quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Sinfonia concertante

Toc-toc-toc. Toc-toc-toc. Há nas mãos do calceteiro que compõe a calçada junto ao parque infantil um ritmo musical que lhe orienta a técnica. Um percussionista dedicado. Sabe que a pedra se acomoda apenas com três batidas compassadas e assim vai cobrindo a terra nua, vestindo-a com a brancura do calcário. A batida compõe-se com os outros sons que vêm da rua. Uma criança arrasta um carro que arranha o cimento, as vozes murmuram alto e, mais que tudo isto, o som do silêncio que se desprende da serra. Estes sons chegam-me pelas janelas abertas e perfuram-me o sossego. Diante de mim, empilham-se documentos para ler, dados para analisar, mas nada disto é musical, nada disto tem o poder de compor uma sinfonia concertante como aquela que o acaso dos encontros compõe ali em baixo, com solistas tão inusitados. Uma voz de homem insiste sobre uma qualquer verdade que só ele conhece e as mulheres da esplanada compõem trinados cheios de segundas intenções e pequenas malícias para despertarem a curiosidade entre a assistência. Olho para o céu e penso que o sol terá perdido um pouco do seu vigor. As ilusões nunca deixam de se pagar caro, ocorre-me de imediato.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Estratégias editoriais

Talvez seja mais interessante editar livros do que ter leitores que os leiam. Ainda Agosto não tinha acabado enviei um email a uma editora dizendo estar interessado em comprar quatro livros por ela publicados e que não se encontram nas livrarias. É uma editora pequena mas com um catálogo interessante e um design gráfico também merecedor de atenção. Até hoje não recebi qualquer resposta. Talvez ninguém abra os emails, foi o que pensei. Depois ocorreu-me que alguém o tenha lido e que, olhando para o nome do possível comprador, achou por bem que eu não mereceria ter aqueles livros na minha biblioteca pessoal. Resigno-me a esta sabedoria editorial. Se eu fosse editor também só venderia livros a pessoas que tivessem um nome merecedor de os comprar. Seguindo o ensinamento groucho marxiano nem a mim mesmo venderia livros por mim publicados, mesmo que eu estivesse disposto a pagar o dobro do seu valor de mercado, o que não era o caso. Há que manter elevado o nível e evitar que certas palavras caiam sob os olhos profanos de um leitor desconhecido.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Demasiado tarde

A tarde nublou-se. Presumo que se trate apenas de uma pequena trégua na grande guerra das estações. O Verão tem destes ardis e como um camaleão lança mão do mimetismo, disfarçando-se com vestes de Outono para, sem este dar por isso, entrar-lhe em casa, ocupar-lhe o território e daí lançar os seus raides mortais. Mais do que um crepúsculo dos ídolos, estamos perante um crepúsculo das estações, afirmo com a confiança de quem cultiva dogmas. Se vivesse nos dias de hoje, faltaria a Vivaldi matéria para os seus concertos mais célebres, acrescento. Há dias que não oiço os pássaros meus vizinhos. É possível que, descontentes com a vizinhança, tenham mudado de casa. Como os compreendo. Resta-me agora o arrulhar dos pombos, o matraquear das persianas embaladas pelo vento, algum latido disperso e o infinito cacarejar da humanidade que se junta numa esplanada aqui em baixo ou chama pela filharada no parque infantil. Leio uns documentos a que não posso furtar-me e penso o que sobre eles hei-de escrever. Sensato seria não escrever nada, mais sensato ainda era não saber escrever. O cume da sabedoria teria sido Tamuz ter silenciado Thoth para sempre. Agora, porém, é demasiado tarde. Aliás, é sempre demasiado tarde.

sábado, 7 de setembro de 2019

Coisas de sábado

O sábado goteja gingão pelas paredes de caliça do dia. Cobre-o não a seda ou a cambraia, mas o veludo com que sufoca aqueles que entraram para dentro da sua casa. Estou sentado à sua mesa e perscruto-lhe os humores. A minha secretária está um caos, digo-lhe. Livros empilhados, uma garrafa de água vazia, duas esferográficas à espera de irem para o lixo, uma pilha para o comando do carro, cartões que não couberam na carteira oferecida pelas minhas netas, uma conta por pagar, moedas esquecidas e os cabos para ligar a máquina fotográfica ao computador. Detesto esta confusão, mas nos últimos dias tenho-a cultivado como uma espécie de compensação para o que vem aí. Talvez amanhã ou na segunda, tudo entrará na ordem. Os livros encontrarão o lugar nas estantes, as moedas recolher-se-ão esbaforidas na carteira e todas as coisas descobrirão no remanso dos respectivos lares a paz por que anseiam. Tudo isto é desolador, mas não mais desolador que o resto, mesmo aquelas emoções extremas com que nos iludimos e julgamos darem sentido ao que não tem sentido. A manhã já acabou e ainda não pus um pé fora de casa nem espiei a avenida onde, adivinho-o, gente ocasional desfila na passerelle ensolarada, com recortes de sombras que descem devagar dos ramos das árvores públicas, com as quais o município disfarça o deserto em que tudo isto se está a transformar.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Enlouquecer

As pessoas enlouquecem devagar, penso ao ver um grupo de mulheres sentadas à mesa do canto de um café cujo nome prefiro ocultar. De cabelos eriçados, zambras, o rosto cavado por rugas que nada disfarçará, fazem-se fotografar, em abandono estrepitoso, por fotógrafo de ocasião, um conhecido de há muito. Ele ainda não sabe que elas perderam a réstia de siso que as fazia, noutros tempos, calar tormentos, as dores que o ócio faz nascer em carnes secas e corações desocupados. Os homens enlouquecem de outra maneira, digo para mim mesmo. Começam a caminhar cada vez mais depressa para dentro do silêncio, até emudecerem. Então, com olhos mortiços e meditabundos, lançam olhares de suspeição para um ponto que só eles vêem. Se alguém passa por eles e os cumprimenta, nem dão por isso, tão presos à sua loucura e aos mundos que só ela ilumina. Fotografadas, as mulheres da mesa do canto entregam-se, em alvoroto, a risadas entumecidas pelo desvairo, presas aos vestidos cambados que nos protegem dos seus corpos macerados pelo tempo. A porta abre-se e entra uma mulher ainda bem longe da loucura, traz com ela uma criança de uns dois anos a quem chama Amélia, Amélia. Faz-se silêncio no café para que o nome da criança ressoe dentro da consciência dos clientes. E ele ecoa límpido, fazendo replicar as sílabas no desfiladeiro da boca da mãe. Findo o eco onomástico, o murmúrio do lugar retoma a sua rota entrecortado pelas gargalhadas de quem já nada tem a perder. O telemóvel avisa-me. Uma conhecida marca de GPS tem os novos mapas prontos. Um sinal do destino. Levanto-me e saio. Ao cruzar a porta, oiço Amélia, Amélia, mas isso já pertence a outro lugar, e não àquele que me espera e onde me preparo para enlouquecer. Há pouco ouvi a sirene dos bombeiros. Deve haver fogo por perto.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

A casa do tempo

Para ir de casa ao lugar que me permite enfrentar os decretos da necessidade tenho de atravessar a cidade de lés-a-lés. Serve-me a travessia para exercícios de vigilância. Espreito aqui, lanço uma espiadela ali, faço-o à velocidade modorrenta com que um carro pode andar no espaço urbano. Tento descobrir-lhe o ânimo, compreender-lhe o espírito, tudo isso a partir de um corpo difuso, feito de prédios, rotundas, avenidas, castanheiros, quintais com limoeiros e buganvílias, pessoas que não sem bravura enfrentam o martelar furioso do sol. Não tenho alma de bairrista, penso quando passo perto do castelo. Falta-me o pathos que anima aqueles que amam o lugar sobre todas as coisas. Não pertenço ao espaço, nenhum lugar é o meu lugar. A minha casa é o tempo, sussurro para me distrair. É uma casa alugada a termo certo, embora não o conheça. Há alturas em que me sento perto da janela e olho o horizonte, mas o que vejo é a areia da ampulheta a deslizar pela fina garganta de uma para outra âmbula. Fascina-me essa queda contínua. Talvez por nela se esconder o mistério da minha morte, que será a única coisa que neste lugar assombrado não tem mistério.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A sombra do coração

Um piar mecânico insinua, na sua intermitência, uma máquina em manobra. Olho pela janela, mas não consigo descobrir onde se encontra. Pára, descansa do cântico uniforme, repetitivo, monótono, para, passados instantes, retomar a cadência invariável com que, ao avisar da sua presença, me entra pelos ouvidos. No parque infantil do espaço público contíguo, um baloiço, ao ir e vir, grasna compassadamente, como uma ave cujos bicos rangessem. Os carros ronronam, são gatos semiadormecidos, apenas acordados pelo silvar das sirenes que, cavalgando ambulâncias, abrem caminho em direcção ao hospital. Esta música vacilante e rude acentua uma sombra que me nasceu dentro do coração e inquinou a vista, dando-me uma paisagem turva, desfocada. Os olhos com que vemos o mundo, ocorreu-me, não estão ligados ao cérebro mas ao coração. Perdem a precisão do contorno mas ganham rigor na compreensão. Um novo ruído chega-me aos ouvidos, parece o de uma serra a abrir caminho, não sem dificuldade, por uma planície de ferro. Imagino o pioneiro a enfrentar a dureza da campina. A coruja mecânica retoma a melopeia, agora mais afastada. Os raios solares, ao embater nos prédios, também eles rangem. São cães a rosnar rentes ao corpo enfraquecido pela sombra do coração.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

A vida na província

Há pouco o calor caía em pingos grossos sobre as ruas. Há que pagar a conta de um arranjo doméstico e por isso não tenho outro remédio senão meter-me sob a intempérie bonançosa que cobre o rosto da cidade com a máscara do inferno. Entro na sede da empresa prestadora do serviço, sou recebido por uma temperatura decente e uma rapariga afável e diligente. Pago, dou o número fiscal e o email para receber, por essa via, a factura digital. Admiro o zelo e a ausência da pergunta se pretendo contribuinte. Saio, pego no carro e sou obrigado a passar pelo mercado. Hoje é terça-feira, a zona está cheia de gente e de viaturas que deslizam lentamente. Fico numa passadeira largos minutos, enquanto à minha frente flutuam os peões, com sacos na mão. Vejo pessoas conhecidas que nunca imaginei no mercado. Um dirigente político e um rapaz do meu tempo, bon-vivant e femeeiro contumaz, lá vão eles absortos e domésticos, prestáveis, reluzentes de suor, ajoujados às compras. Contribuem com denodo para a harmonia doméstica. Carros apitam, mas os peões vão na passadeira sem pressa, a pensar se terão esquecido alguma coisa ou onde deixaram o automóvel. Uma mulher jovem pára e acende um cigarro. O fumo evola-se entre os lábios e ela desaparece. Aproveito uma aberta e esgueiro-me. Tenho os vidros abertos e sinto o calor entrar para dentro do carro. A viagem será curta e evito o ar condicionado. Chego à avenida marginal e a exuberância que havia no mercado desapareceu. A garrulice que entretinha as gentes perdeu-se e a monotonia da província cresce para dentro de mim, como um punhal que procura no coração o alvo que o espera. O calor sangra pelas paredes.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A disciplina do exagero

Há dias em que acordamos rodeados de sombras. A janela com uma discreta abertura deixa passar um fiapo de luz que embate nos objectos para os transformar em fantasmas, aqueles mesmos que saíram dos nossos sonhos. Um acto falhado deixar assim a janela, pensei. Fazemos tudo para evitar as trevas mais negras, temerosos que assaltem o coração. Somos tripulantes de um navio de cabotagem, daqueles que fazem navegação costeira. As sombras são as águas que nos indicam que a luz está já ali. Confortados por essa certeza, voltamo-nos na cama, para que um sobejo de sonolência ainda permita um ou outro devaneio. Depois, levantamo-nos e quando nos confrontamos com o espelho fazemos uma careta, para disfarçar aquilo que o aleivoso teima em mostrar. Submetemo-nos então à água lustral para nos redimirmos da noite e nos purificarmos do lixo que vive no mais fundo de nós. Ao pensar tudo isto, entro pelo dia e lembro-me de um verso: Deixai toda a esperança, vós que entrais! Rio-me da minha propensão para a hipérbole, mas o que seria de todos nós sem a dura disciplina do exagero?

domingo, 1 de setembro de 2019

Setembro chegou

Gostava de saber lidar com o mês de Setembro, mas foi uma das muitas coisas que nunca consegui aprender. É um mês astucioso e esquivo. Quando se aproxima, o corpo macerado pelas penitências de Julho e Agosto deixa-se iludir pelo declinar dos dias e pensa-se liberto do calvário do Verão. Puro engano. Só agora a época estival começa. Não devia pensar assim deste mês, até porque lhe pertenço de corpo e alma, embora seja daquelas pertenças que não resultam da eleição mas do curso natural das coisas. Fui fazer uma visita familiar antes que chegasse a hora do almoço. A cidade suava solidão por poros mal abertos. Sempre que a atravesso sinto uma sensação depressiva. As ruas vazias, o sol violento sobre o casario, o alcatrão a fumegar. Por vezes, sob uma chapada coberta de sombra, um cão estira-se dolente, incapaz de se erguer, símbolo do abandono que corrói os alicerces que sustentam por aqui a vida. Ao almoço, pus uma nódoa na camisa. Consta que é a minha única especialidade. É a prova de que entre mim e a mecânica do mundo há um desacerto inultrapassável. Se fosse capaz inventava uma língua onde pudesse dizer como a realidade me é estranha, mas nem para isso sou capacitado. Acho que vou dormir uma sesta, como se fosse um verdadeiro castelhano.

sábado, 31 de agosto de 2019

Prisões e previsões

Ontem houve por aqui um pequeno sarrabulho entre claques de futebol, cujos membros, num acto de exemplar cidadania, decidiram prestar-se ao treino da polícia de intervenção. Esta não foi ingrata e não se fez rogada. Distribuiu umas bastonadas para desenjoar da falta de actividade, algemou uns tantos figurantes e deve tê-los levado para o conforto de uma esquadra, para lhes fazer um casting para uma telenovela. Uma animação. Estas iniciativas são sempre de louvar pois têm objectivos pedagógicos. Servem para mostrar que afinal o Estado tem autoridade e que ainda não estamos com vontade de nos divertirmos numa guerra de todos contra todos, mesmo que seja apenas à pedrada. Hoje a avenida estava serena, arvorava até um ar de inocência, mas as avenidas são assim, umas dissimuladas, que logo escondem a má vida em que andaram. Agosto vai terminar pacato e paroquial, como convém na província e me convém a mim, ao mais provinciano dos provincianos. Fui consultar a previsão para os próximos dez dias e Setembro chega envolto numa ferocidade inominável. Promete subir aos quarenta graus. Ainda tentei argumentar, mas S. Pedro respondeu-me torto e de má cara. Se achas que quarenta é muito, então imagina lá a temperatura que está no Inferno. Perante um argumento destes, calei-me. Ele sempre foi o primeiro Papa, e um Papa como se sabe é infalível. Portanto, se nestes dias enlouquecer, saibam que o culpado é o santo que regula o mercado das temperaturas. Os supervisores são todos assim.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Do tamanho de ervilhas

Sou informado que ondas cerebrais são detectadas em cérebros de tamanho de ervilhas cultivados em laboratório. Tamanho de ervilhas, afinal ainda posso ter esperança. Talvez ainda consigam descobrir no meu cérebro alguma actividade. Eu bem tento animá-lo. Faço-lhe respiração boca-a-boca, incentivo-o, chego a prometer-lhe que, caso se ponha a trabalhar, o hei-de levar à Disneylândia. Ele, porém, não se comove, esquece-se de emitir as tais ondas que me raptariam ao estupor, à estupidez e, se não for pedir muito, à estultícia. A sexta-feira chegou marejada de dolência, que escorre pelos poros do dia. Ainda não é uma daquelas sextas-feiras festivas que me rouba ao pesado tributo que há que pagar às ninfas da necessidade. Escrito isto, sou tomado por uma angustiante dúvida. Serão ninfas ou sereias? Talvez sejam sereias. As necessidades têm a sua melopeia inconfundível que, se não lhe fecharmos os ouvidos, se apodera de nós, para que nos devorem em festa e sem piedade. Sou um asceta falhado, um monge sem mosteiro, penso enquanto oiço o rumor dos carros na rua. Valeu-me um sisudo livro que me recordou o nome do herói da série americana Tudo em Família. Archie Bunker, o qual também possuía um cérebro destituído de ondas cerebrais. É nestas coisas que nos sentimos pertencer a uma fraternidade, a qual não é tão pequena quanto isso. Para onde quer que nos voltemos, deparamos com um Archie Bunker, até nos mais insuspeitados postos de comando deste mundo. Como eu dizia, ainda há esperança para mim.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Dias com má estrela

Há dias que nascem marcados por uma má estrela, isto a crer na influência dos astros sobre as coisas que acontecem. O abastecimento de água à cidade foi suspenso por umas horas. A electricidade recusa-se, não sem veemência, em chegar a uma série de tomadas aqui em casa, enquanto flui despreocupada e sonolenta noutras. Um dos estores avariou-se, negando-se a subir e a descer. Pior que tudo, porém, é o zelo roncante com que o funcionário de uma empresa de jardinagem teima em cortar a relva que decora os espaços públicos entre prédios. Tenho coisas para fazer que dispensam a presença do vruuuum laminador, mas não me parece que tão cedo o jardineiro vá jardinar para outras paragens. Enquanto a relva é degolada ao som de um rondó mecânico, desfolho os livros que agora me chegaram. Num deles leio “também os raciocínios estritamente circulares são válidos, ainda que não sejam cogentes”. Apesar da falta de cogência, fico aliviado, eu que vivo entre rotundas e tenho uma propensão indisfarçável para a circularidade. De raciocínio, note-se. No outro livro, logo salta à vista a frase “Dentro de si o músculo do coração aperta-se, enrola e malha na parede do peito”. A máquina calou-se, mas temo que seja apenas um truque para me levar a crer na perfeição do mundo. Em silêncio percorro o meu exército de raciocínios circulares. Vejo-os perfilados, temerosos, de coração apertado a bater sem compasso, à espera das ordens de um sargento enlouquecido. O ruído voltou, um pouco mais longe. Regresso a um dos livros e recebo a notícia, aliás destituída de novidade, de que há um número infinito de verdades lógicas. Não sei se hei-de exultar ou não. Há dias em que o infinito me assusta como se fosse um cão raivoso que me persegue para aplacar na minha carne o desespero da sua raiva. Estou cansado e manhã só vai a meio.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Maldita realidade

Regresso lentamente à realidade. É um exercício penoso. Descobri que os dias de afastamento me trouxeram mais dois quilos. Chamei embusteira à balança, asseverei-lhe que o melhor era ir trocar a pilha, mas ela permaneceu muda e sem pestanejar. Então, lancei-lhe um anátema. Encolheu os ombros, como se as questões religiosas lhe fossem indiferentes. Voltei a pesar-me. Mais dois quilos. Odeio balanças persistentes. Algumas são volúveis, mas não a que me coube em sorte. Saí e fui pôr o carro a lavar. Estava sujo de irrealidade, com manchas de fantasia e nódoas feias de tanta extravagância. A casa está um pouco mais quente do que quando a deixei. Abri-lhe as janelas para que a manhã entrasse com o seu exército de frescura e as vozes apócrifas que escuto sentado à secretária, como um pássaro no poleiro. Desconfio que tenho coisas para fazer, mas filio-me de imediato no clube dos procrastinadores. Entro para a grande sala, perguntam-me o que quero e eu respondo “um whiskey”. Fazem uma leve vénia. Espero, espero, espero que o empregado deixe de procrastinar. Se houvesse vento, seria mais fácil suportar a realidade, pensei. Um homem com umas longas barbas atravessa a passadeira. Tem o ar de profeta do Antigo Testamento. Aguardo o momento em que, iracundo, se volte e comece a profetizar. Ele, porém, senta-se numa esplanada e daí a pouco vejo-o a beber uma cerveja. Maldita realidade, é o que me acode ao pensamento.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Terra Plana

Compreendo bem o drama da imprensa nas pavorosas tardes de Agosto. Como se sabe nesse mês, em que os dias já declinam, não se passa nada, os acontecimentos recusam-se a acontecer, as ocorrências evitam ocorrer, os sucessos não querem suceder, os incidentes não incidem e os eventos não eventam. Alegam férias, excesso de calor, embora a razão seja sempre a mesma. A pouca vontade de trabalhar. Os jornalistas então vivem o pesadelo das páginas em branco, da falta de matérias para partilharem com os sequiosos leitores de novidades. Hoje, por exemplo, uma conhecida revista, na edição online informa que em Novembro – claro, em Novembro já é mês para que se passem coisas – decorrerá no Texas a terceira conferência anual da Terra Plana. E como o espaço é coisa que não falta, são elencadas dez razões para crer, o que nos permite entrar de imediato no domínio da lógica doxástica, que o nosso planeta é plano. Aliás, e este é o meu contributo para a teoria, se a Terra fosse redonda não seria um planeta mas um redondeta. Eu sei que a pilhéria é desoladora, mas não me ocorreu outra melhor. Culpada de tudo isto é a NASA que quer ocultar Deus dos olhos dos mortais, esse Deus invisível, a quem ninguém viu, o Deus que se escondia atrás da nuvem e, agora, da NASA. Agosto estrebucha, a sua morte nunca é pacífica. Encosto-me a uma sombra e leio em Eugénio de Andrade: Estou à espera / duma tarde semelhante ao sono das maçãs. Também eu espero qualquer coisa de que não me lembro. Além da esperança não me falta fé, pois creio que o nosso planeta se manterá plano e não arredondará até Novembro. O pior é que sou um raciocinador instável, daqueles que acreditam que acreditam numa coisa sem de facto acreditar nela.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Inadimplência

Uma infelicidade não ter estudado leis e não saber latim. Um mal nunca vem só, foi o que pensei quando, arrastado por uma mórbida curiosidade, consultei o dicionário para saber o que eram clientes inadimplentes, dos quais uma certa marca de automóveis se queixa e, por ínvios caminhos, persegue. Pensei logo que não seriam grande coisa, tão horrível era a palavra que o jornal empregava para classificar tais clientes. Mesmo sem saber o significado, a última coisa que eu queria ser era um inadimplente. Consultado o Porto Editora que tinha à distância de um click, a coisa era mais simples do que parecia. Gente que, talvez por falta de memória, por distracção ou por dificuldade de se relacionar com o tempo, não cumpria, no prazo acordado, um pagamento ou um contrato. Pessoas pouco católicas têm a tendência de lhes chamar aldrabões, mas isso é falta de caridade. Por vezes sou assaltado por estranhos pesadelos, nos quais me entrego a pesados estudos do Direito. A tarefa principal é a de construir listas de palavras onde a ordenação jurídica opera para se ocultar do mais culto dos mortais. São sonhos de cortar a respiração. Lembrado desses devaneios oníricos, depois de tomar café, fui a uma loja de chineses, com o promissor nome de Compraky, e adquiri três cadernos pautados, com a capa a dizer notebook, e que hei-de encher, durante os meus piores sonhos, com vocábulos que só a ciência do Direito tem o poder mágico de evocar. Tudo isso é preferível, pensei, do que chegar a inadimplente. É duro ser ignorante.

domingo, 25 de agosto de 2019

Da vida selvagem

Há uma forma de fazer filosofia, hoje com as acções em alta no mercado de valores intelectuais, que dá uma importância desmesurada às classificações. Em qualquer assunto proliferam uma quantidade indefinida de espécies catalogadas por nomes que, em geral, terminam com o sufixo -ista. A filosofia é então uma tarefa infinita de sufixação e criação de categorias para lá incluir a fauna que se dispersa numa selva que não pára de crescer. Parece ser o único sítio no planeta em que a vida selvagem não se encontra em perigo. Ter pensamentos destes antes de um almoço de domingo não é sintoma de grande saúde mental. Por outro lado, estas coisas não interessam a ninguém a começar por mim, embora eu seja um exemplo acabado de pessoa que se interessa por coisas que, na verdade, não a interessam para nada. No sítio onde estou, avisto uma chaminé antiga, daquelas redondas, feitas de tijolo, que se elevam, impantes, sobre a pequenez do casario e que indicam a existência de um forno. Espero ver o fumo sair dela, mas a minha esperança é defraudada. À sua exuberância fálica corresponde uma esterilidade de facto. O almoço parece atrasado, as vozes lá de dentro sussurram e eu, sem saber o que fazer, sigo a pista dos contigentistas e dos necessitistas, como quem segue no rasto de animais exóticos, embora sem esperança de criar um zoo e cobrar entradas aos excursionistas de domingo e a deslumbradas turistas de telemóvel em punho. O talento para os negócios foi uma virtude que a divindade achou por bem não distribuir pela minha pobre pessoa. Não fora isso e abriria um jardim zoológico.

sábado, 24 de agosto de 2019

Pescadores de paciência

Passei uns dias num sítio – em Portugal, note-se – onde a temperatura recusa afrontar-me. Pelo contrário, sempre foi cordata e raramente me desmentiu a sensação de estar num daqueles países do norte, de onde imagino que há muitos séculos um desconhecido antepassado teria saído e aportado por aqui, para distribuir uns genes que, apesar de trambolhões e naufrágios, chegaram a mim, fazendo-me sonhar com paisagens frias sob a névoa, bosques e frutos silvestres, que só naquelas paragens haveria. Isto, porém, não merece confiança, pois sou dado a imaginar coisas e à prática da hipérbole. Nesses dias, de manhã, dava longos passeios perto do mar. Fazia parte da digressão entrar por um molhe e ir até ao farol. No molhe, encontrava invariavelmente uns quantos pescadores à linha, com as suas cadeiras, as canas, os anzóis, sacos e cabazes misteriosos. Quase sempre solitários. Por vezes, levantavam-se, recolhiam a linha manejando o carreto, que grasnava não sem gravidade. Depois, executavam um movimento de corpo, um balanceamento de trás para a frente, quase um passo de dança que lhes permitia lançar mais longe o anzol e logo se sentavam, a olhar hipnotizados as águas ou a fumar distraídos um cigarro. Nunca vi um peixe que fosse. Talvez eles se dediquem à pesca apenas como exercício de paciência ou para pagar alguma promessa, pensei numa altura. Agora que falo disto, lembrei-me de mim. Também eu sou um lançador de anzóis a que nenhum peixe morde o isco. Deveria ir pescar para outro lado, mas é tarde e o crepúsculo não deixa de ter o seu encanto.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Questões de pombos

Há pouco, na esplanada onde fui tomar café, entraram dois ou três pombos, que se saracotearam, de peito feito e cauda trémula, por ali, entre o prazer de uns e o nojo de outros. Em quase tudo, a humanidade reparte-se e, se o assunto toma dimensão, logo se formam partidos, onde gente açulada por algum chefe se prepara para degolar os oponentes. No caso dos pombos, eu era neutro, verdadeiramente apolítico. Nem prazer, nem desprazer. Achei-os, como sempre que os vejo andar, completamente ridículos e um pouco raquíticos. Mais o branco que os cinzentos, pois o peito era menos exuberante e a penugem parecia amarfanhada. Como é de desconfiar, não sei nada de pombos, a columbofilia nunca tocou sequer o círculo mais longínquo dos meus interesses. Falo agora deles porque, apesar de tudo, não é tão desolador quanto falar da espécie humana. Eles, honra lhes seja feita, não ostentam a designação de animal racional, que nós humanos tão orgulhosamente exibimos, embora isso pouco corresponda à realidade. E não se pense que estou a colocar-me fora da humanidade, num lugar sobranceiro para alardear a minha suposta mas nunca provada racionalidade. Pelo contrário. Que racionalidade haverá em escrever sobre pombos que entram numa esplanada? Nenhuma, dirá o leitor, e eu concordo de imediato. Eles lá se foram embora, num passo hesitante, depois levantaram voo e eu fiquei sem assunto. Também é verdade que podia falar sobre a mistela que uma mulher já entrada na casa dos trinta ia levando à boca. Agora, porém, seria eu que ficaria enojado e pronto para tomar partido a favor de alguma forma de abolicionismo. Tenho de me precaver destes impulsos.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Desastres manuais

É um trauma antigo. Tenho uma relação difícil com os tubos de cola. Fundamentalmente, com aqueles minúsculos de onde sai uma substância translúcida que consegue até grudar o céu ao inferno, imagino eu. Exigem uma perícia no manuseamento que a natureza ou Deus decidiram não me conceder ou, para persistir no registo religioso, o diabo me roubou. O certo é que, sempre que me aventuro em unir aquilo que o tempo ou o descuido desuniu, fico com os dedos lambuzados com a maldita mistela, a qual, sem me dar tempo para reagir, seca e forma uma película sobre a pele. Irrita-me a insensibilidade digital a que fico sujeito. Não una o homem aquilo que foi desunido, parece-me uma injunção a não desprezar. Suspeito que haverá um produto que dissolva a mixórdia que me envolve os dedos, mas nunca me lembro de o comprar, caso exista. Fico assim cativo da minha inabilidade estrutural. Quando isto acontece, como há pouco, olho para as minhas mãos, como se contemplasse a mola propulsora de um desastre. Depois, rio-me. Nem disso, por pequeno que fosse, seriam capazes. Os trabalhos manuais sempre foram uma penitência excessiva e se oiço a palavra bricolage afasto-me de imediato, num exercício de verdadeira prudência.