sábado, 10 de setembro de 2022

Sebastianismo

Um terço de Setembro já foi consumido pelas chamas do tempo. A metáfora não será brilhante, mas não deixa de ser quente. Por outro lado, talvez aquilo que se aproxime mais da inexorabilidade da marcha do tempo seja a dos incêndios. Leio o romance O Reino Encantado, de Mário Ventura. Há qualquer coisa nele que me irrita. O reino encantado seria uma referência a acontecimentos ocorridos no Brasil com uma seita sebastianista. O escritor lera uma referência ao assunto no livro de João Lúcio d’Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, provavelmente na mesma edição que eu tinha, a da Editorial Presença, publicada em 1984. O livro é de 1918, editado pela Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira. Procurei o meu exemplar, mas perdeu-se numa das voltas da vida. Acedi a um pdf da obra, na Archive.org. A cópia é a de um exemplar que foi comprado em 4 de Dezembro de 1918, por alguém com os apelidos Freitas Veloso. Data e assinatura constam numa das primeiras páginas onde apenas se encontra o título da obra. É plausível que a obra tenha pertencido, depois, a uma outra pessoa, pois na mesma página encontra-se uma assinatura de alguém com nome próprio Manuel e com um apelido ilegível. Debaixo desta assinatura não consta qualquer data. Como é que este exemplar foi parar à Universidade de Toronto, à Robarts Library, não faço ideia. O certo é que foi lá digitalizado e, depois, cedido à Archive.org. As referências de Azevedo aos acontecimentos em Pernambuco são escassos, uma página e mais três linhas de outra. Cito uma pequena passagem para mostrar aquilo que terá atraído Mário Ventura: O embusteiro sanguinário, que capitaneava esses energúmenos, logrou convencê-los de que por sacrifícios humanos se alcançaria desencantar o monarca, e que as vítimas ressuscitariam com êle, para participarem dos tesouros que ao seu povo então distribuiria. O romance, pelo menos nos 3/5 que já li, trata do trabalho do escritor na busca de informação fidedigna dos acontecimentos (1818 e 1836) que envolveram duas seitas sebastianistas. Numa entrevista a um jornal, na altura da publicação do romance (2005), o autor refere que queria mostrar a carpintaria do romancista. Ora numa bela cadeira, o que apreciamos é a cadeira e não o trabalho que a produziu e é isto que me está a irritar, estar perante um romance sobre fazer um romance, melhor, sobre a recolha de materiais para fazer um romance. A irritação, porém, não é suficiente para pôr o livro de lado.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Grandeza

Chegou o fim-de-semana. O carrocel de úteis inutilidades suspende-se por dois dias, para que o corpo entediado se aliene da sua situação. Sobre tudo isto, posso usar como resumo um poema de um poeta meu amigo: esperar anunciar garantir prometer / só me resta a fraude // um rasto de sangue lento / e avançar, e vencer, e temer. Conformemo-nos, contudo, com aquilo que a vida é, se ela é alguma coisa. Um interregno nesta proibição de falar de política. Sou um narrador republicano, assim me criou o autor, de um republicanismo mudo e invisível. Porém, quero dizer que gostava da Rainha de Inglaterra. Apesar de não ter qualquer poder, tinha um poder imenso que nascia do seu exemplo. Onde há grandeza, devemos prestar tributo, e Isabel II engradeceu não só a Monarquia britânica, como o mundo, que anda por aí tão falho de grandeza. Fim de interregno, retorno da proibição. Uma nota de rodapé, apenas, antes de acabar com o interregno. O filho de Isabel II escolheu o nome de Carlos III. Não sei se será um bom augúrio. O primeiro dos Carlos, um absolutista talvez católico, foi executado. O segundo, filho do primeiro, dissolveu o parlamento e foi casado com Catarina de Bragança, mas não deixou boas recordações em Inglaterra, absolutista tal como o pai. Desconfio que a escolha do já terceiro dos Carlos não foi muito assisada, ele que podia ter escolhido Artur, Filipe, Jorge, logo haveria de escolher o pior dos nomes possíveis. Voltemos a esta sexta-feira que desliza sem pressa para o fim-de-semana. Deixemo-nos invadir pela vinda não de D. Sebastião, mas dos dias descomprometidos com o labor.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Alba

Oiço uma faixa denominada Alba, do álbum Echoes, do Søren Bebe Trio. Já o o traçado with a stroke, como se tivesse sido trespassado por uma seta me deixa em contemplação estética, mas nada que se compare com a palavra Alba. A própria sonoridade produz em mim uma certa ideia de luminosidade ainda não maculada, uma luz virginal. Contudo, a sombra semântica não é a única coisa digna de atenção. Devemos dar atenção ao som, à sua melodia e à promessa que ela contém. Alba é uma palavra lenta, que se diz devagar, tal como deve ser lento o romper da aurora. Qualquer precipitação pode perder o dia. Por fim, e não menos importante, a configuração gráfica, o modo como a palavra se apresenta diante do olhar. No oceano da prosa, a configuração das palavras perde-se na massa aquático do texto, mas quando se trata de poesia não é qualquer palavra que nela pode figurar. Esta interdição não se deve nem ao som nem ao sentido, apenas à imagem dela no papel, naquelas linhas que representam rios paralelos que nem no infinito se deverão encontrar. É isso o que são os versos. Rios paralelos, uns mais caudalosos que outros, mas sempre rios e nunca oceanos ou mesmo lagos. Hoje é dia 8 de Setembro, choveu nas primeiras horas do dia e a tarde está encoberta, presa a um calor húmido. Oiço as minhas netas, inventam jogos com que ocupam, por instantes, a sua adolescência. Quanto tempo faltará para que estar aqui se torne uma seca?

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Emancipações

Há coisas que são efectivas libertações, se não mesmo acontecimentos emancipatórios. Emancipei-me desse dispositivo arcaico que incomoda qualquer homem, quando não usa casaco. Usei o adjectivo arcaico não porque saiba que o dispositivo em causa seja muito antigo, mas porque fica bem classificar qualquer coisa de arcaica. Fui emancipado pelo telemóvel. Não apenas por ele, mas por essas coisas maravilhosas que dão pelo nome de aplicações, mais conhecidas por app. Dinheiro? Uma app resolve. Cartão de cidadão, carta de condução, documento único automóvel e não sei mais o quê? Outra app resolve. Cartões diversos? Outras app resolvem. Emancipei-me da carteira, desse trambolho que não fazia a ideia onde, não vestindo casaco, o haveria de colocar. Não podemos negar a existência de progresso no mundo, nem mesmo de progresso moral, pois tudo aquilo que nos liberta e emancipa de tutelas várias é moralmente bom e substitui algo que, pelo seu carácter constringente, nos rouba a liberdade. Diante de mim tenho dois pequenos cadernos ou, para dar um mais cosmopolita, dois notebooks. São de excelente papel, têm capas atraentes, apetece mesmo estar com eles na mão. De resto, não servem para nada, pois não lhes maculo as páginas com a minha letra sofrível. Sofrível é uma palavra que me fez recuar muitos, muitos anos. Quando era estudante pós-primário, havia uma estranha escala de classificação do desempenho dos alunos. A estranheza, uma inquietante estranheza, uma real Unheimlichkeit freudiana, vinha da introdução entre o medíocre e o suficiente – melhor, entre o medíocre mais e o suficiente menos – do sofrível. Num dos dicionários de língua portuguesa que uso, no verbete sofrível encontro o seguinte: antiquado – nota escolar um pouco inferior a suficiente. Eu que recebi classificações sofríveis tenho, por isso, a prova do meu arcaísmo, para além da minha insuficiência. Fui classificado por uma escala definitivamente antiquada. Imagino que terá sido algum professor com pouca paciência para os desempenhos dos alunos que inventou o sofrível. O que este escreveu, pensou, pode-se suportar, pode-se sofrer. Daí o sofrível. Acho que vou oferecer os notebooks de papel às minhas netas.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Estátuas de sal

Resisto, mas o poder da realidade é mais forte que o meu ou de qualquer um que lhe resista. Realidade deriva de real, que em latim – reāle – se origina em res, que significa coisa. Há um curioso sentido de real: aquilo que é relativo às coisas e não às pessoas. Aqueles que, como este pobre narrador sem narrativa, tentam resistir à realidade fazem-no para impedir a sua coisificação, a sua transformação em coisa. Ora, parece ser o destino de qualquer pessoa transformar-se em coisa, metamorfosear-se nessa coisa que está aí. Quanto mais reais, menos pessoas somos. Portanto, a realidade é uma enorme e poderosa máquina de converter pessoas em coisas. No Antigo Testamento há uma história que confirma o que acabo de escrever. Em fuga de Sodoma, Lot e a família foram avisados para não olharem para trás. Caso contrário, seriam transformados em estátuas de sal. Ora, a mulher do sobrinho de Moisés não conseguiu suster a curiosidade e olhou para trás, para a realidade de onde fugia. Foi coisificada. Moral da história? Não devemos ter contacto intenso com a realidade, caso contrário viramos estátuas de sal ou coisa pior. Seja como for, não se pense que mergulhar no ideal e viver nesse éter sublime salva quem quer que seja de se transformar se não em estátua, pelo menos em sal.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Sobre a inovação

Fui reconstituir um dente. O tempo de espera para além da hora marcada triplicou o tempo da reconstituição. Ouvi um pedido de desculpas, não foi mau. Alguma coisa estará a mudar, ainda que muito lentamente. Estou a exagerar, mas é preciso não esquecer que tenho, por vezes, uma certa atracção pela hipérbole. Como hoje é um dia dedicado à medicina, estou com curiosidade para ver quanto tempo, para além da hora marcada, esperarei no cardiologista. No livro de Houellebecq que estou prestes a acabar, a personagem principal, a dado momento, refere que está longe o tempo em que os caminhos de ferro franceses tinham como ponto de honra cumprir os horários. Portanto, ainda há uma memória de que em tempos cumprir o horário era sagrado. Não é o caso da medicina em Portugal. A experiência arcaica é que os horários não são para cumprir. Quando há esculápios que se empenham em fazê-lo – e começa a haver – estamos perante uma quase novidade. Era óptimo que se transformasse numa tradição ou, mesmo, num dogma cuja infracção representasse uma heresia. Não é que, nos dias que correm, a heresia afaste alguém de a cometer. Tornou-se marca de ousadia e distinção ser herege. Não me refiro apenas à religião, mas a qualquer assunto, pois todos os assuntos suscitam um corpo de crenças que, com o passar do tempo, se tornam canónicas. Ora, se se estabelecer uma analogia com o cancro, logo se percebe que este é herético. Há um código original que não se deve alterar, um texto sagrado, mas a introdução da inovação gera as neoplasias, que são uma espécie de doutrina herética em relação aos dogmas em que um organismo assentava. As consequências da inovação não são as melhores. Aqui, este texto entra em contradição. Apela à inovação como coisa boa e mostra que a inovação é coisa má. Talvez o autor sofra de uma incompatibilidade com a lógica. É uma possibilidade séria que o narrador não desmente, mas também não confirma.

domingo, 4 de setembro de 2022

Artes da ficção

Foi preciso um fim-de-semana com o meu neto para, por duas vezes, pôr os pés na areia da praia. Os netos têm poderes que só os avós reconhecem. A relação entre pais e filhos é contaminada pela necessidade de educar, impor regras, dizer não. A figura da autoridade é uma necessidade. Com os netos, as coisas são diferentes. No lugar da necessidade, reina a liberdade. No lugar da autoridade, a subversão de regras. Às vezes, porém, é necessário conter a ideia de subversão, pois parece que ela transborda da criança, sempre disposta a pôr as regras em causa, a encontrar modo de as furar, de lhes retirar a precária universalidade com que os adultos sonham revesti-las. Tirando estas aventuras de avô, restou o tempo de insónia. Consigo preencher esse tempo com leituras, o que não ajuda a pôr-lhes fim. Sem pegar em Serotonina durante o dia, em duas noites cheguei aos setenta por cento. Mais uma insónia moderada e acabo o romance. Conforme envelheço, não quero generalizar, menos consigo dormir. Agora, o neto e pais já se foram e eu preparo-me para retornar a casa. Aí chegarão as outras netas, para passar uma semana, antes que as aulas cheguem e a vida seja conspurcada com as nuvens negras da realidade. Não sei se é uma idiossincrasia pessoal, mas desde que um dia a minha mãe me levou à escola, tinha eu feito seis anos há um mês, que a vida nunca mais foi a mesma. Nunca me curei dessa traição, embora tenha disfarçado ao longo da vida. Não há nada como as artes da ficção.

sábado, 3 de setembro de 2022

Dias de ilusão

O encontro com a balança no pós-férias não foi particularmente penoso, apenas quinhentos gramas mais do que antes desse período fantasioso, no qual se alimentam quimeras como a possibilidade de as coisas não serem o que são. As férias estão para os nossos dias como o Carnaval estava para a Idade Média. Li que, então, era também conhecido como Festa dos Loucos. Era uma despedida dos prazeres da carne, a que se seguiria o tempo quaresmal. As férias de hoje são, mutatis mutandis, a mesma coisa. Não se trata tanto da questão da carne, mas da irrealidade. Uma das origens possíveis do Carnaval encontra-se na Babilónia e é um testemunho eloquente daquilo que nós, seres humanos, somos ou também somos. Nas Saceias – uma festa – um prisioneiro assumia durante alguns dias o papel de Rei. Vestia como ele, comia como ele e dormia com as suas mulheres. Enfim, um admirável mundo novo. Passadas as festividades, era espancado e executado. Fala-se em enforcamento, mas também em empalamento. Tudo tem um preço, dir-se-á. À irrealidade do reinado daqueles dias, seguia-se a dura realidade. As férias não me anularam a inclinação para a insónia. Esta noite, deu-me a possibilidade de ler um quarto do romance de Michel Houellebecq, Serotonina. A humanidade não sai lá muito bem tratada, mas o que seria de esperar quando se fala de uma espécie que concede uns dias de ilusão para, logo de seguida, supliciar até à morte o beneficiário dessa fantasia?

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Valor e preço

Descobri que dois livros que tinha comprado em férias já constavam nas estantes. O pior é que, antes de sair e de os encomendar, tinha ido verificar se existiam. Verifiquei, mas não vi. Por vezes, os deuses conspiram para nos perder. Não que a perda seja muita, mas é uma espécie de humilhação imposta pela realidade. Tenho de fazer o levantamento das coisas repetidas e pô-las à venda. O problema é que não tenho alma de vendedor. Como se sabe, há almas de todos os géneros e cada um tem a sua. Os que têm alma para vender, fazem-no com quem bebe um copo de água. Não é o meu caso, o que é sinal de desastre num mundo formatado pelo espírito do mercador. Quando o terceiro-estado tomou conta do mundo, tudo se converteu em mercadoria regulada pela lei da oferta e da procura. Esta é a mais curiosa das leis. Parece fundar-se na liberdade. O preço das coisas, de qualquer coisa, depende do exercício de vontades livres que chegam a acordo entre si. O efeito disto é que tudo deixou de ter valor e passou apenas a ter preço, que varia conforme os humores de compradores e vendedores. Os meus livros têm um preço, embora para mim tenham valor. Não são mercadorias, mas qualquer coisa que rompeu com o fetichismo da mercadoria. Contudo, isso é apenas um assunto privado. Objectivamente, eles têm um preço. Acho que me perdi no jardim dos caminhos que se bifurcam. Queria eu dizer que um mundo regulado pelo espírito dos mercadores é um mundo onde o valor foi substituído pelo preço. As coisas deixam de valer e passam a custar. Não sei o que me deu para escrever este conjunto de bagatelas, há muito conhecidas. Tenho a imaginação em pousio, mas isso não significa que, depois desse período de descanso, ela produza mais e melhores ideias. Já não tenho idade para me iludir, embora nunca desista de o fazer.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Viagens digitais

A internet é uma porta aberta para mundos que sem ela ficariam apenas ao alcance de poucos. Por exemplo, o universo dos alfarrabistas. Estes, claro, existiam muito antes de haver uma rede que liga toda a gente a toda a gente, mas a sua pura existência física não permitia aquilo que o alfarrabismo digital permite, o aceder quase ao mesmo tempo a vendedores de livros dispersos por todos o país, por todo o mundo. Depois, consente, sem ter de tocar nos livros, admirar estranhas conjugações de livros. Por exemplo, O Paraíso da Droga, a que se segue, do historiador Luís de Albuquerque, «O Reino da Estupidez» e a Reforma Pombalina, que é seguido por outro com o notável título Ensaios filosóficos escolhidos de operários, camponeses e soldados, da editora Vento de Leste. A este segue-se Ventriloquia ao alcance de todos, que precede Lobos do Mar, de Kipling, o qual antecede Poemas, de Holderlin. A seguir surge, inevitavelmente datado de 1974, Partidos Políticos – ponto por ponto e, para acabar a enumeração, a obra principal de Giordano Bruno, Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos. São estranhas constelações que se formam e que não eixam de enviar sobre o transeunte digital uma certa luz sobre o mundo em que ele aterrou. Além de perder tempo, estas viagens acabam por serem instrutivas, pois sempre se vai descobrindo autores desconhecidos. Agora, tenho de me fazer à vida. A realidade espera-me e eu não gosto de me atrasar. Setembro começou.

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Aquilo que é decisivo

Talvez as pessoas não saibam o que fazer com ela. Tratam-na como coisa divina, mas evitam demorar ali os seus olhos. Quase não tem leitores. Em prestígio, só a música ombreará com ela. É possível que já não se saiba o que fazer com a poesia, nem como a ler, nem o que esperar dela. E, no entanto, é possível ainda depositar a esperança num poema. Não a esperança da salvação, mas aquela que orienta o olhar para este perceber as coisas que diante dele estão manifestas, mas que ele não vê. Considere-se este pequeno poema: Quando pronuncio a palavra Futuro, / a primeira sílaba já pertence ao passado. // Quando pronuncio a palavra Silêncio, / destruo-o. // Quando pronuncio a palavra Nada, crio algo que não cabe em nenhum não-ser. Wisława Szymborska dá-lhe o título AS TRÊS MAIS ESTRANHAS PALAVRAS. Como, sem poesia, poderíamos descobrir a estranheza nestas palavras que usamos como quem uso moedas de pouco valor. Contudo, isto ainda não é tudo. Em cada um dos primeiros versos dos três dísticos encontramos a palavra pronuncio, wymawiam, em polaco. O que o poema manifesta é o peso que existe em cada pronunciamento.  Não é inconsequente tomar a palavra. Sempre que o fazemos, modificamos o mundo e as próprias palavras não ficam incólumes ao uso que delas fazemos. Daqui o prestígio da poesia, mas também a falsa indiferença generalizada perante ela. As pessoas fingem indiferença, pois temem-na. Pressentem que ela diz sempre qualquer coisa de decisivo. E nada haverá de mais inquietante do que aquilo que é decisivo. Antes e depois de o ser.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Retorno

Volto para casa. Há quem meça a distância de uma viagem em quilómetros, há quem o faça em tempo de deslocação. Neste caso, prefiro em graus de temperatura. A quantos graus estará a terra onde me acolho nessas épocas do ano em que tenho de enfrentar a realidade? Chega a estar a vinte graus de distância. Não será o caso de hoje, mas mesmo assim serão alguns. Não fiz a caminhada matinal, espero compensá-la com uma nocturna. Não haverá mar, nem molhe, nem gaivotas. Há sempre uma diferença abissal entre os livros que se trazem para férias e aqueles que se lêem ou que seria possível ler, no melhor dos mundos possíveis. Agora, há que arrumá-los para transporte e, depois, colocá-los nas estantes. Aos livros que trouxe, acrescentei outros comprados, entretanto. A cada um as suas adicções. Como todas as adicções, também estas significam subtracções ao orçamento, mas a vida é o que é. Um dos que comprei é a Obra Completa de José Marmelo e Silva. Uma obra que cabe num único volume de setecentas e poucas páginas. Os responsáveis pela edição deram-lhe um estranho título Não aceitei a ortodoxia. Um tributo à recusa do autor em se deixar esmagar pelo horizonte ideológico do neo-realismo e aos conflitos entre estes e os presencistas. Nisto haverá, apesar da excelência académica dos organizadores, um equívoco. A arte nada tem que ver com a querela sobre a doxa (opinião). Não se trata de se ser ortodoxo ou heterodoxo. Isso será um problema teológico, mesmo que a teologia tenha por deus a arte. Esta não tem relação com a opinião. Para Platão, havia um conflito entre doxa (opinião) e episteme (ciência). A arte pertencia a outra realidade. Aliás, mal vista pelo filósofo. Acabam com estes pensamentos os dias inúteis. Amanhã, a utilidade tomará posse do meu tempo, o que me dá a esperança de que passarei a ter pensamentos úteis.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Fim de estação

Quando fui caminhar, por volta das oito da manhã, descobri que a população veraneante encolhera drasticamente. Cruzei-me com muito menos caminhantes, passeantes, ciclistas e esforçados adeptos do jogging. Chegado ao molhe, olhei para as praias e não havia ninguém, o que está longe de ser habitual. Àquela hora já vi gente a tomar banho, escolas de surf em actividade, onde um sacerdote dirigia um ritual de aquecimento, com estranhos ritos envolvendo o corpo dos monges com o habita da ordem, pessoas a passear os cães junto à beira-mar, outras sentadas olhando para o oceano, talvez a sonhar com a América, com grandes veleiros e navios transatlânticos. Hoje, nada nem ninguém. Também, no molhe não se avistava vivalma humana, apenas gaivotas em conferência, que levantavam voo com a minha aproximação. Já não é um tempo de despedida de férias. Esse deve ter ocorrido no fim-de-semana. É um tempo em que se pode dizer: o sol parece mais fraco. Contudo, os bares lá estão, também a areia e o mar, com os seus rumorejos. Depois, comentei parece que se está na Bretanha ou na Normandia ou num episódio do inspector Maigret. Estou inclinado para a nostalgia. Ao escrever Maigret, lembrei-me de uma França que só existe na imaginação, uma França que era o celeiro espiritual dos portugueses, num tempo em que estes ainda não se tinham convertido à cultura anglo-saxónica. Agora, ninguém aprende francês e muito menos está interessado naquilo que possa vir de França. Isto é uma Idade sem amor bloqueada pelo êxtase / do tempo, como escreveu, no início dos anos sessenta do século passado, Herberto Helder. O espírito do tempo mudou e as pessoas extasiam-se com outras coisas ou já não se extasiam com nada. Este talvez não seja um tempo para êxtases, mas nunca se sabe.

domingo, 28 de agosto de 2022

Velhos hábitos

Este antigo hábito do almoço tardio aos domingos parece imutável. Isso virá de um tempo em que os domingos eram dias sagrados. Não se entenda por sagrado um dia em que se cumprem os rituais religiosos obrigatórios para os católicos romanos. Significa uma sacralidade mais ampla, pois não era um dia de negócio, mas também não era de ócio. Nele estava incrustada uma diferença com os dias úteis, aqueles onde, movidos pela estrita necessidade, se nega o ócio. Imagino que o que se cultuava então era a pura liberdade de dispor do seu tempo. Daí, os almoços terem deslizado para horas tardias. Isso não ajuda ao culto da moderação. Não poderei dizer como Anatole França, em A Ilha dos Pinguins, faz dizer a Virgílio, Sou sóbrio: uma alface e algumas azeitonas, com uma gota de falerno, compunham toda a minha alimentação. Não é que não seja sóbrio, mas a alface não me atrai e as azeitonas não me caem bem. Continuo a preferir comida um pouco mais substancial. Também não bebo o vinho de Falerno, mas, neste país, não faltam alternativas. Virgílio – ou o Virgílio de Anatole France – contrapõe a sua ascese à dos cristãos. Estes, pensava ele, abstinham-se de alimentos e evitavam as mulheres por amor à privação, expondo-se voluntariamente a inúteis sofrimentos. Ele, pelo contrário, refreava os seus desejos por disciplina e satisfação própria. É possível que Virgílio assim pensasse. Também é possível que ele, na outra vida – pois é na vida após a morte que Anatole France coloca o diálogo de Marbode com Virgílio, que morrera dezanove anos antes do nascimento de Cristo – não tivesse compreendido o quão próximos de si estavam os seus cristãos, isto é, aquilo que ele imaginava, no lugar onde vivia a sua morte, serem os cristãos. Ambos faziam da ascese, seja ela sobriedade ou privação, um acto da vontade, uma afirmação de si mesmos, pela negação do prazer transbordante. O poeta da Eneida não terá percebido a natureza do cristianismo, mas poderia ser, claramente, um homem do Renascimento e mesmo um moderno. Tudo isto a propósito dos almoços tardios de domingo. Agora, vou tratar do vinho. Não de Falerno, mas de Monção e Melgaço, feito com uma casta que os deuses, talvez o próprio Baco, esqueceram por aquelas terras sagradas.

sábado, 27 de agosto de 2022

Iniciar as despedidas

O último sábado deste Agosto. O tempo desfaz-se perante os olhos, o corpo não reage e o espírito, volúvel, olha para esse acontecimento ora com indiferença, ora com melancolia. Não tarda, a realidade estará aí armada com os seus imperativos inúteis. Os homens precisam de Deus, disse-me hoje o padre Lodo, quando nos encontrámos no café, por causa da inutilidade. Fiquei na expectativa do que viria dali. É belo este mar, disse-me. Olhe para ele e deixe-se levar pelo mistério. Eu respondi que sim, mas perguntei qual a ligação com a inutilidade. Nenhuma, ouvi. Fiquei calado, à espera. Então, ele continuou. Todos os nossos esforços, aqui sorriu, por maior que seja o seu êxito, estão condenados ao fracasso, a não ser que Deus exista. Veja os impérios, as grandes obras de arte, os mais agudos dos sistemas filosóficos ou mesmo os triunfos da Ciência. Onde estão Galileu, Newton, Einstein?  Todos mortos. Nada do que fizeram tem para eles sentido, caso não exista Deus e os homens não possuam uma alma imortal. Disse-lhe que uma coisa não está ligada à outra. Podemos imaginar a existência de Deus sem a existência de almas imortais e, acrescentei em tom de provocação, também não é impossível a existência de almas imortais sem que exista uma divindade. Olhou-me com seriedade e prescreveu: deixe de brincar à lógica. A realidade tem razões que a lógica é incapaz de formalizar. Eu ri-me e perguntei-lhe a causa desta deriva matinal, de uma deriva para a metafísica ao gosto popular. Não se fez rogado e retorquiu: a voz do povo é a voz de Deus. Não me contive e respondi que então Deus deve andar mal-humorado. Claro que anda, ouvi. Tem razões de sobra para isso. Como também eu estava mal-humorado e a metafísica não me interessa nas horas da manhã, mudei de assunto, para um interesse comum. Acordámos um jantar num dos sítios que merece o culto dos homens e senão de Deus, pelo menos dos deuses da Antiguidade. Há que começar as despedidas deste Agosto.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Jejuns

Uns dias de silêncio são um exercício de jejum. Este, em tempos, fazia parte da vida religiosa e os crentes praticavam-no não tanto por fé ou por tradição, mas por hábito. Depois, descobriram que também os hábitos se podem mudar e alguns com demasiada facilidade. Nem todos serão uma segunda natureza. Serão poucos os jejuadores por motivos de religião. Surgiram outros, também eles motivados pela fé, a fé na saúde do corpo, na produção de uma aparência que, mesmo que não seja bela, não envergonhe. Dito de um modo menos prosaico, antigamente, jejuava-se habitualmente por crença na transcendência; hoje, por crença na imanência. Isto não está a correr bem. Talvez os dias de jejum não me tenham melhorado as ideias. Diante de mim tenho uma série de medicamentos comprados há pouco. Olho para eles e é grande o meu desconsolo. Nenhum serve para encontrar assuntos que valham a pena escrever sobre eles. É possível que este narrador seja um niilista e escreva sobre o nada. Quando escrevo a palavra niilista noto sempre, no fundo da minha alma, uma sombra. O português deveria ter conservado o h latino. A palavra ficava muito mais elegante e, além disso, é possível que ser nihilista seja muito diferente de ser niilista. Eu não sou cultor da caligrafia, da grafia bela, do grego kalligraphía. Confesso, porém, que quando se arrancam letras às palavras estas sofrem e tornam-se feias. Como é possível não ver que ação não passa de uma acção atrofiada e feia? Em Portugal existe há muito uma conspiração contra a beleza das palavras e tanto quanto percebo, os conspiradores nunca jejuam, nem à sexta-feira.

domingo, 21 de agosto de 2022

Memórias

Este é um domingo cheio de trivialidades, como o são todos os meus domingos. Isto para não falar nos outros dias da semana. Recordo que uma coisa trivial é aquela que todos sabem e, por isso, se torna comum. Portanto, tenho preenchido este dia com coisas que todos sabem. Isto não significa que não me tenham acontecido aventuras que engrandecem a minha gesta. Por exemplo, ter ficado na cama e não ter feito a caminhada habitual com a frívola desculpa de que já estava muito sol. Mais picaresca foi a de ter engolido – embora não tenha dado por isso – a massa, não sei de que matéria seja feita, de restauro de um dente. Agora, terei de marcar consulta para nova restauração, para que me componham um dente da frente que terei partido há mais de cinquenta anos, na sequência de uma queda aparatosa no colégio, quando teria uns avultados 12 anos. Correndo desalmadamente em direcção do campo de Spiribol, tropecei numa espia de arame que segurava um dos postes do campo de Vólei. Um acontecimento. Rasguei as calças, destrocei os óculos, esfolei as mãos e, como prémio da combatividade, parti três dentes da frente. Também um castigo, pois estava em território dos mais velhos, onde gente da minha idade não era convidada a entrar. De um desses dentes alimentei-me hoje. Um dos livros que trouxe para férias foi O que diz Molero, de Dinis Machado. O livro saiu em 1977 e devo-o ter lido em 1978, durante os excruciantes afazeres do serviço militar. Lembro-me de me ter divertido imenso. Tendo perdido o rasto ao exemplar comprado então, adquiri um outro num alfarrabista, uma edição de 2003. Tenho esperança de o ler ainda por estes dias. Temo, porém, que não lhe ache graça nenhuma, mas como em tudo na vida é preciso correr riscos. E não é dos menores, o risco da desilusão.

sábado, 20 de agosto de 2022

Anacrónicos e intempestivos

Senilidade não é o estado em que me encontro, presumo com benevolência, mas o título do romance de Italo Svevo que estou a ler. A personagem senil não é um homem de idade avançada, mas alguém ainda jovem. Comporta-se perante uma rapariga mais nova e experiente como um velho que, desconfiado das possibilidades do corpo, se entrega à declinação do ciúme. O romance foi publicado no final do século XIX e talvez fosse já possível discernir o ciúme como algo que não deveria atacar as novas gerações, mas só aquelas em que as possibilidades físicas fossem insuficientes para consumar os devaneios eróticos da imaginação. Não se pode dizer que a obra tenha tido mau acolhimento. Na verdade, não houve sobre ela qualquer escrito. Nem favorável, nem desfavorável. Apenas silêncio. Svevo levou esta ausência de reacção muito a sério e esteve vinte e sete anos sem publicar. Salvou-o James Joyce. Hoje é um dos grandes nomes da literatura italiana. Há pessoas que nascem fora do seu tempo. Senilidade era uma obra demasiado moderna, um romance precursor, para ser apreciado no tempo e no lugar onde foi publicado. Nietzsche, por exemplo, presumia-se intempestivo. Escrevia para o futuro, pois o presente seria incapaz de o compreender. Há outra espécie de intempestivos, de pessoas que nascem anacrónicas. Não anunciam nenhum futuro, tão pouco são homens ou mulheres do futuro. São pessoas que nasceram demasiado tarde, num tempo que já não se coadunava com a sua constituição mais funda. Pertencem a um espírito cujo tempo se consumou. Os românticos imaginaram-se assim perante a Idade Média, mas o culto que lhe prestaram não é prova de estarem deslocados do seu tempo. É um truque para abrirem uma brecha dentro do mundo moderno e nele encontrarem lugar. Aqueles que são anacrónicos, cujo espírito repousa num tempo acabado, não têm nada para dizer. Olham o mundo e fazem do silêncio a sua morada.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Da inutilidade

Não era um bando, mas um enxame de gaivotas. Percorria o molhe, ouvindo a barulho sereno das águas, quando, vinda do mar alto, surge uma traineira. Parecia carregada. De súbito, centenas de gaivotas formam um esquadrão sobre o barco, como se ele necessitasse, para chegar ao porto, da energia vinda do grasnar ameaçador daquelas aves esfomeadas. Depois, talvez desiludidas pelo resguardo da carga, começam a dividir-se em grupos, o enxame perde a consistência e pequenos bandos desaparecem no horizonte, outros aterram na areia das praias, um escolheu o cimento do molhe para conferenciar. Isto foi de manhã cedo, estavam os barcos de pesca a chegar da faina no mar, como dantes se ouvia dizer ou se lia. Mais tarde, quando a manhã declinava, achei que precisava de levantar dinheiro. Dirigi-me a um multibanco perto e tive a desagradável surpresa de ele não ter sido abastecido. Dirijo-me a uma pequena vila onde sabia existir vários multibancos e descubro que tinham desaparecido. Agência bancárias e caixas de multibanco parecem espécies em vias de extinção. Depois, de um período de expansão, onde não havia recanto que não tivesse a sua agência, agora parecem sofrer de uma crise demográfica. Morrem muitas e não nascem outras. Perguntei a uma pessoa que passava se não havia por ali uma caixa multibanco. Há, mas é na estrada para… Obrigado, respondi. A pessoa sorriu e acrescentou que dantes havia na vila quatro bancos, agora só há um. Eu também sorri e fui levantar o dinheiro que precisava, pois ainda preciso de dinheiro. Como poderia, sem moedas ou notas, ir para uma esplanada frente ao mar, tomar café, comer um bolo para contrabalançar o exercício da manhã e beber uma água com gás? Não podia. Sentado, o azul do mar entrava-me pelos olhos, os banhistas entretinham-se com o mar e a areia onde se deitavam esperando um milagre. Pensei em coisas inúteis, como costumo pensar, mesmo que não esteja sentado diante do oceano. A inutilidade é o motivo maior de meu pensamento.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A púrpura do rosto

Olha, aquelas flores maquilhadas com a púrpura do teu rosto. Quando ouvi isto, nem acreditei que houvesse alguém que pronunciasse uma frase como aquela. Tentei perceber quem era, mas o dono da fala tinha-se perdido, bem como aquela que detinha um rosto de onde se extraía a púrpura com que certas flores se maquilham. O mundo está cheio de acontecimentos que mereciam um pouco mais de atenção, mas a trivialidade da existência rapta-os para os aniquilar. Não se pense que sou sensível a uma eventual poeticidade da frase. Não sou, pois é uma poética adocicada e há muito que bebo café sem açúcar. O que me sensibilizou foi alguém falar daquele modo. Depois, há sempre um depois, continuei o meu caminho em direcção ao molhe, para poder ver as águas do oceano e os barcos ancorado a tremer, pois também os barcos são sensíveis ao frio, e a manhã não estava ainda quente. Quando me ponho nesse caminhar, o rosto das pessoas com que me cruzo torna-se difuso, perde os contornos, é uma mancha móbil na paisagem, uma nódoa que se aproxima para logo ser deglutida e desaparecer no nada. No final da manhã, tentei ir a uma ilha que, por acaso, é uma península. Se conseguisse lá parar, haveria de beber um café. Não consegui. O aumento dos carros que ali chegam nestes dias é inversamente proporcional aos lugares para estacionar. Quanto maior a procura, menor a oferta. Os serviços municipais todos os anos fecham um número considerável de lugares de estacionamento. Isto prova que nem tudo se rege pelas leis do mercado. Fui estacionar para outro lado, onde procurei flores maquilhadas com a púrpura que certas mulheres deixam cair do rosto. Não as havia, sinal de que pouca ou nenhuma púrpura haverá em rostos de mulheres que por aí andam. Talvez sofram de anemia, pensei.