Lá fora está um dia sombrio. A luz da manhã coada pela
muralha de nuvens saltita sobre os telhados como se tivesse perdido a força e
só a muito custo se entregasse ao jogo fútil de nos iluminar. Oiço as vozes de
quem está na esplanada do café da praceta, mas também elas não passam de
sombras, ondas murmuradoras que se elevam e, desarticuladas e sem sentido, me
chegam aos ouvidos. Devia fechar as janelas, mas preciso de ar. À minha frente
repousa um livro que tem por subtítulo Um
diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. Não se trata do nosso
tempo mas de um tempo que passou e que nunca foi o meu. Ao olhar a falta de
vigor da luz ocorre-me que todas as épocas são tempos de doença espiritual. O
espírito deverá sofrer de uma patologia crónica, da qual não se liberta, mas a
cujas mãos também não sucumbe. Uma voz mais aguda fez-me ter outro pensamento
sobre o espírito. O seu encanto residiria nesse seu estado de doente, sempre a
necessitar de cuidados médicos, mas raramente a ser internado num hospital. Aos
domingos deveria coibir-me deste tipo de pensamentos. Lembrei-me dos domingos
da minha infância e adolescência. A missa, o almoço em família e,
eventualmente, a assistência ao futebol, no pequeno campo pelado da vila, ou a
ida ao cinema, numa sala espantosa, que era dos poucos sinais de modernidade
que então havia por aqui. Tudo tinha um ritmo que simulava a perfeição, mas na
verdade era sujeição ao ethos provinciano,
onde se deveria crescer para a pequenez, perder-se no apoucamento, mergulhar na
menoridade eterna. Há quem tenha saudades de tudo isso e cultive a memória,
podando-a para eliminar, na narrativa, os elementos dissonantes. A luz
tornou-se mais vívida, agora que nos preparamos para entrar na tarde. Fechei as
janelas e o silêncio envolve-me. Não vou à missa, não vou ao futebol, não vou
ao cinema e essa família que almoçava junta aos domingos foi-se desfazendo. Os
homens aspiram à eternidade, mas o que lhes calha sempre em sorte é o tempo.
domingo, 9 de fevereiro de 2020
sábado, 8 de fevereiro de 2020
Poupar os pormenores
Hoje ao abrir as janelas dei-me conta de que no friso das
orquídeas persiste florida uma quase há um ano. Comprei-a em Março passado por
razões que não vêm ao caso e já estava florida. Enquanto as outras foram
perdendo as flores, ela atravessou impante a Primavera, fingiu que o Verão era
coisa de somenos por aqui. Quando o Outono deu lugar ao Inverno, a queda de
umas flores foi compensada pelo rebentamento de outras. E ali está ela pronta
para chegar a Março. Ocorreu-me que tivesse sido enganado na florista e que não
seja uma orquídea. Na realidade, não sou um Nero Wolfe. A minha vida não é
desvendar crimes sentado à secretária e cultivar orquídeas. Também não tenho um
cozinheiro à disposição e, por isso, já fui consultar a ementa de uma dessas
casas que têm por função transformar pessoas como eu em cozinheiros improváveis.
Se me perguntarem de quem é a responsabilidade do almoço, posso responder é minha.
Evito os pormenores. A sabedoria da vida reside toda aí, no evitar os
pormenores. Quanto mais pormenores se sabem, maior é a descrença na humanidade.
Uma pessoa sensata tem por norma o imperativo categórico poupem-me os
pormenores! Um pormenor delicioso é narrado em Walden Two, o romance de B. F. Skinner, o behaviorista. Frazier,
enquanto aluno de licenciatura pegou num artigo do reitor da universidade, para
usar um título à nossa medida, publicado numa revista, assinalou-lhe a vermelho
os erros de ortografia, compôs-lhe a sintaxe e com recurso à simbolização
lógica formalizou os argumentos, mostrando a sua não validade. Feito isto, enviou
o artigo ao seu autor com a classificação de C. E qual foi a resposta do magnífico
reitor, pergunta quem tenha a desventura de estar ler este texto. Não sei. B.
F. Skinner, no romance, poupou-me o pormenor.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020
Acasos
O acaso tem um papel nas nossas vidas muito maior do que
supomos. Mal escrevi a frase vi a que enredos ela poderia conduzir-me e hoje
não estou para ardis nem para ciladas. Foi o acaso que me fez escutar uma canção
que ouvia muito há mais de quarenta e cinco anos. Um poema de Rosalía de Castro
musicado e cantado por um dos trovadores em voga na época. É uma bela canção,
de uma tristeza comovente. Depois, pensei que nessa altura, com a idade que
tinha, não deveria ouvir música daquela. A canção acabou, Rosalía voltou para a
sua Galiza, onde nasceu sem que do registo de baptismo constasse o nome dos
pais. Lembrei-me então que hoje, ao atravessar a cidade e enquanto me preparava
para enfrentar as Erínias, ouvi na Antena 2 que era dia de aniversário de
Juliette Greco. De imediato procurei uma das canções dela de que mais gosto, Déshabillez Moi (honni soit qui mal y pense) e achei que a tarde poderia ter acabado
pior. Vou passar as próximas horas a ouvir cançonetas que não lembra ao diabo,
enquanto a noite vai tricotando a sua agonia, à espera de um relâmpago que a
salve de se precipitar na maresia da madrugada. Rosalía não chegou aos
cinquenta anos, mas a Greco fez hoje noventa e três. Não sei se nisto haverá
alguma mensagem cifrada ou se tudo não passa de um acaso.
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
Pensamentos alados
Leio um poema e nele vejo os preconceitos da autora, das mais importantes, o seu universo de anuências e recusas em forma de verso e sinto-me infeliz, pois, na minha cegueira poética, a procura da linguagem primordial exige que o poeta comece a despir-se dos conceitos e, de seguida, dos preconceitos. Esta frase já vai demasiado longa, reparo agora. Um anjo, mas não o que me guarda das tentações, interpela-me e, em modo de sarcasmo, pergunta-me se a poesia não tem direito a dizer coisas, se ela é apenas como o chilrear dos pássaros, uma ondulação sonora com requebros rítmicos. Vi logo que era um anjo comprometido socialmente e desejoso de transmitir uma mensagem. Depois, concedi que é assim mesmo que deve ser. Os anjos são mensageiros. Foi esse o papel que lhes foi destinado e, por isso, foram colocados abaixo dos homens e, acrescento eu, dos pássaros. Ando a ficar preocupado comigo. Parece que os meus cuidados existenciais se dividem entre a angelologia e a ornitologia. Seres alados, digamos assim, ocupam-me a mente e isso pode significar que também a habita o orgulhoso desejo de voar. Depois, estremeci só de pensar que poderia ser um Ícaro e que acabaria por ter o mar Egeu à minha espera. O mais sensato é ficar sentado e deixar a quem tem asas a tarefa de voltear pelos céus. O anjo com a sua conversa distraiu-me da crítica literária e isso não foi mau. De uma das janelas, sobrepondo-se a um bosque de cedros, ergue-se o hospital. As paredes brancas estão cinzentas. Batalhões de fungos invadiram-nas e o que era alvo e brilhava ao sol é agora uma cortina de cinza alquebrada pela tristeza. Devia parar com estas tiradas de um romantismo mais que serôdio. Não tarda e terei de almoçar. Espera-me uma tarde tão longa que entra pela noite fora.
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020
Bach e Deus
Estava a ouvir a suite francesa nº 2 de Bach e, ainda a peça
fluía pela Allemande, já o espírito
se distraía perdido na pátria das coisas inúteis. Os pensamentos talvez sejam
obra do acaso, tão inopinadamente irrompem para, como um exército inimigo, invadirem
o território da atenção. Sem saber porquê, o argumento modal da existência de
Deus requereu a minha atenção. Estranhei. Fiz um esforço para deixar de lado
necessidades e possibilidades e acompanhar a música. O argumento não se calava.
Seria a sua natureza estética, a beleza que há na simplicidade, que disputava a
atenção, ocorreu-me. Fechei os olhos e deixei a música deslizar por mim e
disse-me se é para aceitar uma prova da existência de Deus, o melhor é crer que
a música de Bach é mais convincente que um qualquer argumento a priori. Depois ri-me. Pensamentos
destes depois de almoço não se recomendam a ninguém. Levantei-me e olhei pela
janela. Bach continuava a sair pelas velhas colunas e na rua o esbranquiçado
das nuvens mesclava-se com o azul do céu. Uma nuvem mais densa escondia Deus
que dormia embalado pela música que eu ouvia. Talvez os homens existam para que
Deus possa através deles ouvir Bach. Mais que uma possibilidade, os homens
seriam uma necessidade divina. Retorno à minha agenda onde colecciono, como se fosse num herbário, os recados que dou a mim mesmo, e escrevo: nunca ouvir Bach
na digestão e evitar argumentos ontológicos quando se ouve música.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020
O canto dos pássaros
Os pássaros meus vizinhos poisam no parapeito de uma das janelas e conversam longamente. Não os vejo, mas oiço-os. Não há neles irritação e o diálogo flui ligeiro, com pausas e troca ordenada de locutores. Será o mundo das aves mais ordenado que o dos homens, foi a pergunta que se formou em mim. Soubesse eu música, tivesse talento para compositor e faria como Olivier Messiaen. Comporia um catálogo dos pássaros, para que na voz do piano se escutasse o canto de uma ave. O desejo maior, porém, seria de entender a sua fala, o vocabulário, a sintaxe os artifícios semânticos. Haverá por ali belas metáforas, metonímias inesperadas e chego a desconfiar que não são parcos no eufemismo. Na prosódia, não se furtam à anáfora e são cultores assíduos da assonância e da aliteração. Estes devaneios distraem-me e estou constantemente a trocar letras no teclado. Fico a olhar para os erros. Umas vezes, a palavra assim inventada quase merece vir à existência. Outras, observo o teclado para tentar perceber que conexão neuronal se desviou da regularidade e me tentou arrastar para o caos. Raramente fico elucidado e desisto. Da rua, vêm os gritos doridos de uma adolescência que não aprendeu a domar-se. Também um aspirador regurgita das entranhas um zunido infernal. Temos sempre um pequeno inferno à nossa mão. Agora silenciou-se. Talvez o canto dos pássaros volte e eu compreenda pela primeira vez uma frase.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020
Meditações de uma alma pura
Ocupam-me os dias coisas inúteis cuja finalidade é melhorar
o mundo e as pessoas, mas que, por um capricho da natureza que escapa aos
homens, têm o poder desmedido de tornar o mundo pior e as pessoas mais
incapazes de lidar com ele. Abstenho-me de entrar pelos ínvios caminhos da
política, os quais me estão proibidos, mas agradeço aos deuses a sua sabedoria,
pois sempre que querem melhorar os homens, estes pioram, sempre que querem curar
as coisas, estas adoecem. Se os deuses não fossem tão inteligentes talvez se deixassem
dos seus infinitos planos de melhoria. Corriam, porém, o grave risco de o mundo
e as gentes se tornarem um pouco melhores. O que seria desagradável. Com esta
conversa toda, deve-me ter acontecido alguma coisa. Não é verdade. Há dias que
qualquer um, mesmo um mero narrador incorpóreo, alma pura, tem de desabafar
sobre o ínvio curso das coisas. É um costume antigo e venerando e, por isso
mesmo, digno de apreço e reconhecimento como verdade. Lá fora, o sol ainda deve
estar quente. Tinha pensado fazer uma caminhada após o almoço para digerir as
maleitas da existência, mas temi que, como alma pura, não suportasse o calor.
Se tivesse um boné para a cobrir, ainda me arriscava. Não posso esquecer-me de
apontar na lista de compras um boné. Estão de volta os pássaros que o ano
passado me acompanharam os dias. Cantam à minha janela como se estivessem num
serão para trabalhadores promovido pela Fundação Nacional para Alegria no
Trabalho. Mais dia menos dias, só quem tiver mais de setenta anos percebe alusões
como esta. A minha alma sem corpo não está a funcionar lá muito bem. Talvez a
devesse descontinuar e criar um modelo novo.
domingo, 2 de fevereiro de 2020
Contra o coração
Depois de tomar o pequeno-almoço fui acometido por um súbito estado meditativo. Isto não traz nada de bom, pensei. Um sol esplêndido cai sobre as ruas, as pessoas aspiram os primeiros aromas da Primavera, a natureza não desdenha de começar a despir os andrajos invernosos e de procurar nas lojas da moda alguma roupa para a estação que há-de vir. Deveria ir celebrar a vitória da luz, mas lembrei-me de imediato que não tardará muito e o Estio entrará de rompante pelos corpos, inundando-os de suor, roubando-lhes energia, fazendo-os sonhar com as ondas do oceano. Sentei-me e fui arrastado para o livro do deve e haver da vida. Diante de mim está um telemóvel novo, comprado há três semanas, mas que continua intocado como uma virgem. Ainda não tive coragem para ler as instruções. Sempre desconfiei de instruções e ainda mais de aparelhos que precisam de instruções. Estou a afastar-me do assunto. O balanço é pior do estava à espera. Uma vida erguida entre duas falácias. Quando se é novo, o coração anseia a novidade porque é novidade. Quando se é velho, o coração inconstante cultiva a tradição porque é tradição. Ocorre-me, então, que o coração deveria ocupar-se apenas em bombear com presteza o sangue e deixar-se de considerações para as quais não lhe foi concedida competência. O mal do coração é querer meter-se onde não é chamado, emitir opiniões, dar conselhos que não passam de palpites enviesados sobre o que deve ser. Se a humanidade não tivesse coração, melhor andaria o mundo. O sol com o seu fato domingueiro de provinciano chama-me. Vou? Não vou?
sábado, 1 de fevereiro de 2020
Um problema de família
Um céu de cinza esbranquiçada, aqui e ali entrecortada pelo
chumbo, e uma luz difusa fazem-me crer que me atrasei e abeirei-me da manhã
deste sábado já tarde. Podia encontrar múltiplas desculpas, evitar com belos
artifícios a verdade, tentar-me mesmo por uma piedosa mentira. Esta, porém,
está-me vedada pelo imperativo categórico kantiano e há que ser respeitoso com
o mestre de Konigsberg, mesmo pelos seus mais insanos devaneios. A realidade é
que fui retido por uma discussão monumental com o autor destas palavras. Eu sei
qual é o meu lugar, não passo de um mero narrador, mas os delíquios do autor
deveriam ter um limite, talvez estipulado por alguma comissão reguladora da
liberdade dos autores, coisa a que aspira qualquer narrador. A conversa começou
de forma estranha, com ele a olhar para mim com piedade. Chegou a altura de
teres uma genealogia, de teres antepassados, disse-me, não se pense que foste
criado ex nihilo. Contente com o
latinório não se conteve e rematou ex
nihilo nihil fit. Olhei-o de viés, respirei fundo e fiz um gesto que me
abstenho de descrever. Criei-te, para começar, um bisavô. Ainda chegaste a
conhecê-lo, mas já não te lembras, eras bebé e ele estava já mais para lá do
que para cá. A minha ira, como se compreende, crescia com esta displicência de
tratamento do bisavô que me acabara de criar. A vontade de o esmurrar era cada
vez maior. Ah, acrescentou, parece que ele era muito dado a espalhar os genes
por aí e, constou-me, que havia sempre um óvulo ou outro receptivo ao seu
espírito empreendedor. Portanto, tem cuidado, não te cruzes em alguma destas
histórias com uma prima que não conheces. Bati com a porta e sentei-me a
escrever. Há sábados que nascem tortos e tarde ou nunca se endireitem. O que me
vale é que possuo um repositório inesgotável de aforismos ao gosto popular para
acabar estas narrativas pindéricas, que o autor me obriga a contar.
sexta-feira, 31 de janeiro de 2020
Falar por enigmas
Se fosse uma pessoa saudável poderia dedicar o tempo a
meditar no paradoxo de Epiménides de Creta. Consta que acreditava num Deus
único e desconhecido e, por isso mesmo, salvou Atenas de uma praga
renitente, a que deus algum conhecido conseguia pôr fim. Como não sou assim tão
saudável, não vou pensar na relação entre os cretenses e a mentira. Podia
também passar a noite a interpretar uma certa história dos Inuit que descobri hoje. Deixo, porém, Epiménides e os cretenses em
Creta e os Inuit no Alasca e entro no
fim-de-semana pela porta do desassossego. Mal me aproximei dela, abriu-se não
como quem convida um estranho para entrar, mas como quem dá ordens que ninguém
ousa desobedecer. Folheio as anotações com os afazeres e calculo as horas que
tenho para enfrentar a realidade. Há tempos li já não sei onde que os servos na
Idade Média trabalhavam bem menos que os homens livres de hoje em dia. Se fosse
dado à correcção do mundo, faria aqui uma peroração sobre a glória vã dos
homens modernos, mas deixo a aplicação de correctivos para quem Deus tenha
designado com o indicador da sua mão esquerda. Disseram-me que estava com um ar
cansado. Imaginei que fosse um eufemismo para sugerir que estou velho. Sempre era
melhor estar cansado, pois poderia descansar. Há coisas irremediáveis e
envelhecer é uma delas, o que não deixa de ser um acto de justiça cósmica. É
possível que essa justiça seja o decreto do Deus ignoto de Epiménides e com
isso tenha salvado Atenas da terrível praga. Ou será que o cretense era, na verdade,
um Inuit perdido no horror de um
pequeno barco à deriva? Quando começo a falar por enigmas o melhor é calar-me.
quinta-feira, 30 de janeiro de 2020
O pobre destino da caligrafia
Atravessei a cidade já noite fechada. Uma chuva insidiosa
descia mansamente do céu e poisava leve e hesitante no pára-brisas do carro. As
escovas varriam sem pressa a superfície vidrada, desenhavam um semicírculo,
desfaziam-no de seguida e descansavam tomadas por uma sonolência inexplicável,
enquanto pequenas gotas de água embatiam no vidro e ali ficavam até que o
acordar das escovas as varresse para lado nenhum. Ao chegar a casa tive de ler
um papel que tinha escrito de manhã. Olhei para a garatuja e fiquei a meditar
no destino das palavras. Como o dos homens, também o dos vocábulos está longe
de ser glorioso. Caligrafia começou por ser a bela escrita dos gregos, depois a
arte de bem escrever à mão e agora designa o modo como cada um manuscreve, numa
democratização tão alargada que até eu possuo uma. Não compreendo como é que a
caligrafia não se revolta e restringe drasticamente o seu campo semântico,
expulsando de lá tudo o que seja rabisco ou gatafunho, letra torta ou enviesada.
Lá decifrei o escrito e segui as instruções que dei a mim próprio. Depois,
sentei-me diante do computador e dei uma vista de olhos pelo facebook e logo avistei alguém a pedir
prisão perpétua para uma qualquer malfeitoria, outro a altear a voz em nome dos
contribuintes, mais alguém a vituperar já não sei bem o quê ou a quem. Se toda
esta gente indignada fosse varrida pelas escovas do pára-brisas, pensei, talvez
a caligrafia tivesse um destino mais de acordo com a sua glória clássica,
libertando-se da escrita de pessoas como eu, pouco predisposto à arte e às letras
belas. A noite dança sobre os telhados desta quinta-feira, envolta nos acordes
do silêncio. Há coisas que nunca deveria escrever, mas foge-me o pé para a
chinela.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
Amor máquina
Não tenho personagens, sou um narrador estéril, incapaz de
gerar vida. Por vezes, estes textos são atravessados por alguém, mas, como um
cometa, logo se afunda na escuridão do universo. O meu sonho era o de uma
literatura sem personagens, sem eus e as suas idiossincrasias. Narrar o
ronronar do mundo, o canto dos pássaros, o ronco da terra ao tremer, o rumor da
rosa ao abrir. Isto para parecer poético e que sei falar de rosas, uma óbvia
mentira. Logo me acusarão de não ser um humanista, de não amar a humanidade e
contribuir para a sua libertação. Esta conversa, em abono da verdade, faz-me
bocejar. Hoje é quarta-feira e não tarda o grupo de baile da escola aqui ao
lado há-de começar o seu ensaio. Poderia fazer deles personagens destes textos,
mas prefiro que não percam o seu estatuto de cometas. Desconfio que o
isolamento do prédio poderia ser melhorado. Oiço o bater de uns saltos que não
escondem o frenesim que os habita. Fico sempre confuso se este toc-toc-toc
pretende imitar o desfilar das manequins na passerelle ou se é um eco marcial
de botas cardadas. Hoje ligaram-me a uma pequena máquina que hei-de transportar
durante vinte e quatro horas. Sempre que me ligam a este dispositivo fico
grato, pois nunca ninguém se disporia a dar atenção ao meu coração por tanto
tempo. A menina, por certo uma técnica licenciada e mestrada, desconfiou de
qualquer coisa, pois pôs-se a sondar-me. Então, está a fazer isto porquê?
Perante o olhar atónito de quem vê a sua vida íntima invadida, retrocedeu, fez
um sorriso forçado e acrescentou é um exame de rotina. Anuí, para que a devassa
acabasse ali. Há que preservar a intimidade. Se eu não fosse um narrador
estéril, aproveitaria a menina para personagem. Ela sempre haveria de me fazer
perguntas embaraçosas e eu olhá-la-ia com condescendência, desviando a conversa.
Não o sou e prefiro o espiar silencioso da maquineta que, com os seus fios
colados a eléctrodos, me envolve num amplexo onde descubro todo o amor do
mundo.
terça-feira, 28 de janeiro de 2020
Um estóico falhado
Cheguei à tarde desta terça-feira irritado e irritado com a
minha irritação. Deveria ter entrado no clube dos estóicos e entregar-me à apatheia. Olhar com indiferença olímpica
os acontecimentos que, por vezes, me acontecem e deixar o mundo correr para a
foz, sem julgar ter o dever de lançar bóias aos náufragos que encontro. As Parcas, porém, não me quiseram ver
perdido entre gente que se entregava a tal filosofar, arrancaram-me da sombra
do pórtico pintado e, no seu sábio julgamento, determinaram que no meu lote também
cabe a irritação. Quis enganá-las e a conselho médico comecei a tomar um
betabloqueante. Pensei, na minha ingenuidade, ou estupidez, conforme as
opiniões, que tinha, ainda em vida, entrado no paraíso pela porta da química.
Não havia irritação que me chegasse. Nestas coisas, a história tem sempre
desenvolvimentos que estão ocultos aos protagonistas. Os betabloqueantes
deixaram de betabloquear as irritações e o paraíso foi dando lugar ao
purgatório e, agora, ao inferno. Eu sei o que o leitor está a pensar. O inferno
são os outros. É verdade, se crermos nas homilias de Sartre. Eu não tomo
partido sobre elas. Oiço o ruído irritante de um aspirador e penso comigo que
deveria falar com essas Parcas ou Moiras, caso esteja mais inclinado para
o grego do que para o latim. Depois, achei melhor não as irritar e deixá-las
longe de mim. Esperam-me horas de grandes inutilidades e isso realiza-me
profundamente. Fosse eu um estóico e tudo me seria indiferente. Bastava
adequar-me à natureza. Estaria irritado, mas feliz.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2020
Ficções e fingimentos
Se tivesse engenho para a poesia épica, hoje escreveria sobre a epopeia da caldeira aqui de casa. Assaltou-me, porém, uma dúvida. Tendo em conta que ela decidiu fazer de morta, talvez o talento requerido fosse o do poeta trágico. Uma tragédia o não haver aquecimento nem água quente. A expectativa é que cheguem os técnicos e façam manobras de reanimação e ela ressuscite, sem que tenha de ir para o hospital ou para a morgue. A tarde ergueu sobre si um véu de chuva. Cobre-se com ele e caminha como uma noiva para o altar. Como ela, também a tarde desconhece que é ali, no altar, que se cumpre o seu destino de vítima sacrificial. Ainda me acusarão de querer destruir o instituto do casamento. Longe de mim tal ideia, chego mesmo a ter grande admiração por quem se casa quatro e cinco vezes. A persistência é uma virtude louvável e digna dos maiores encómios. Os técnicos já deveriam ter chegado. Daqui a pouco espera-me uma função daquelas que pela sua profunda inutilidade se tornam absolutamente imprescindíveis. E são coisas destas que me fazem amar esta pátria. Somos especialistas em ficções. Fingimos que gostamos, fingimos que pensamos, fingimos que sabemos, fingimos que fazemos. É um dom que nasce da combinação genética com a educação que o meio promove. Se os poetas são uns fingidores, são-no porque são portugueses. O que arrasta a extraordinária conclusão de que só existem poetas portugueses. Os outros ou não são poetas ou se o são, são portugueses mas não o sabem. O que faz a falta de água quente.
domingo, 26 de janeiro de 2020
Dia de nevoeiro
Cheguei à janela e disse é hoje. É tal o nevoeiro que D.
Sebastião não pode perder a oportunidade para regressar do seu infausto exílio.
Para tornar a hipótese verosímil, não sei bem onde, ouve-se a voz de Tony de
Matos cantar Tempo Volta para Trás.
Todos sabemos que a preocupação do artista não era propriamente o nosso pobre
rei maltratado nas terras da moirama, mas a Severa. Pensei de seguida que se D.
Sebastião chegasse agora ao aeroporto da Portela, logo a seguir viria a Severa
e os problemas que nos afligem ficariam todos resolvidos. Estou proibido pelo
autor destas palavras de ter opiniões políticas. Um narrador, diz-me ele dia
sim dia não, não se mete em política. Isso é coisa de autores. Eu anuo com
servilismo, mas sempre posso dizer que já conheci uns tantos D. Sebastiões, vi-os
chegar e partir e todos continuam à espera que ele chegue. Um domingo de
nevoeiro é sempre propício às minhas meditações sem nexo. Para tornar as coisas
mais densas, contrariamente ao que canta o artista, as horas para mim não são
dias, nem estes são anos. Aos fins-de-semana passa-se o contrário. Os anos para
mim são dias e os dias são horas. O que me atormenta não é que a Severa se tenha
ido, mas a possibilidade que ao virar a esquina dê com ela. Há encontros que
devemos evitar. O nevoeiro não faz intenção de se dissipar. Tenho de me
apressar, antes que D. Sebastião aterre, eu não possa acenar-lhe e gritar viva
o Rei. Ah, esquecia-me, de política não posso falar.
sábado, 25 de janeiro de 2020
Exercícios melancólicos
Ser avô não é um dado, mas um exercício difícil e
persistente. Depois de um mês de afastamento, o meu neto esteve comigo.
Olhou-me com olímpica distância. Nos seus catorze meses mal condescendeu em estar
ao meu colo, embora lhe agradassem certas cabriolices que fazem parte do
repertório que qualquer avô tem para lidar com netos renitentes. Preferiu fazer
explorações solitárias. A certa altura descobriu umas pequenas pinhas que eu
nem sequer sabia existirem. Achou que as poderia partilhar comigo. Dava-me uma,
esperava que eu a devolvesse e colocava-a onde estava. Recomeçava de imediato o
jogo. Foi-se embora há pouco e deixou um buraco no meio do sábado. Deveria
remendá-lo, mas uma preguiça ancestral insinua-se em mim e prende-me a coisas
triviais. Depois de uma manhã ocupada, deveria ir à rua e comprar o jornal de
fim-de-semana. Há uns anos tinha uma verdadeira obsessão pela imprensa hebdomadária,
comprava uns quatro semanários. Depois, alguns foram morrendo, outros mudaram
de sexo e mesmo o que resistiu perdeu a aura sagrada que tinha naqueles anos.
Hoje olho com condescendência para a prosa que se produz. Se a leio é por
desfastio, muito longe do entusiasmo com que no final da adolescência ou início
da juventude comecei a comprar os meus jornais. Ó miséria, lembrei-me que
o primeiro jornal que comprei com devoção foi o Motor, naqueles anos em que as corridas de automóvel faziam parte
do imaginário de uma adolescência à procura de rumo, como todas as
adolescências. Agora sou avô e há muito que morreram em mim os ecos da luta
entre Jackie Stewart e Emerson Fittipaldi, entre os Tyrrell e os Lotus.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2020
Romantismo tardio
Rápida, a noite aproxima-se no veleiro do entardecer. Como asas gigantescas, as velas da tarde enfunadas pelo vento arrastam a luz e murmuram uma litania dolente para a semana que agoniza. Dois corvos levantam voo do pequeno bosque e desaparecem do meu campo de visão. Anjos negros à procura de almas perdidas nos interstícios da serra, esse conjunto de morros cinzentos, curvados sob o peso dos anos. Não é preciso muito para o romantismo voltar e exibir o seu coração descarnado diante dos olhos atónitos do espectador. A primeira vez que entrei na sede da CGD, na João XXI, em Lisboa, para ver uma exposição, pensei que tinha aterrado numa catedral transposta da Idade Média para os nossos dias. Uma visão romântica das novas divindades. Também hoje visitei uma capela do novo deus e não sei bem por que razão achei que estava num confessionário. Na avenida, os carros lançam já os seus holofotes sobre o horizonte. Circulam devagar, presos à escuridão que avança. Também eu tenho de sair. Esperam-me num café ou, talvez seja mais certo, não tenho nada para dizer. É sexta-feira.
quinta-feira, 23 de janeiro de 2020
Os quatro caracteres
A humidade destes dias abriu caminho por dentro da secura do
clima. Não é uma terra fácil. Exige um carácter compassivo mesmo aos mais
coléricos. Sem a virtude da paciência será difícil enfrentar e suportar os
humores climáticos. Tenho pena, ou não fora um exemplo de melancólico, embora haja
que descontar a tendência para a hipérbole, tenho pena, dizia, que a psicologia
se tenha vindo a esquecer daquela velha divisão dos caracteres em quatro, todos
eles belos como metáforas à deriva num campo em flor. Esta última frase
mereceria ser riscada e não sem violência. O apelo ao pathos através destas estratégias para caçar ingénuos deve ser proscrita.
Fica lá, só para eu não me esquecer que há coisas que nunca se devem escrever.
Voltando aos caracteres, eles faziam uma bela divisão com os seus nomes.
Fleumáticos, melancólicos, sanguíneos e coléricos. O facto de serem quatro
ainda os torna mais dignos de admiração. A perfeição do número par, que se opõe
à imperfeição de qualquer ímpar, contrasta com o caos classificativo com que
hoje em dia designamos as pessoas. Como se pode negar a eficácia de dizer ali
vai uma melancólica? É pena que tenha casado com um colérico. Assim nunca
poderá ter filhos fleumáticos. Tornou-se moda, uma triste moda, ser contra as
classificações. Por tudo e por nada, se grita não me classifiques que eu estou
para lá de todas gavetas com que organizas a realidade. Presunção e água benta,
penso eu, cada um toma a quer. Um ditado ao gosto popular nunca fica mal para
pôr fim a um texto.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2020
Contemplação e pontos Cardio
Com tantos tortos por endireitar e o mundo tão fora dos
eixos, e eu sentado à secretária a pensar coisas que não hão-de salvar ninguém.
Foi o que me ocorreu quando dei comigo a olhar com demora a Adoração do Cordeiro Místico, do
retábulo de Ghent, uma obra dos irmãos van Eyck, agora restaurada. Se pensarem
como motivo da minha contemplação os olhos humanos do Cordeiro ou o jorro do
sangue do seu corpo para o cálice, estão enganados. O que me retém é a ordem
perfeita com que os adoradores são dispostos na adoração, não tanto porque essa
ordem seja uma convenção cristalizada dos poderes sociais, mas antes o
resultado da própria natureza mística da figuração simbólica do Cristo. Meu
Deus, um dia destes ainda me torno um erudito. Não devia dizer estas coisas,
pois contrariam a vulgata social que hoje faz de cartilha maternal pela qual
todos aprendem a ler o que se passa por aí. Recebo uma mensagem. A aplicação
que me controla o exercício diz-me que está tudo OK!, com exclamação para
enfatizar a situação. Depois percebo que é um estratagema reles para motivar-me
a estar ainda dezassete minutos activo e obter mais um ponto Cardio. Desconfio que se obtiver todos
os pontos Cardio em jogo ganho uma
viagem a Ghent, mas talvez o mundo não funcione segundo as minhas conjecturas
e, mal faça uma, ela receba imediata refutação. Uma outra mensagem põe-me
perante um dilema, plausivelmente falso. Será a amizade um sentimento ou uma virtude? Para
piorar as coisas, alguém que desconheço, de um país do leste europeu, pede-me
amizade. Não lhe consigo pronunciar o nome. Ainda bem que não é um pedido de
casamento, pois os meus pontos Cardio
não seriam suficientes para tamanha comoção.
terça-feira, 21 de janeiro de 2020
Pobre Katharina
Passo os olhos pelos jornais e descubro que cinco pinturas
roubadas há quarenta anos na cidade alemã de Gotha tinham sido recuperadas.
Entre elas encontra-se uma de Hans Holbein, o Velho, que o jornal indicava ser Santa
Catarina, um quadro de 1509. Havia naquela mulher uma tal tristeza que duvidei
que se tratasse de alguém tocado pela graça da santidade. É o retrato de Katharina
Schwarz, onde no lugar da beatitude se encontra uma infelicidade resignada com
o mundo e consigo mesmo. Procurei outros retratos de mulheres do mesmo Holbein.
Neles há sempre um elemento desconcertante, como se a beleza tivesse sido
proibida àquelas mulheres e lhes restasse apenas o ar austero para assegurarem
um lugar no mundo. Exceptua-se uma representação de Maria, onde o amor pelo
Menino a resgata dessa rispidez fria e lhe dá uma beleza contida e secreta.
Olho pela janela e descubro que sob a copa das árvores do pequeno bosque
consigo avistar uma rotunda cuja estatuária, tão do agrado popular, me faz
lembrar as soturnas representações do realismo socialista. Sorrio e volto os
olhos para a infeliz Katharina. Apesar da beleza das mãos, a imperfeição do
rosto rapta-a e cerra-a num mundo de onde nenhum príncipe, mesmo de gosto
plebeu, a há-de resgatar. Na rotunda, os carros circulam devagar, talvez em
contemplação, enquanto a minha memória me traz, sem que eu saiba a razão, um
filme alemão visto há uns anos com o estranho nome Adeus, Lenine! Pobre Katharina, pensei.
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