domingo, 7 de agosto de 2022

Um domingo

Por preguiça, decidi ir almoçar ao bar da esquina. O domingo tinha entrado por ali dentro sem pedir licença a ninguém, nem ao proprietário. Não me refiro a qualquer domingo, mas a um muito especial, ao domingo de província sob efeitos do calor. É um dia que se torna lento e as pessoas que estavam no bar, talvez também elas tomadas pela preguiça, entregavam-se com demora inusitada à restauração das forças. Cumprida a função, saí e rapidamente cheguei a casa. Agora, sentado no escritório, janelas fechadas, oiço a música mais adaptada que poderia imaginar para o meu estado de espírito dentro do espírito do dia. Um álbum de 1999 da Deutsche Grammophon chamado Après un rêve, onde o violoncelista letão Mischa Maisky acompanhado pela pianista francesa Daria Hovora interpretam peças de múltiplos compositores franceses. O casamento do violoncelo e do piano cria um ambiente onde quem escuta facilmente se deixa levar por uma doce rêverie, sentindo a música deslizar dentro de si, como se fosse uma carícia delicada. Não há o arrebatamento das grandes paixões, a exaltação do ânimo, mas a leve melancolia que acompanha todos os grandes amores. Mesmo numa peça com o nome de Extase, de Henri Duparc, não existe qualquer sinal de euforia, mas de uma grande contenção, como se a intensidade do espírito e da vida interior exigisse a mais vincada serenidade exterior. É a esta serenidade que entrego o meu domingo de província.

sábado, 6 de agosto de 2022

Irritações ortográficas

O Word está a irritar-me. Não quer que escreva Agosto com maiúscula, apesar de estar na versão de pré-acordo ortográfico. Dada a minha natureza anacrónica – para não dizer intempestiva – regulo-me, no caso dos nomes dos meses e das estações do ano, pelo Tratado de Ortografia, de Rebelo Gonçalves, publicado em 1946. Eu sei que o tempo passa, o mundo transforma-se, que tudo é composto de mudança. Apesar de saber tudo isso, não gosto de ver tratados meses e estações do ano tu cá, tu lá, como se tivéssemos andado todos na escola ao mesmo tempo. A principal razão que me move, porém, é estética. A letra maiúscula em Agosto introduz uma ruptura na continuidade da linha, dando-lhe um ponto a partir do qual o olhar se organiza para tirar prazer visual do texto. Escrever agosto acentua a monotonia com que as letras minúsculas se seguem umas às outras, como formigas num carreiro. Estava eu a escrever estas meditações estéticas quando sou surpreendido, mais uma vez, pelo Word e descubro que deve sofrer de um distúrbio do foro psíquico. Explico. Se escrevo Agosto, ele sublinha a azul e recomenda grafar com minúscula no início. Se, porém, escrevo agosto, ele assinala erro, sublinha a vermelho e sugere que se escreva com maiúscula. Como é possível eu escrever alguma coisa com nexo, se utilizo um processador de texto que sofre destas patologias. Só não me sinto preso num círculo infernal, porque há muito decidi que Agosto só o é se for escrito com a inicial maiúscula. Qualquer leitor, apesar de bem-intencionado, não deixará de pensar que estou sem assunto, como acontece tantas vezes. Uma ilusão, pois estava fisgado num comentário a uma frase de uma especialista em finanças pessoais. A senhora, na sua bondade, informa que por cada dia que temos o nosso dinheiro parado estamos a empobrecer. Vinha explicar um método para enfrentar o empobrecimento. Em resumo, seria pegar no dinheiro todo que se tem parado, pô-lo dentro do carro e andar com ela para a frente e para trás. Mesmo que o pobre dinheiro enjoe ou se canse das idas e voltas, não se deve parar. A terapêutica para a pobreza era boa e merecia uma reflexão mais profunda, mas o Word intrometeu-se, irritou-me e contribuiu para que não me candidate ao Nobel da Economia.

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Da indiferença

Os dias, por agora, apresentam-se nublados pela manhã, o que permite que um ar fresco invada a casa e a arrefeça. Depois, com a partida de nuvens e neblinas, chega o calor. A tarde torna-se difícil. Ir à rua é um exercício penoso. Saí, para fazer uma visita, que é sempre um choque. A cidade estava tomada por uma lenta melancolia. As sombras, a essa hora, ainda eram escassas, as pessoas andavam afogueadas, como se o calor lhes desse uma energia suplementar, para rapidamente encontrarem um abrigo. Tílias, acácias e castanheiros, porém, estão ainda de folhagem exuberante, indiferentes ao penar dos humanos. Por muito que custe ao nosso narcisismo, os outros seres do universo ostentam, para connosco, uma olímpica indiferença, a não ser que a nossa acção os perturbe ou algum predador esfaimado necessite da nossa carne. Por vezes, existem excepções, mas estas servem apenas para confirmar a regra da indiferença que reina no universo. O Sol, por exemplo, não quer saber de nós para nada, nem sequer sabe que existimos ou que ele próprio existe. É indiferente aos outros e a si mesmo. O universo não passa de um concerto de indiferenças, com vários andamentos. Será isso a música das esferas celestes. Foi isto que eu disse, com tom sério, à Lu, a irmã da Marília, que há muito tempo não via. Não se pense, porém, que enlouqueci – ainda será cedo – para estar com esta conversa vinda do nada. Por vezes, a Lúcia – daí chamarem-lhe Lu – sofre de algumas alucinações sobre a bondade do mundo, em geral, e da espécie humana, em particular. E como fui dotado, à nascença, de um espírito de contradição, sempre que oiço certas coisas, ainda por cima ditas com veemência, como o foram, apetece-me, de imediato, provar o contrário. O que vale é que nos conhecemos há muito e fazemos da condescendência mútua uma forma de não indiferença, talvez mesmo de amizade.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Questões de estilo

Tarefas urgentes, embora não ingentes, chamaram-me ao remanso do lar, com um corte no fio das férias. Cheguei aqui e encontrei o Verão, que, por lá onde eu estava, se tinha perdido. O encontro, todavia, não foi coisa que me agradasse. Oiço em mim uma voz dizer, não sem escárnio, que não deveria ter escrito, tão avizinhadas, as palavras urgentes e ingentes. Isso, essa repetição sonora não se coaduna com a limpeza da prosa. Estraga o estilo e o estilo, como há muito se sabe, é o próprio homem. Rimas, assonâncias e aliterações são truques de poesia. A prosa quer-se limpa de repetições. Pois, respondi a mim mesmo, acrescentando: de facto as tarefas são urgentes, mas não ingentes. Se acreditarmos no conde de Buffon, o estilo é a expressão do indivíduo e do seu carácter. Podemos pensar: um mau estilo, um mau carácter; um bom estilo, um bom carácter.  Ora, o que acontece é que excepcionais estilistas são dotados de péssimo carácter e vice-versa. O melhor é não acreditarmos no conde, fruto de uma época que estava subjugada pela descoberta do indivíduo. James Ussher, arcebispo de Armagh, publicou no século XVII uma obra – The Annals of the World – em que determinava, através da análise bíblica, que o mundo tinha sido criado por Deus 4004 anos antes de Jesus Cristo. Ora, Bouffon, a partir das suas experiências laboratoriais, defendeu ser isso impossível. A Terra teria, na altura, 75 mil anos. Há uma diferença substancial entre o erro de Ussher e o de Bouffon. O primeiro procurou no lugar errado. O segundo abriu o caminho para a descoberta da verdade. Essa diferença não tem a ver com o estilo, mas com o lugar de onde e o lugar para onde olham. Ora, esses lugares de onde se olha são muito mais que a cabeça do indivíduo que olha. São comunidades onde se juntam olhadores para orientarem os olhos numa certa direcção. Agora, vou-me dedicar à urgência das tarefas não ingentes.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Capitais e Dias

Hoje, Dia da Melancia, passei pela Capital da Onda. Não bastavam os dias disto e daquilo, este pobre país sofre de uma outra doença grave. Se não mortal, pelo menos, crónica. Agora, não há terra que não seja capital de alguma coisa. Espanta-me, mas não devia espantar, que os idólatras das povoações elevadas, por eles, à categoria de capitais não percebam o ridículo que é afirmar-se como capital do capilé, do caracol, da castanha pilada ou do papo-seco. Conseguimos, ao transformar cada cidade minúscula ou vilória esquecida em capital de qualquer coisa, cobrir o país de ridículo. Por outro lado, esta ânsia de capitalizar evidencia a inveja que se tem da verdadeira capital. Ah… os lisboetas têm a capital do país, mas quem são eles? Nós também somos capital, até mais importante, pois somos a capital do pêlo púbico e não há no mundo nada mais importante que os pêlos púbicos, que também hão-de ter o seu dia, se não o tiverem já. E não há coisa que o pêlo púbico mais deseje do que se tornar público na comemoração da data que lhe é consagrada. Onde me encontro há um ditado. Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Estou há três dias em pleno Inverno, o que não me desagrada, mas também não me inspira para escrever estes textos, que, em verdade vos digo, não valem um pêlo púbico.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Criações e heresias

O romance Os Suicidas, de Antonio di Benedetto, começa com a frase O meu pai acabou com a própria vida sexta-feira à tarde. Acaba com uma outra mais curta: Assim se nasce. Isto é quase tudo o que sei desse romance. Este não é outra coisa senão o texto que liga a primeira à última frase. Também é a sequência lógica – ainda que seja ilógica – que vai de uma premissa a uma conclusão. É possível que esta sequência escolhida por di Benedetto explique a razão por que nenhuma vida, por mais interessante que seja, dá um romance, apesar de não faltar gente a jurar que a sua vida dava um romance. Não dava. Façamos uma experiência e alteremos levemente as frases do autor, ouvi e assenti. A primeira diria o seguinte: O meu pai nasceu sexta-feira à tarde. A outra rezaria: Assim se morre. Esta sequência é lógica. Começa com o nascimento e acaba com a morte, tal como a ordem natural das coisas. Ora, aquilo que faz do romance um romance é não se submeter à ordem natural das coisas. Subverte essa ordem, ao mesmo tempo que cria no leitor a ilusão de que o não faz. É possível que por detrás de todo o trabalho artístico se esconda um problema teológico, uma revolta contra a ordem criada das coisas. Todos os criadores serão verdadeiros heresiarcas. Tudo isto contou-me hoje no café o padre Lodo, na longa conversa que tivemos. A não ser, acrescentou ele, que se veja no acto da criação divina uma revolta contra a inexistência e o nada. Nesse caso, aqui o meu amigo jesuíta riu-se, os artistas seriam os únicos seres humanos autenticamente ortodoxos, e pessoas como eu hereges, já que me falta talento para criar heresias e me tornar um autêntico heresiarca.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Memórias

Eu pensava que era um programa de férias já acabado. Ir a um café numa praça onde existe um parque infantil. Durante anos, enquanto as minhas netas eram crianças, era uma alternativa à praia, caso o dia não estivesse propício, ou uma ocupação do pós-praia. Agora, que são decididamente adolescentes, pensei que não queriam lá ir. Puro engano. Querem ir ao café e, vergonha minha, ao parque. Sugeri que talvez não tivessem tamanho adequado ao parque. Não interessa, responderam, vamos lá ver para recordar. Lá terei de ir com elas. O que me espantou foi o papel da memória ser já decisivo em altura tão precoce. Vão lá apenas para recordar outros Verões. Não me lembro se também eu fui assim. Haverá, depois, um momento de rasura das memórias, como se cada um tivesse necessidade de limpar espaço no disco rígido para acumular novas informações, para depois, paulatinamente, os ficheiros apagados irem sendo recuperados mesclados de nostalgia. Um dia dirão: vínhamos aqui com os avós e brincávamos a isto e àquilo. Nesse dia, os avós já não estarão presentes, mas, de alguma maneira, terão feito o seu trabalho.

domingo, 31 de julho de 2022

Termóstatos

O dia está calorento. O céu desfez-se das nuvens e neblinas matinais e deixa, agora, que os raios solares dardejem impiedosas. As sombras retraem-se. Ao longe, ouve-se o murmúrio do mar. Foram todos para a praia, contrariando uma antiga regra familiar que proibia a praia ao domingo. Não por motivos religiosas, mas para evitar as grandes aglomerações. Só eu me mantive fiel à regra. Quanto a praia, para mim, todos os dias da semana são domingos. E em todos eles mantenho fidelidade à velha regra. Literalmente, não sou um banhista, embora tenha começado o dia com um banho, mas de chuveiro. Leio que o filósofo David Chalmers afirma que o termóstato tem consciência. Não vou procurar a sua argumentação. Imagino-a, apenas. É possível que os termóstatos tenham consciência, pois controlam as temperaturas num qualquer sistema, mantendo-a entre dois limites. A partir de um certo conhecimento da temperatura, ele toma a decisão de a baixar ou elevar, pondo em acção um determinado dispositivo. A partir de hoje darei mais atenção aos termóstatos e evitarei tratá-los mal, não vão eles ter consciência disso e lançarem sobre mim uma fatwa. O facto de eu não ser um banhista pode estar ligado a um qualquer termóstato que exista dentro de mim e que me ordena que me afaste desses sítios tenebrosos onde a humanidade insiste em apresentar-se quase despida. Aproveita o calor do dia e toca de mostrar aquilo que toda a gente dispensaria ver.

sábado, 30 de julho de 2022

Desacertos

A vida desacerta-se com muita facilidade. Projecto: caminhar todos dias de manhã. Desacerto: hoje fiquei em casa. Às oito e pouco já estava em sol ameaçador. Protelei para o cair da noite, quando esse mesmo sol estiver mais apaziguado. Então, porei os pés ao caminho e irei acumulando os pontos cardio que, segundo promessa da OMS, haverão de me prolongar a vida. Como diz o ditado popular, a fé é o que nos salva. Agora que o escrevo, fiquei perplexo. Como é possível que esta afirmação se tenha tornado um ditado popular num país católico? Na verdade, ele é uma reformulação da sola fides de Martinho Lutero, um dos cinco solas que sustentam a Reforma protestante. Talvez eu esteja a ver mal, pois os meus conhecimentos de teologia – seja romana, seja reformada, seja qualquer outra – são exactamente nenhuns. Tenho estado a arrumar múltiplos arquivos no computador. Como é possível que uma coisa tão organizada permita que o utilizador crie nela um caos? Sempre achei curioso o facto de os franceses chamarem ao computador ordinateur, ordenador. Entre ordinateur e computer vai toda uma diferença civilizacional. Os franceses privilegiam a ordem – e também a desordem – enquanto os ingleses o cálculo. Os primeiros são um povo filosófico (a ordem é uma das regras do método de Descartes), os segundos, um povo comerciante. O facto de termos chamado computador ao computador e não ordenador diz bem do nível de decadência a que chegou entre nós a cultura francesa. Agora, somos todos anglófilos, talvez com esperança de nos tornarmos todos comerciantes e, desse modo, desaguarmos no oceano da riqueza. Também é verdade que a ordem nunca foi um ponto forte na existência dos portugueses, mesmo quando a aceitaram mansamente, quase sem revolta que se notasse. Talvez os portugueses achassem que a ordem férrea a que se sujeitaram lhes permitiria viver na pura desordem. Talvez. Em vez de estar na praia, fazendo companhia à família, estou por aqui a escrever coisas sem nexo, cultivando a minha própria desordem. Por isso escrevo num computador e não num ordenador.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Falta de noção

Esta é a última sexta-feira deste mês de Julho, que se há-de finar à meia-noite do próximo domingo, para dar lugar ao mês de Agosto, que começará numa segunda-feira. Isto mostra a incongruência que acompanha o calendário, fazer começar um mês pelo segundo dia de uma semana.  Uma hipótese que tantas vezes me assombra o espírito diz que sempre que os homens tentam regular o tempo estão condenados a cair na incongruência. Regular significa impor regras. Ora, o tempo é um animal selvagem que não se deixa domar e, muito menos, domesticar. Por mais calendários que se produzam e divisões que se arquitectem, o tempo nunca deixará de espinotear e distribuir coices a quem se aproxima dele. Agostinho de Hipona – sim, o velho Santo Agostinho – teve consciência disso: Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei. Do tempo, tem-se um saber intuitivo, mas não racional, explicativo. Dizer que que se tem um saber intuitivo não é outra coisa senão confessar uma ignorância. Uma das experiências mais comuns do carácter enigmático do tempo dá-se quando se tem já, segundo os padrões humanos, uma idade considerável. Acontecimentos que se deram há cinquenta anos parecem ter sucedido ontem, como se o tempo mal tivesse passado. Talvez o tempo não passe, seja pura imobilidade e que passado, presente e futuro não sejam mais que criações de mentes sôfregas e inquietas. Deveríamos, nesse caso, pensar o tempo como o espaço. Nós andamos pelo espaço e andamos também pelo tempo. No caso do primeiro, podemos ir e vir, apesar de ele permanecer imóvel relativamente àquele que o calcorreia. No caso do segundo, só podemos ir. O espaço é revisitável, o tempo não. Contrariamente ao que diz o título do romance de Evelyn Waugh, não é possível reviver o passado em Brideshead, pois o passado não seria mais do que um truque da memória que não se conforma com a imobilidade esfíngica do tempo. Os almoços de férias e aquilo que neles se bebe não me parecem ter o condão de aclarar o pensamento. Pelo contrário, suscitam ideias fantasiosas, sobre as quais se escreve sem ter a mínima noção do que se está a falar. Sim, confesso, também eu sofro de uma enorme falta de noção.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Paixões

Sempre me impressionou uma passagem da Carta aos Romanos, de S. Paulo. Trata-se do versículo 19 do capítulo 7, que reza assim: Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. Esta falência da vontade, essa sua impotência para determinar a acção, é explicada, nos versículos anteriores e posteriores, pelo pecado. A questão não é original. Encontramo-la num autor não cristão, anterior a Saulo de Tarso. Nas Metamorfoses, de Ovídio, publicadas no ano 8 da nossa era, está escrito, em VII, vv. 19-21, o seguinte: Mas uma nova força me arrasta; a paixão aconselha uma coisa, a mente, outra; vejo a melhor e aprovo-a. Sigo a pior. Terá S. Paulo lido Ovídio? Não faço ideia. Seja como for, sinto-me mais apaziguado. Quantas vezes não escolhi o pior e deixei de lado o melhor. Seja a lei paulina do pecado, seja a força da paixão em Ovídio, encontrar uma descrição de quem passa por igual experiência retira-nos de uma consciência solitária e mergulha-nos numa comunidade de pessoas em quem a inteligência não é suficiente para guiar a acção. É evidente que há sempre gente capaz de estragar a nossa pacificação. Por exemplo, o poeta romano Virgílio, na Eneida, IX, 184-15 não se coíbe de o fazer: São os deuses, Euríalo, que suscitam esse ardor nas mentes, ou cada um converte em deus a sua terrível paixão. Estas meditações são inapropriadas para um primeiro dia de férias. Deveria estar deitado na areia a apanhar banhos de sol, a ouvir o rumorejo das ondas e a deixar-me invadir por um tédio sem fim. Tinha o dever do spleen, mas como Ovídio ou S. Paulo faço o que não quero. Quero ser um banhista dedicado e não ponho um pé na areia. Uma mosca entrou para o sítio onde estou. Estes insectos deprimentes têm uma tendência para gostar de mim e não me largarem. Piores que as moscas são as melgas. Têm uma verdadeira paixão por mim. De tal maneira que me mordem, sugam o sangue, zunem-me aos ouvidos como se cantassem uma canção de amor. Não posso dizer que nunca suscitei uma paixão.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Problemas morais

O que me haveria de acontecer. Chegar a esta idade e ser posto perante problemas morais. As minhas netas têm um cão, ainda não será completamente adulto. Eu não sou muito atreito a estabelecer relações interespecíficas. Não faço mal a uma mosca, quanto fará a um mamífero. Contudo, os animais domésticos – ou selvagens – não exercem sobre mim qualquer fascínio, nem sinto que tenha de comunicar com eles. Imagino um pacto como o horizonte da minha relação com as outras espécies. Não lhes faço mal, elas não me fazem mal. O cão, a que deram nome de pessoa o que, por vezes, provoca situações equívocas, insiste em ser meu amigo. Senta-se diante de mim, se é que os cães se sentam, levanta a cabeça e põe-se a olhar fixamente para a minha pessoa. Só lhe falta dizer: podemos ser amigos? Olho-o de esguelha e resmungo que ele quer é que eu lhe dê algum tipo de comida. Os animais domésticos são uns oportunistas, penso, e volto-lhe as costas. A insistência no pedido de amizade começou a levantar-me problemas morais, como disse. Será que sou um malvado de um especista? Bem, esta pergunta é retórica. Eu sou, até prova em contrário, um especista. Advogo, com profunda convicção, que a espécie humana, apesar de não ser grande coisa, é superior a todas as outras conhecidas. Poderei afirmar que sou um kantiano. Os seres humanos sendo pessoas são fins em si mesmos. Os animais não sendo pessoas, não são fins em si mesmos. Esta superioridade implica certas coisas, como deveres para com as outras espécies. Não as maltratar, por exemplo. Contudo, não pode implicar que aceitemos os pedidos de amizade que cães, gatos e outros animais não humanos nos façam, quando se põem a olhar para nós como se fôssemos um santo no altar. Quem tem Facebook é obrigado a aceitar todos os pedidos de amizade que lhe são enviados por outros seres humanos? Tanto quanto sei, ninguém é obrigado a isso. Por que razão haveria de aceitar esses pedidos vindos de seres não humanos? Será a minha conduta imoral?

terça-feira, 26 de julho de 2022

Paixão de ter razão

O filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, num anexo aos seus Ensaios de Teodiceia, escreve a propósito da controvérsia entre Thomas Hobbes e o bispo de Derry, John Bramhall: (…) mas é uma pena que ambas as partes se interrompam por causa de pequenas provocações, como acontece quando se é irritado em algum jogo. O bispo fala com muita veemência e usa disso com certa arrogância. O Sr. Hobbes, por seu lado, não tem humor [suficiente] para poupá-lo, e demonstra bastante menosprezo pela teologia e pelos termos da escola à qual o bispo parece ligado. O que discutiam eles, perguntará o leitor. Isso é irrelevante. Interessante é a analogia entre o debate de ideias e o jogo, não de um jogo amistoso, mas conflitual. A paixão de ter razão dificilmente abandona os seres humanos, mesmo aqueles que vivem na estratosfera da razão e se dizem investigadores da verdade. Esta surge como uma justificação para o desprezo pelo o outro, para o exercício da arrogância e para a falta de humor. É possível os seres humanos trocarem ideias, entrarem em debate e nunca deslizarem para o ataque ao antagonista. Contudo, raramente o amor-próprio permitirá que isso aconteça. Começa-se por ver o erro nas ideias, mas logo se passa para o erro na própria pessoa que defende essas ideias. A paixão de ter razão, de estar na verdade, cega os apaixonados. Quando essa paixão pelas ideias se apodera de um Estado, podemos esperar o pior para os seus cidadãos ou, melhor, súbditos, pois não há pior tirania do que a das ideias.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Fluidificação

Avanço com alguma rapidez no romance Aniquilação, de Michel Houellebecq. Parece um encontro de pessoas desacertadas com a vida. Não se trata da tradicional finitude humana, que torna patente os limites dos seres mortais, mesmo se dotados de razão. É mais que isso. No âmbito da finitude e dos limites humanos, a generalidade das pessoas alcançava uma certa solidez e dirigia a vida por esse caminho. Aquilo que o romancista francês torna manifesto é a fluidificação não apenas das relações humanas, mas de cada ser humano, como se cada um tivesse sempre pronto a penetrar num estado em que se derrama no palco da vida. Há alguma razão na observação de Houellebecq. A solidez – por exemplo, a solidez de um carácter – perdeu sentido. Os contornos dos indivíduos tornaram-se difusos e porosos. Ou, então, Houellebecq está velho e perdeu a capacidade de perceber as novas formas de vida. É uma coisa que acontece com este narrador. Os debates que animam as gerações mais novas são-me quase incompreensíveis. Haverá um limite de idade para compreender aquilo que é novo. Talvez tudo esteja sólido, só que os que envelheceram são incapazes, por cansaço, de apreender a solidez, tomando-a por uma torrente líquida que se expande sem objectivo compreensível. É verdade, foi uma segunda-feira árdua, o que enviesa a forma como se escreve.

domingo, 24 de julho de 2022

Um dia sem qualidades

Este quase parece um domingo de férias, mas não o é. Assim se descobre que a realidade está sempre disposta a iludir-nos, mostrando-nos facetas contrafeitas, para que nós nos deixemos embalar pelo canto das sereias. O que me vale é saber da receita que protegeu os companheiros de Ulisses. Os meus ouvidos estão indisponíveis para as sereias que por aí abundam. Não é uma sereia, por isso estou a ouvi-la. Refiro-me a Beatriz Nunes, uma cantora portuguesa de Jazz. Ontem descobri um contrabaixista de nome André Rosinha. Comecei a ouvir os discos dele e, entre eles, veio o álbum À Espera do Futuro, onde forma um trio com Paula Sousa (piano) e Beatriz Nunes (voz). Hoje já fiz a caminhada de vários quilómetros, aquela que fornece pontos cardio, tendo andado seiscentos metros dentro do mar. Não se pense que foi sobre as águas. Não, foi sobre o cimento armado de um molhe que rasga o oceano e leva os caminhantes até a um farol. Chegados aí, dá-se uma volta ao farol e retorna-se ao ponto de partida, que fica ainda longe. Parece não ser uma aventura particularmente exaltante, mas, posso assegurar, é bastante agradável. E estamos todos cheios de coisas desagradáveis. Agora, vou esperar pela tardia hora do almoço dominical, enquanto me deixo embalar pela voz de Beatriz Nunes. Em dias como este, não me ocorre nada para dizer.

sábado, 23 de julho de 2022

Uma lição moral

Lá consigo emparelhar o telemóvel com a coluna. Derrotado a serpente da incomunicação, oiço o Quarteto de Cordas nº 2, de Beethoven. Fecho os olhos e deixo a música escorrer por mim. Sinto saudades da minha aparelhagem, abandonada por um fim-de-semana. Quase que me sinto de férias. Uma ilusão. Ora, se não fossem as ilusões a vida seria insuportável, digo-me, não sem condescendência. O véu de Maya com que a cobrimos torna-a até desejável. Hoje, estou apostado em desviar-me de qualquer meditação pessimista. O dia nem começou mal, com uma caminhada proveitosa, logo após o pequeno-almoço. Depois, passei a uma gestão cuidadosa deste sábado, não vá ele dissolver-se sem que eu lhe tenha dado a devida atenção. Os dias são amos tirânicos, exigem de nós aquilo que podemos e o que não podemos dar-lhes. Se não atendemos as suas exigências, dissolvem-se em poeira. Nada pior do que passarmos pela vida carregados de poeira. Esta parece-me uma boa lição moral, uma lição indicada para terminar o texto. Não vás pela vida fora carregado de poeira! Eis o imperativo.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Mundos ficcionais

Thomas Bernhard é, dos autores do século XX, um dos que mais gosto. Na sua escrita não há qualquer facilidade nem concessão ao bom gosto e ao agradável. Talvez a sua história pessoal ou a doença pulmonar de que sofria – e de que viria a morrer – o tenha predisposto para um feroz pessimismo e para o cultivo do escárnio. Isto para além de um contumaz ressentimento perante o seu país, a Áustria. Em Betão (1982), escreve o seguinte: As pessoas têm um cão e são dominadas por ele, o próprio Schopenhauer não se deixou guiar pela sua cabeça, deixou-se guiar pelo seu cão. Este facto é mais deprimente do que qualquer outro. No fundo, não foi a cabeça de Schopenhauer que determinou o seu pensamento, mas o cão de Schopenhauer, não foi a cabeça de Schopenhauer que odiou o mundo, mas o cão de Schopenhauer. Não é preciso ser-se louco para afirmar que Schopenhauer teve um cão no lugar da cabeça, mas não teve cabeça. A leitura de Bernhard não é para pessoas que cultivam o optimismo ou que pretendem salvar a sua existência cultivando a ilusão das coisas boas deste mundo. Também não é própria para quem tem sonhos progressistas e está sempre em luta por um mundo melhor. Curiosamente, a diatribe contra Schopenhauer contém ainda um princípio de esperança, o qual se revela em muitas outras passagens de múltiplas obras do escritor austríaco. Há na sua denúncia da hipocrisia humana um desejo – pelo menos, um desejo – de encontrar um território onde as pessoas possam encarar-se a si mesmas, suportar o que são e, presume-se, estabelecer relações mais saudáveis com os outros. O texto citado pertence a uma colecção de obras ficcionais das Edições 70, denominada Caligrafias. Era dirigida por Eduardo Prado Coelho e, como seria de esperar, constituída por grandes obras literárias. Foi nessa colecção que li a trilogia Os Sonâmbulos, do também austríaco Hermann Broch. Começo a ficar preocupado com esta prática da reminiscência. Prova, como pensa Paul Raison, personagem de Aniquilação, o último romance de Michel Houellebecq, de uma vida falhada. Hoje estou preso neste mundo de papel que é o romance. Vou de Thomas Bernhard a Michel Houellebeq, passando por António di Benedetto, de que comprei há pouco Os Suicidas. A verdade, porém, é que também eu sou um narrador e, não passando de um ser de papel – neste caso, nem isso, sou um ser virtual num monitor – só os mundos ficcionais são o meu mundo. Digo mundo e não realidade, pois esta, como se sabe, é insuportável e, para mim, inacessível. 

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Comunicações e fatalidades

Hoje o dia não começou mal. O diálogo com a balança foi civilizado e ela retirou-me mil e quatrocentos gramas relativamente à última conversa. Espero que continue benevolente. De seguida, apesar da zona parecer ter-se transformado num estaleiro, com um barulho de máquinas que não acaba, consegui ter o discernimento suficiente para tomar uma decisão, a qual me deu um sentimento de ter escolhido o melhor dos caminhos possíveis. O quotidiano continuou animado. Uma chamada da operadora de comunicações, onde um rapaz debitava, numa retórica amorfa, uma ladainha que pretendia uma qualquer fidelização em troca de não se sabe bem de quê, talvez de vender a alma ao diabo. Ainda pensei dizer-lhe que não tinha inclinação para Fausto, mas seria introduzir mais ruído na comunicação. A conversa lá chegou ao fim e com um acordo. Tudo continuaria como está, inclusive a minha não fidelização ao demónio que opera as comunicações naquele lugar específico do inferno. A vida é assim, há dias que temos de enfrentar os pobres Mefistófeles que tentam desencaminhar as almas para poderem pagar as contas ao fim do mês, coisa que merece o máximo de respeito, sublinhe-se. De súbito, livre da operadora, dou com uma citação de Cioran, retirada dos Silogismos da Amargura: Uma poesia digna desse nome começa pela experiência da fatalidade. Apenas os maus poetas são livres. Há na frase qualquer de presunçoso relativamente aos poetas. Estes sê-lo-iam por uma escolha que não a deles, seriam uma espécie de eleitos, de cuja eleição não poderiam fugir. Ser poeta não dependeria do livre-arbítrio. A presunção não estará na eleição, mas no facto de se restringir à poesia. Refaçamos o dito de Cioran: Uma olaria digna desse nome começa pela experiência da fatalidade. Apenas os maus oleiros são livres. Radicalizemos mais um pouco: Uma recolha do lixo digna desse nome começa pela experiência da fatalidade. Apenas os maus homens do lixo são livres. Ainda outra tentativa: Uma vadiagem digna desse nome começa pela experiência da fatalidade. Apenas os maus vadios são livres. Não há quem não possa reivindicar um destino, uma fatalidade para se apresentar perante os outros. Há uma coisa, porém, que Cioran não explica. Se a fatalidade não é uma ilusão, como poderão ser livres os maus poetas? E se ela é uma ilusão, então os poetas dignos desse nome serão homens livres, mesmo que o não saibam. 

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Quantos dias esperar?

Meu Deus, como foi possível eu não dar por isso? E ao não dar por isso, não pude associar-me à comemoração. Um erro imperdoável. Ontem, dia 19 de Julho, comemorou-se o Dia do Aparelho Dental. Devido à minha contumaz distracção, temo que exista um Dia da Omoplata de Platina e eu não saiba. Só espero estar atento para, caso haja um, não perder o Dia do DIU. Não se trata de um dia referente ao território de Diu que fazia parte daquilo a que se chamava a Índia portuguesa. Quando andei na escola primária ainda se estudava como fazendo parte de Portugal Goa, Damão e Diu, apesar de serem já Índia indiana. Estou mesmo a falar do DIU, do dispositivo intra-uterino. Se o aparelho para os dentes tem um dia, por que razão haveria de ser recusado um ao aparelho para o útero, o qual tem uma utilidade incomensuravelmente maior do que dispositivo para os dentes. Se me pedirem uma prova, eu posso oferecer um argumento de autoridade, e que autoridade. Jorge Luís Borges, no seu conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, escreve: Do fundo remoto do corredor, espreitava-nos um espelho. Descobrimos (a altas horas da noite essa descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram abomináveis, porque multiplicam o número de homens. Ora, se o DIU não tem o poder de aniquilar os espelhos, tem, no entanto, o poder de permitir que a cópula não implique a consequência abominável da multiplicação dos homens. É verdade que o meu argumento de autoridade arrasta consigo uma polémica teológica, mas, numa sociedade laica, parece-me imbatível. Juro que estarei atento, caso não me esqueça, para todos os dias que decorrem ao longo do ano com as suas inauditas comemorações, até que chegue o do DIU. Da boca ao útero quantos dias se terá de esperar?

terça-feira, 19 de julho de 2022

Burocracia matrimonial

Um homem faz anos e recebe, da sua mulher, como presente de aniversário – do seu quadragésimo sexto aniversário – um livro. Caso esse homem fosse vivo, faria este ano, lá para Dezembro, 106 anos. Sei tudo isso através da dedicatória inserta numa das primeiras páginas de um romance comprado num alfarrabista. Sei também o nome da mulher, mas não a idade que ela teria, caso fosse viva. Também não sei o nome dele. Esta oferta ocorre no ano de 1960 e o que está escrito manifesta o cumprimento de um dever, mas não a presença do travesso deus Eros. Ela usa a expressão Felicito-te pelas tuas 46 primaveras. É quase um comunicado oficial, um exercício proveniente da burocracia matrimonial. Curiosamente, a mulher tem um apelido toponímico (não sei se será dela ou dele) que me chama a atenção. Alguém daquela família nasceu numa vila, de que tomou o nome para apelido, onde terá nascido, também, uma das minhas bisavós. Tento imaginar que casamento será esse, mas pertence a uma geração que me é completamente desconhecida. Imagino que sejam católicos – pois o autor do livro, um romance, é um padre – e que teriam alguns hábitos de leitura, mas não seriam particularmente ricos. Um livro como oferta. O livro está aberto, as folhas foram cortadas até ao fim, indício que foi lido. O autor é irrelevante no panorama da literatura nacional, a sua escolha parece motivada por uma visão ideológica e não por um ilustrado interesse literário. É possível que não tenham sido felizes nem infelizes, mas terão levado o contrato até ao fim. E isso era fundamental naqueles tempos. É provável que tenham tido filhos e netos. Terão sido estes a desfazerem-se dos livros dos avós. Se o não tivessem feito, o livro não me teria chegado hoje às mãos e eu não teria assunto para escrever.