede social e é-se colhido por uma notícia para a qual nunca há uma cesta preparada para a depositar. A terrível ceifeira, a desmemoriada que nunca esquece a vil ocupação, deslocou-se, fremente e impúdica, e cortou cerce onde não se esperava que cortasse. Faz-se, assim, em nós um grande silêncio. Contam-se os dias, os anos, os caminhos partilhados e as esperanças havidas e, por ordem inevitável do mundo, perdidas. Então uma espada de pez cai sobre o dia e tudo ensombrece, como se um exílio nos esperasse ou uma gaivota perdida apagasse o sol.
quarta-feira, 16 de janeiro de 2019
Rememorações
Por vezes, sou dado a rememorações, talvez com a esperança
da ressurreição de alguma coisa perdida ou de alguém que a morte, lúbrica e
pegajosa, raptou para não mais libertar. É um sinal inequívoco de que os anos,
muitos, passaram por mim e o passado pesa mais que o futuro. A culpa destes
pensamentos, pensei-o agora, é do dia. A cinza rumorosa da tarde, a espuma do
frio a entranhar-se nos ossos, os ramos despidos das árvores no limiar do
esquecimento, tudo isso conspira para que a memória cresça e se transforme numa
hipérbole que me esmaga, enquanto oiço o vozear de quem vai rua fora, envolto numa
capa de segredos que lhe dilaceram o coração. Hoje é quarta-feira e a minha
indústria é escassa para domar a melancolia furtiva, essa sombra vacilante suspensa
nas nuvens.
terça-feira, 15 de janeiro de 2019
Amor
Está um dia esquivo e a cidade respira rente à melancolia. O
rio, a ciciar pela chuva que há-de vir, desliza oscilante e de água escassa,
sem um barco que lhe abra as entranhas e lhe inscreva, momentânea, uma esteira
que lembre o ondulado tecido pelo passar dos grandes navios. Tudo nesta cidade
é minguado, menos o desvario com que a percorro para não me perder na aspereza
das ruas ou na solidão que sobre ela desce em borbotões da serra. São assim as
cidades de província e por isso são amadas. Também eu a amo pela sua escassez e
pelo jardim que agora cruzo e cai sobre os meus ombros como um grande
capote que protege o meu ser provinciano do grande rugido cosmopolita.
segunda-feira, 14 de janeiro de 2019
O tempo foge
Estava há pouco a ver os livros de um dos leilões que se
estão a tornar moda na internet, quando me deparei com uma obra em dois volumes, de um
autor russo cujo nome não é apenas impronunciável como inescrevível. A prosa
foi publicada pelas Edições Avante e tem o nome Para a Crítica da Ideologia
Burguesa. Ao vê-la, sorri. É perante coisas como esta que uma pessoa tem a
certeza que as pretensões humanas são limitadas, mesmo que o desejo seja
infinito. Apesar da crítica, e enquanto os críticos se afundavam no lodaçal do
não ser, a ideologia burguesa lá se foi aguentando, mesmo que haja quem lhe
rosne, lhe faça figas e a encha de manguitos, e de negros e irreversíveis
prognósticos. Não pense o leitor que eu tenha alegria – ou tristeza, diga-se –
nesta vitória da afrontada ideologia sobre a crítica e os críticos. Todas estas
coisas passam, como passam as borbulhas na adolescência, que tanto desespero
provocam e logo se vão. Também um dia a malfadada ideologia morrerá, velha e
abandonada, sem o conforto dos sacramentos, sem um crítico que lhe faça o
velório ou a acompanhe à última morada. E era aqui, para acabar com brio, que
deveria pôr uma citação de Virgílio sobre o tempo e a sua fugacidade, mas também
em mim o desejo é maior que as possibilidades. Vou dar uma volta, ver as vistas e apanhar sol.
domingo, 13 de janeiro de 2019
Paganismos de província
Contrariamente ao que é costume, hoje, domingo, tive de ir
fazer compras, coisa que me deixa num humor variável, umas vezes mau e outras
indiferente. E enquanto passeava pelos corredores de uma grande superfície,
visitando os múltiplos altares e parando em várias capelas, todos eles, altares
e capelas, dedicados a um santo necessário ao bem-estar, pensava que antigamente
os domingos estavam despojados destes cultos pagãos. A missa do meio-dia em S.
Pedro, depois almoço em família, e, se fosse o caso, uma ida ver o futebol ao
Almonda Parque, mais conhecido pelo quintal do Zé Maria. O mundo era mais
simples e eu mais ingénuo, mas talvez não tão idiota. Não havia grandes
superfícies e mesmo que a ida à missa se tivesse transformado, como era
recorrente na época, numa oportunidade para ver as raparigas, e nisso estava
toda a devoção pagã do rapazio, a verdade é que o objectivo desse pobre
paganismo provinciano era mais interessante do que observar coisas tão
cosmopolitas como as líchias vindas da China ou as papaias provenientes do
Brasil.
sábado, 12 de janeiro de 2019
Sábados
Os sábados contêm uma promessa que descubro sempre ser
falsa. Se os olho a partir dos dias da semana, eles parecem-me uma luz
bruxuleante ao fundo do túnel. E nesse luzir mortiço esconde-se, confesso, a
esperança da eternidade e a crença no paraíso. Sim, os sábados são pressentidos
como se não pertencessem ao tempo, com o seu passar rápido e inelutável, mas à
dimensão da intemporalidade. Depois, o sábado chega e mal dou por isso já o sol
se entrega nas mãos do crepúsculo, a temporalidade ri-se alacre das minhas
tristes divagações e o ritmo das coisas humanas, demasiado humanas, cobra o seu
soldo e traz a canga que me submete ao duro jugo da realidade. É o que faz cultivar
ilusões em vez de aprender a jardinar e a podar roseiras.
sexta-feira, 11 de janeiro de 2019
Sanidade
Quando caminho à noite, tenho o costume de dar várias voltas a uma certa praça. É um exercício ritual que tem por fim não pagar por algum
pecado mas poupar-me a ter de pensar por onde hei-de ir. Actualmente, devido ao
frio, dou os meus passeios à tarde e abstenho-me de andar às voltas no mesmo
lugar. Há coisas que se fazem à noite e que de dia são impossíveis. Há que
preservar a imagem, mesmo que fantasiosa, de que se possui uma certa sanidade
mental.
quinta-feira, 10 de janeiro de 2019
Hóspedes
Há dias comprei um livro, num leilão na internet, de
Heinrich Böll. Trata-se de uma obra publicada entre nós em 1972, pela velha
Arcádia. Tem capa dura e papel de boa gramagem. É composto por um conjunto de
contos e de um deles recebeu o título Os Hóspedes Inesperados. Foi um sentimento
de irmandade que me levou a adquiri-lo. Também eu, onde quer que vá, sou um
hóspede inesperado. O sítio não me espera e a minha presença é constrangedora. Isto
pensava eu quando atravessava a cidade para ir para um lugar onde todos me
esperavam, sem que a minha presença deixasse de ser constrangedora. O que me
vale, meditei, é o sol de Inverno. Brilha, aquece um pouco, mas evita excessos,
comportando-se com prudência e sabedoria.
terça-feira, 8 de janeiro de 2019
Sabedoria
Estes dias ensolarados e frios morrem sob um véu de tristeza
e melancolia, pensei ao olhar pela janela. O fulgor do sol começa definhar, a toldar-se
indeciso, e onde antes havia vibração insinua-se uma pequena névoa. Logo se
transforma em escura nuvem de pesar, que cobrirá as pessoas que passam
indiferentes e que, revestidas pela saúde do seu espírito, sabem que os dias
não morrem, nem são tristes e melancólicos, mas apenas dias que hão-de dar
lugar à noite, separados por crepúsculos. E eu, não sem ponta de inveja, olho-as
e maravilho-me com essa sabedoria e paz de espírito que nela se oculta.
segunda-feira, 7 de janeiro de 2019
Más leituras
Como Rosseau também eu tenho os meus devaneios de caminhante
solitário. Poderia meditar sobre o lixo que encontro, as pessoas que passam por
mim, a azáfama dos escapes a libertarem o ar puro que hei-de respirar. Poderia,
mas não foi o que fiz hoje. Isso deveu-se à impertinência de uma frase de
Jean-Jacques lida pouco antes de me dispor a sair para a rua: “Quando o meu
destino voltou a lançar-me na torrente do mundo, já aí não encontrei nada que
pudesse, por um momento que fosse, atrair o meu coração.” Era essa incapacidade
do mundo em atrair-me o coração que ocupava os meus pensamentos, enquanto as
pernas se deslocavam, mecânicas, para destino nenhum. O pior é que o mundo que
ia vendo, em vez de me tranquilizar com um desmentido, apenas confirmava aquilo
que tinha lido. Talvez não deva ler antes de ir caminhar.
domingo, 6 de janeiro de 2019
Bolo-rainha em dia de Reis
Hoje é dia de Reis. As pessoas aproveitam o sol, dão
passeios vagarosos pelas ruas, cumprimentam-se como se não se vissem há muito, vão
aos cafés e compram bolo-rei ou bolo-rainha, este uma introdução recente,
talvez em nome da igualdade de género. Foi tudo isso que vi, quando, também eu,
fiz o mesmo e, por opção cá de casa, deixei-me embalar por essa desejada igualdade.
Quando saía da pastelaria com a caixa do bolo nas mãos e os olhos a piscar por
causa do sol, meditei que estava deslocado. Hoje é dia de Reis e não de
Rainhas. É assim que se pervertem as tradições, constatei ancorado num conservadorismo trazido pela idade. Levados pelo prazer estético, esse exercício
de individualistas dados ao hedonismo, trocamos as frutas cristalizadas pelos
frutos secos, como se fosse um upgrade do software que nos há-de levar ao
paraíso gustativo. Que Baltasar, Belchior e Gaspar nos perdoem por os termos
trocado pela rainha de copas.
sábado, 5 de janeiro de 2019
Caminhadas
Há muito que não fazia uma caminhada. Hoje, porém, enfrentei
estradas e caminhos. A verdade é que o fiz não por amor ao dever de andar (que
Kant me perdoe) ou às paisagens que atravesso. Quando combinei a revelação que
esta manhã a balança me fez com o resultado, recebido ontem, de umas análises
de rotina, aliás com quase todos os valores no lugar certo, percebi que talvez
o médico não estivesse destituído de alguma razão ao receitar-me exercício
físico. E foi assim que me expus ao sol entristecido da tarde e me aventurei
por caminhos a que os escapes dos automóveis e camiões dão o seu inigualável
perfume. Fi-lo como quem toma um comprimido ou bebe umas gotas cujo amargor
nunca a água dilui ou dissipa. Quando cheguei a casa, prometi que amanhã
voltaria e que ainda me haveria de tornar um desportista a sério, daqueles que
treinam todos os dias, embora nunca joguem ao domingo.
sexta-feira, 4 de janeiro de 2019
Utilidades
A semana passou depressa, pensei ao chegar a casa. O pior é
a contradição entre o corpo e a realidade. Esta exige-me um respeito temeroso
pelo calendário, pela separação árdua e fria dos dias úteis dos outros,
enquanto aquele se rebela contra este jogo de distinções e anseia pela hora em
que todos os dias se possam tornar frutuosos, libertos da inutilidade dos dias
úteis.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2019
Diabruras
Atravessei pensativo a cidade mergulhada no frio matinal. As
pessoas passavam recompostas da chegada do novo ano, entrouxadas em sombras e
silêncio, cobertas pelo azul do céu. Enquanto fazia e desfazia curvas, circundava
rotundas e enfrentava semáforos, ia pensando no que ia fazer. Falar sobre
crenças que se devem justificar e nesse acto de justificar está toda a
justificação da razão. Enquanto discorria para mim mesmo, um pequeno demónio
lembrava-me que as crenças mais interessantes são como a rosa sem porquê. O meu
demónio é persistente e trabalha constantemente para a minha perdição. Ele lá
terá a sua justificação.
quarta-feira, 2 de janeiro de 2019
A cidade
A cidade é um jogo de memórias puxado pelo cabresto da
imaginação. Ali, onde se vê uma casa vazia, imagina-se quem lá viveu e fechou
as portas para que a vida se encerrasse, e nunca mais uma dor fosse o reverso
da alegria, ou a amargura cobrisse com o seu manto de púrpura os prazeres que a
vida engendrava. Um sol amarelo e resignado cobre o casario, tinta-o de uma luz
esquiva, tece-o de sombras e segredos e prepara-o para os temores da noite. A
memória enumera conhecidos que habitavam as ruas e que agora não habitam em
lugar nenhum. A cidade é uma sexta-feira santa sem um domingo de ressurreição
no calendário.
terça-feira, 1 de janeiro de 2019
Festividades
As festividades são exercícios difíceis, exigem recursos de
paciência cujo limite raramente se adivinha, trazem consigo promessas que nunca
cumprem. Agora que declinam e se resguardam na noite que dura um ano, para
depois voltarem com os seus cantos de sereia, o espírito torce os seus dedos
vazios e procura, nem sabe bem onde, a necessidade de todos estes folguedos e
júbilos. Que alma vazia habitará os nossos corpos para que do nascimento de uma criança e do
arrancar de folha de um calendário se faça motivo de tantas provações e
penitências?
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