terça-feira, 1 de outubro de 2019

Terapia para o caos

Há um momento na tarde em que a luz parece fixar-se sobre o dia e assim tornar-se eterna. Depois, a ilusão desaparece e o tempo acelera, anunciando nos tons das árvores ou no matizado das paredes a noite que há-de vir. Lá em baixo, um bando de adolescentes entrega-se a rituais ruidosos, numa liturgia eterna, antes de entrar para um centro de línguas. Os dias outonais são-me propícios e acolho-os com a benevolência de um sorriso. À minha frente tenho um livro cuja capa reproduz uma gravura de Pieter Bruegel. Percorro-a com os olhos, demoro-me em cada uma das figuras e interrogo-me sobre o que motiva o autor para a teratologia. Também no meu inconsciente habitarão terríveis monstros, mas faltar-me-á coragem para os trazer à luz e com eles compor uma figuração do caos. Chega até mim a voz de uma mãe a perguntar a uma filha se está aí. Depois, diz Maria, Maria. Não se ouve resposta, apenas o ranger rouco de um baloiço. Ao longe, a crista dos cedros inclina-se, dobrada pelo vento. Outubro entrou vitorioso pelo calendário. Enquanto continuo a espiar a gravura de Bruegel, oiço um grito prolongado de golo. Por cada golo gritado, penso, adormece um monstro no fundo do coração daquele que grita. Uma terapia para o caos.

domingo, 29 de setembro de 2019

A alegria do guarda-redes

Não sei o que aconteceu, mas aquela melancolia dos domingos à tarde parece ter-se desvanecido. Não é que tenha razões para tal. As segundas-feiras continuam a seguir-se aos domingos e não me deixaram de trazer com elas os imperativos com que a necessidade me carrega. Lembrei-me, ao pensar nisto, do livro de Peter Handke, que deu origem a um filme de Wim Wenders, A Angústia do Guarda-Redes Antes do Penalty. O que angustia o guardador das redes é não saber o que adversário vai fazer, para onde vai atirar a bola. Isso não se pode comparar com a melancolia dos domingos, pois esta nasce de se saber bem de mais o que o dia seguinte traz. Lá fora, a noite progride, cavalga sobre o casario, ri-se das luzes com que os homens fingem deter o seu império tecido na urze das trevas. O silêncio tomou conta das ruas e o último guarda-redes, depois de se atirar para o lado errado, vai a pé para casa, alegre por amanhã ser ainda segunda-feira.

sábado, 28 de setembro de 2019

Compêndios

Comprei um livro que se apresenta como compêndio. Não interessa para o caso aquilo que ele compendia, mas é um sintoma de que, finalmente, percebi que a vida não é eterna. Quando não o sabia e pensava ter a eternidade à minha frente recusava-me a comprar compêndios. Hoje inclino-me para os epítomes – que raio de palavra fui buscar para dizer resumos – e, não tarda, hei-de mesmo compreender a velha estratégia das Selecções do Reader’s Digest de condensar obras literárias. Sábado é um dia que se abre à futilidade. Fui às compras, enquanto decorria a hora de almoço. É uma hora onde não se encontra ninguém. Fiquei, contudo, preocupado comigo. Havia um conjunto de vinhos interessantes, mas nem me apeteceu olhar para eles. Segui em frente como se fosse cego ou nem um bom vinho me interessasse. Há dias que são difíceis de levar pela trela. O tal compêndio está à minha frente. Olho para a capa mas não me atrevo a abri-lo. Há coisas que é mais ajuizado não saber.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Uma irritação

Hoje irritei-me com um acontecimento da vida particular. Uma irritação mesmo naquela hora em que a tarde se afirma no seu mais negro esplendor, com o sol a coriscar e a calçada a arder diante dos meus olhos. Depois, há sempre um depois, olhei para a irritação e não consegui deixar de me rir. A realidade permanece intocada quer me irrite ou não. Esta intocabilidade do real quase me reconciliou com o mundo e a irritação como um fantasma dissipou-se. O vento faz tremular a folhagem das árvores e o sol reverbera nas paredes da escola que avisto da janela. Em tudo há um ar de fim-de-estação, um cansaço desabrido, um chamamento por qualquer coisa que não aquilo que temos de momento. Depois, a propósito de uma controvérsia matinal, lembrei-me de quando tinha quinze ou dezasseis anos e de todas as ilusões que guardava no cofre-forte da minha ingenuidade. Com o tempo, abri o cofre e as ilusões foram saindo pelo seu pé. Estou-lhes grato pela fantasia, mas hoje já não tenho paciência para elas.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Mudanças

De súbito, voltei a escutar os pássaros meus vizinhos. Julguei que se tinham mudado, mas não ou, então, foi uma nova família que aqui se instalou. Lá em baixo, uma camionete de mudanças recebe os móveis de alguém que vai procurar outras paragens. Também eu mudaria de lugar se pudesse mudar de mim mesmo. Como não posso, o melhor é ficar onde estou, até que o próprio lugar se farte de mim e aja em conformidade. A manhã declina e um silêncio apoderou-se do mundo que me envolve. Talvez se esteja numa daquelas horas em que um deus se revela ou em que os anjos, cansados de vigiarem os homens, se juntam para jogar dominó. Olho ao longe. No parque de estacionamento do hospital, os pára-brisas multiplicam os sóis, num desejo de incandescência que me parece funesto. Os pássaros emudeceram e o único barulho que oiço é o dos meus dedos a afundarem-se nas teclas. O melhor é também eu entrar na casa branca do silêncio.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Amanuense

Podia falar sobre como uma virose me desacerta do mundo e faz crescer em mim um enjoo persistente, mas não falo. O desacerto é coisa antiga e não faltam por aí coisas que me enjoem. Estou irritadiço e cansado. No novo parque infantil, o baloiço ao mover-se para a frente e para trás grasna continuamente, espalhando pelo ar um aroma a crisântemos em dia de finados. Olho para as estantes e faço a contabilidade de todos os meus enganos. Deveria ser amanuense para passar o dia entre registos e certidões, deixando o tempo passar lentamente, sem que uma fantasia me tocasse, sem que um livro chamasse por mim, sem que um devaneio toldasse a marcha imperiosa do dever. Não há nada de melhor do que não ser nada. Acabada a função, entra-se pela porta do grande silêncio, sem que ninguém nos espere ou dê pela partida. Um dia pego numa esponja e começo a apagar o nome, a data de nascimento, o estado civil. Não há biografia mais autêntica do que a do soldado desconhecido.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Registos

Na minha secretária, feito de papel espesso sobre o qual apetece passar as pontas dos dedos, está um pequeno caderno salmão com uma bela fotografia na capa. Na primeira página, impressos a castanho, flutuam dois versos de um poeta cujo nome prefiro ocultar. Ofereceram-mo pelo menos há cinco anos, talvez há mais, muito mais. Tenho lá algumas coisas escritas, mas não passam de trivialidades soturnas, entre elas anotações sobre o romance Pasenow ou o Romantismo, do tríptico Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Noutra página descubro umas observações pretensiosas sobre a ideia de Jesus Cristo como Urmensch. Tudo o que lá encontro dá-me, de imediato, um desgosto implacável. Só as páginas em branco fazem crescer em mim a alegria, que recompenso com a promessa de nelas nada escrever. Nunca fui dado ao registo das coisas inúteis que me ocorrem.

Da vida amputada

Depois de almoço fui atormentado por uma sonolência infame. Cabeceei, adormeci por instantes, para acabar por acordar sem ter dormido. Imaginei-me dentro de um sonho, cujos contornos logo se esvaíram. O peso das pálpebras é o pior. Nada mais difícil do que a ascese da vigília. Nem a frugalidade monástica da refeição obliterou a tentação. Deveria escrever sobre a vida amputada mas não me ocorre nada que mereça ser dito. Ontem fui ao cinema. Uma plateia ansiosa esperava acção decidida, mas a obra explora a lentidão com que os sentimentos se desenham debaixo da pele para depois brotarem na sua crueza. Ao sair da sala pensei que a tensão entre pai e filho no filme é uma brincadeira sem astúcia nem engenho se comparada com a de Johan e de Henrik no último trabalho de Bergman. Por outro lado, depois de Eça ninguém, num romance ou num filme, deveria ousar trazer o incesto para o enredo. Daqui a pouco terei de entrar para dentro do reino da necessidade e esgaravatar na terra húmida das coisas que não interessam. Nem a mim, nem a ninguém. Talvez seja isso o que há a dizer da vida amputada.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Betabloqueantes

Na farmácia, venderam-me a colecção completa de medicamentos que me prescreveram para baixar o ânimo da tensão arterial. Esta tem tendência para exorbitar e passear pelo meu corpo a sua mania das grandezas. Como eu, também ela é dada à hipérbole. Sofre de um excesso de retórica e de pouca prática da virtude da humildade. Saí da botica pacificado e tranquilo, sabendo que tenho à mão aquilo que há-de humilhar essa pretensiosa. Enquanto calcorreava a avenida em direcção a casa lembrei-me dos primeiros tempos em que tomei um betabloqueante. Tudo o que me aborrecia e irritava desapareceu, como se o pequeno comprimido fosse um portal para o paraíso. Desejei que fosse eterno o efeito, mas como em tudo na vida, também nos betabloqueantes o hábito mata o prazer. As irritações e aborrecimentos voltaram a irritar-me e a aborrecer-me, disse-o ao médico que me olhou com ar complacente e confirmou que a vida é assim. Esta sólida sabedoria deixa-me sempre estupefacto, perguntando-me como não me tinha ocorrido tal coisa. Na rua procuro as sombras e calcorreio o passeio em passo lento. Um cão ladra, adolescentes retêm a sua adolescência a caminho da escola e um casal entra para um carro ajoujado ao peso da mútua presença. Não precisam de betabloqueantes, pensei.

domingo, 22 de setembro de 2019

Um conflito insanável

Entre mim e o autor destas linhas há um conflito que já nada parece poder sanar. Arroga-se a um poder exorbitante, como se eu fora um produto das suas faculdades demiúrgicas. Atribui-me palavras e sentimentos segundo o seu arbítrio, nega-me os anseios que me percorrem a alma, faz minhas pessoas e coisas que não reconheço. Obriga-me, e essa é uma palavra benevolente, a escutar o que não me interessa, como as palavras que há pouco, numa paragem de auto-estrada, dois homens trocavam sobre a cavalagem do carro que um deles tinha comprado. Uma oportunidade, dizia um e outro anuía, com a inveja a dançar-lhe nas órbitas por não ser sua a oportunidade. Eram coleccionadores de oportunidades e amantes de cavalaria. Há dias arrastou-me para um enigma leviano sobre hibiscos numa escola. Outras vezes faz-me falar de família que não tenho. Toda esta servidão gerou em mim o desejo insensato de lhe cravar no peito a lâmina afiada deste punhal que ele inventou. O que vale é que a tarde cai, despenha-se velozmente pelo crepúsculo de cinza em direcção ao abismo da noite. Engulo então o rancor que só o autor destas linhas tem o poder de fazer nascer no meu coração. Ao menos que me fizesse corajoso.

sábado, 21 de setembro de 2019

Comprar papel

Choveu mas não encontrei nas ruas o cheiro terroso das primeiras chuvas. Talvez tenha ficado esquecido em algum portal da infância. Há coisas que se escondem para que o uso não as degrade. Um vento fresco não pára de entrar pela janela e invadir-me o escritório. Um exército invisível desfila então perante mim. Sinto-lhe o ímpeto guerreiro e a mão esquálida que transporta nela o frio que há-de colar no corpo dos soldados mortos na batalha. Hoje tive de entrar num prédio onde não ia há décadas. A melancolia insinua-se sempre perante a devastação que o tempo tece. Fecho a janela. Passo em revista as tarefas que tenho pela frente. Não encontro nenhuma mais importante e urgente do que ir comprar papel para embrulhar o presente de uma das netas. É o que dá o comércio electrónico. Oiço o último trabalho de Ludovico Einaudi, Seven Days Walking. A música desliza pelo corpo do dia, reveste-o de seda e cinza para que ele pareça triste. No entanto, sábado resiste, enquanto as nuvens voam para leste. Ir comprar papel, essa é a verdadeira urgência.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Da perfeição

Assomo à janela e vejo o alcatrão molhado. Os carros deslizam com precaução acrescida e o céu entrega-se contrafeito nos braços do Outono. Na minha secretária está o livro de Michael Sandel, Contra a Perfeição, uma tradução brasileira trazida por um amigo. Devia ler a obra no original, mas encolho os ombros e pergunto-me para quê. Tudo é agora demasiado tarde. O título reconcilia-me com o mundo. A luz do sol intensificou-se um pouco ao encontrar uma camada menos densa de nuvens para atravessar, mas logo volta ao tom umbroso, escurecendo com sombras de melancolia o verde das árvores perfiladas diante dos meus olhos. Oiço o vozear de crianças a afastarem-se. Estamos numa época em que abundam os salvadores. Uns salvam a pátria, outros o planeta, haverá até quem se proponha salvar o universo, imagino. Eu não quero salvar nada nem ninguém. Fecho a janela e rio-me da previsibilidade de tudo, da minha própria previsibilidade. Das colunas sai a Paixão segundo S. Lucas, de Penderecki. Talvez Deus exista. Um email convida-me a responder a um questionário de satisfação. Lembro-me do I can get no satisfation, dos Stones e decido responder para mostrar o máximo agrado. Talvez ajude uma pessoa que nunca hei-de conhecer a manter o emprego. Também tu, digo-me, gostarias de ser um salvador. Rio-me mais uma vez e ocorre-me um versículo de Mateus: Sede vós perfeitos como é o vosso Pai que está no céu.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Parcos poderes

Um dos sites meteorológicos informa-me que o céu está nublado. Abro a janela e confirmo, a realidade não se enganou e comporta-se tal como a previsão determina. O ar fresco entra pelo escritório, inunda-o com uma esperança fugidia. Os hibiscos da escola persistem na sua floração exuberante, indiferentes à volubilidade do tempo, lançando pequenos raios garridos na cinza da manhã. Com tempo assim gosto de viajar. Logo me lembro de uma visita em dívida a um amigo que fez no Alentejo o seu Vale de Lobos. O roncar de um motor e o piar mecânico de uma máquina em manobras desviam-me a atenção e deixo o meu amigo sossegado no seu exílio. Devia passar pelo banco, mas é lugar que evito de bom grado. Se pudesse prendia esta manhã ao calendário, para que ela não deslizasse em direcção à tarde, mas os meus poderes são parcos.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Enganos

Enganei-me na hora aprazada para o meu encontro com a aparência e a realidade. Cheguei à encruzilhada demasiado cedo e tive de esperar longamente por elas. Ao voltar para casa, a Antena 2 transmitia um programa sobre Hildegard von Bingen. Morreu há 840 anos, precisamente no dia 17 de Setembro. O locutor lembrou-se de citar um estudo de Oliver Sacks, o autor Do homem que confundiu a mulher com um chapéu, sobre as visões da freira medieval. Seriam causadas pela enxaqueca. Ficamos todos mais descansados, ainda bem. Saio do carro, subo meia dúzia de degraus e abro a caixa do correio. Uma carta mas não para mim; dois panfletos de partidos políticos, de sinal contrário, repousam um sobre o outro em terno amplexo amoroso. Comovo-me e esqueço-me de os deitar no caixote do lixo. Transporto-os com cuidado para casa não vão eles soltar-se e acusar-me de interferir na sua privacidade. Agora, oiço a música da freira que sofria de enxaquecas e deixo que o silêncio desça sobre mim. Toda a minha vida foi um longo casamento com as aparências. Que se me perdoe a poligamia.

Depois de acordar

Quando me levantei uma neblina cobria a manhã com uma promessa de frescura. Da janela, olhei-a com desconfiança e recolhi-me de imediato como quem foge do convívio de alguém que tem o ludíbrio por modo de vida. Depois de acordar, levo tempo a sintonizar-me com a luz do dia. Desloco-me em silêncio e mal olho para o que me envolve. Enraízo-me lentamente no estado de vigília para cumprir a agenda que um deus desavindo comigo me deu por destino. Ainda não me ocorreu o nome dos arbustos que florescem no parque da escola ao lado. Há dias que olho para eles e pergunto-me sempre pelo seu nome. Nos campos de jogos, adolescentes correm e gritam, libertam-se do excesso de adolescência que os devora. De súbito, o nome de hibisco vem-me à memória. Serão hibiscos o que daqui vejo. Despacha-te, digo-me. Numa encruzilhada tenho um encontro marcado com a aparência e a realidade. Não posso chegar tarde.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Exercícios de compensação

Um exercício de compensação. Estou a ouvir o Gurdjieff Ensemble porque na sexta-feira não posso estar na Gulbenkian para assistir ao seu concerto. A maior parte das coisas que fazemos são substituições daquelas que gostaríamos de fazer. Eu sei que vivo rodeado de heróis que só fazem aquilo que bem entendem, antevejo mesmo as suas estátuas a ornamentar as ruas do futuro. Como só tenho passado, estive a manhã empenhadíssimo a fazer coisas que tinha de fazer. É uma provação ficcional. Depois regressei, entrei lentamente em casa e sentei-me diante da televisão. As imagens passavam e eu passava com elas, sem saber do que tratavam, raptado pelo vazio que se abria em mim, um buraco negro pelo qual a vida entra sem que possa dali alguma vez sair. A música arménia flutua no ar e logo desce sobre mim. Como um Cristo cansado da morte, abro o túmulo e saio ao encontro de quem não me espera. Irrita-me a lentidão com que o word abre o thesaurus e desisto de alterar uma palavra que me está a irritar.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Um pendor para a repetição

A canícula continua incólume. Mal escrevo isto dou-me conta da aliteração e hesito. Talvez devesse escrever outra coisa, antes que alguém me diga para ir aliterar para outro lado. Há pessoas que têm tendência para me olhar de esguelha e eu compreendo-as. Depois de meses de sossego voltaram, ao espaço escolar aqui ao lado, os gritos agudos e os ruidosos risos da histeria. Mais à frente virá a música dos bailes dos anos setenta e as Oscofórias das eleições académicas. Submeto-me passivo e paciente, como um passageiro que num grande transatlântico viaja em terceira classe. É essa a minha glória, ir pela vida fora sentado em cadeiras de pau. Como disse ontem, tenho uma natureza anafórica e, acrescento hoje, um ser dado à aliteração e à assonância. Já hoje me repeti diversas vezes, embora com modulações de ritmo diferentes. No outro dia respondi a um interlocutor, queria puxar-me o pé para literatice, que os recursos estilísticos são apenas formas de vida, fazem parte de uma ascese existencial como os exercícios espirituais para aqueles que aspiram à glória dos altares. Olhou para mim e havia nele desalento e um democrático desprezo, com o seu olhar a insinuar a minha demência. Na realidade, até eu me canso de mim. Não compreendo por que razão o autor destas palavras me criou assim. Desconheço-lhe os motivos, se é que os tem, os desejos e até a biografia. Nunca tive engenho para narrador omnisciente.

domingo, 15 de setembro de 2019

Uma natureza anafórica

Como o calor não abranda tive de ir a uma superfície comercial dedicada à bricolage. A missão era comprar umas redes para colocar nas janelas e, tendo estas escancaradas para que o ar fresco tempere o desvario, evitar que moscas e melgas mais distraídas entrem impetuosas casa dentro. Ainda não me converti a um amor universal a todas as formas de vida. S. Francisco, decididamente, não é o meu santo padroeiro. Nada me inclina a amar o piolho, a mosca, a varejeira, a vespa, o percevejo, a barata e, acima de tudo, a melga. Aliás, entre mim e as melgas há uma relação tensa. Elas desejam-me como nada nem ninguém me há-de alguma vez desejar e sempre que têm oportunidade até o sangue me bebem. Eu não me faço rogado e mato-as. Só espero que não seja crime. A verdade é que não suporto o amor que elas me dedicam. No parque da escola que há aqui ao lado avisto uns arbustos em flor, um pontilhado rosa a fosforescer por dentro de nuvens de verde. Tento sintonizar os olhos, mas não consigo perceber do que se trata. O conhecimento da flora não é coisa que faça parte da minha carteira de conhecimentos. O domingo, depois do almoço tardio, enlanguesce sob nuvens esparsas, indecisas. Amanhã será outro dia, penso e de imediato me sinto pacificado com a minha inclinação para o lugar comum e a iteração. Num mundo em que toda a gente é inovadora e criativa, a mim coube-me a repetição como destino. Tenho uma natureza anafórica e isso explica tudo.

sábado, 14 de setembro de 2019

As magnas questões da humanidade

Hoje é sábado e não sei o que hei-de dizer de um dia assim. Se estivesse de férias iria comprar um jornal em papel e lê-lo numa esplanada. Não o estando, evito as esplanadas, as conversas que me assaltam e ferem o meu desconhecimento do mundo. Preciso do dia para meditar sobre os grandes problemas da humanidade. Mal acordei, assaltou-me um, e não dos mais pequenos. Quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete? Já a exacta formulação da questão é um enigma. Como em tudo na vida, também aqui se formaram dois partidos, que se enfrentam com brios sectários, erguer de cruzes e figas para se protegerem do inimigo. Uns dizem que os gloriosos anjos dançam na cabeça de um alfinete, outros afirmam, enquanto murmuram anátemas, que o fazem na ponta de uma agulha. Sobre o lugar do baile, declaro-me agnóstico. Envolvo-me colérico na disputa teológica sobre se um corpo espiritual ocupa ou não espaço, mas logo me distraio e começo a pensar em anjos bailarinos, imaginando-os a dançar um Bolero, talvez um Tango, mesmo um Fandango, pois também os haverá no Ribatejo, daqueles que protegem forcados e toureiros e que, cheios de afición, hão-de gritar olés, enquanto, na cabeça de um alfinete ou na ponta de uma agulha, dançam um Paso Doble. Não sei de maior amor à humanidade do que pensar em anjos. Talvez um dia escreva sobre as potestades, os tronos e as dominações ou sobre a cláusula filioque, que nada tem a ver com anjos. Esmagam-me as magnas questões da humanidade.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

A estupidez sem fim

Venho de uma sala cheia de gente. O pólen do calor pousava lentamente nas cabeças e descia pelos corpos ofegantes, cavando finos sulcos por onde o suor deslizava, pequenos córregos onde buliam restos de poalha. Havia quem se abanasse, quem suspirasse, enquanto o tempo, como uma rapariga grávida, inchava sem quietação. Quando Cronos, desinteressado da tortura, determinou o fim da função, saí. Disfarçado com a farda do silêncio, escapuli-me, procurando sombras e esconderijos fortuitos. Entrei no carro. Este, exposto ao sol como um recém-nascido abandonado na roda, ardia. Levou tempo a arrefecer. Cruzei a cidade como quem atravessa o Saara, sonhando com oásis ou com aqueles reinos do norte que limitaram drasticamente os devaneios de Hélio. Os olhos ardiam. Estão secos, disseram-me. Chegado a casa sentei-me a beber água. Não há água, porém, que me purifique da idiotice com que revesti a vida. Em cima da secretária dorme pacificado um livro. Não faço ideia da razão por que o comprei. Um impulso do momento, o mais certo. Tem por título O tempo em que a luz declina. Talvez a alusão ao declínio tenha desencadeado a compra. Recebo um recado e penso que vem aí tempestade. O vento baforeja o seu hálito quente, sob um céu macilento, terroso, arrastado por uma música envinagrada. Olho para a minha vida e começo a compreender aquelas procissões de flagelantes que assombraram o fim da Idade Média. Não, não era para atingirem o paraíso que se flagelavam, mas para se punir da sua infindável estupidez.