terça-feira, 20 de setembro de 2022

Duplas negações

Os piores profetas são os da meteorologia. Ainda ontem profetizaram para aqui três dias de chuva, a começar hoje. Perderam o contacto com o deus do clima ou não têm feito as devoções devidas a S. Pedro. Resultado? Falência completa das previsões. Está um calor de ananases, um sol radiante e chuva, nem vê-la. Quando era pequeno sempre me intrigou a atenção que os mais velhos, isto é, gente do tempo dos meus avós, dedicavam à audição do boletim meteorológico. Mal sabia eu que quando chegasse à idade deles lhes copiaria a inclinação. Também é verdade que aprendi há muito, não sei onde nem com quem, que quando não se tem assunto de conversa, se deve falar do tempo. É o que eu faço. Deve-se evitar expressões como está a escachar, é de rachar, mesmo está de ananases. Pelo menos, no tempo de Eça de Queirós, não seria o modo mais civilizado de falar do tempo, mas era o que ocorria a algumas das suas personagens. Há pouco li um interessante artigo sobre aquela ideia tonta de que a expressão não há nada é um erro. Esta ideia de erro terá nascido de interpretação da língua em termos lógicos. Teríamos aqui uma dupla negação, o que era equivalente a uma afirmação. O pobre do falante queria negar a existência, mas devido à sua inépcia linguística acabava por afirmá-la. O autor, pacientemente, explica por que isto é um disparate. Cheguei a conhecer pessoas cujo desejo intelectual era eliminar a equivocidade da língua, para que esta denotasse, de forma bacteriologicamente pura, a realidade. Isto significa apenas que muitas vezes conhecemos pessoas que não são recomendáveis. O que torna as línguas interessantes não é serem uma emanação directa da lógica, que não são, mas possuírem uma lógica própria feita de múltiplos e aparentes ilogicismos, tal como é feito o pensamento e a fala das pessoas que usam a língua. Agora, vou beber água, pois não há nada melhor do que matar a sede quando se está sequioso.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Coração simples

Está um calor esponjoso. Choveu de manhã, um pouco, mas logo os trabalhadores que, no mundo supraterrestre, têm a missão de regar este pobre planeta entraram em greve, sem que um sindicato celeste tenha apresentado um pré-aviso. Uma greve selvagem. Agora, não se sabe por quanto tempo não cairá abundante água das imperecíveis fontes celestiais. Dizia que estava um calor esponjoso e não pegajoso, pois é um calor que nos absorve, que nos consome até às últimas fibras intersticiais. Entrei no reino da hipérbole, que é sempre uma forma de compensação da pequenez que sinto perante a inevitabilidade dos decretos da natureza. Poder-se-ia, talvez com não pouco proveito, discutir se a natureza possui ou não livre-arbítrio, se os seus decretos obedecem a leis imutáveis ou, pelo contrário, nascem de uma vontade livre que a habita. Haveria logo algum argumentador a dizer que a natureza é destituída de vontade, que ninguém provou que ela a tenha e que eu além de sofrer de inclinação hiperbólica, também sofro de alucinações. Em minha defesa, poderia argumentar que o facto de ninguém ter provado que a natureza possui uma vontade, isso não significa que ela não a tenha. Esse argumentador cairia na esparrela da falácia do argumentum ad ignorantiam. Depois, poderia continuar afirmando que o facto de as células de um ser vivo a certa altura descarrilarem e começarem a multiplicar-se sem medida pode ser um sintoma de a natureza possuir uma vontade própria. Aqui, porém, seria acusado de adepto mal disfarçado da teleologia, capaz de acreditar num provérbio antigo, talvez sumério, que diz que não é porque duas nuvens se aproximam que há o trovão, mas aproximam-se para que haja o trovão. É evidente que as explicações sobre raios e trovões são mais complexas do que deixa perceber o belo provérbio, mas eu hoje acordei com um coração simples e voltado para as coisas simples, e uma vez por outra não me importo de ser um advogado da mais maltratada das quatro causas do velho Aristóteles.

domingo, 18 de setembro de 2022

Evocações

Sobre as acácias da praceta cai uma luz inflamada, vestida de branco, como se fora uma noiva ansiosa pelo altar. Acolhem-na as folhas, tomadas pelo verde, ainda sem a mácula amarela que o Outono trará para anunciar o Inverno. Ninguém se aventura na rua, ninguém pára para conversar à sombra das árvores. Ao domingo, as pessoas almoçam mais tarde, ficam à mesa a conversar, enquanto bem café. Sair, só quando a temperatura baixar. Então, haverá criançada a gritar no parque infantil, enquanto os pais abrem a alma uns aos outros, não a alma verdadeira, mas aquela que eles imaginam ter. A não ser que a profecia da aplicação meteorológica que me guia os passos se cumpra e chova. Há dias, o mais verdadeiro seria dizer há noites, sonhei que tinha rebentado uma guerra por cá, uma guerra civil. Ora, nunca me lembro de sonhar, mas este sonho não se apagou, a imagem dos soldados a combater continua viva, bem como a minha preocupação com a protecção da família, dos netos em primeiro lugar. De onde terão vindo estas imagens tão límpidas, não faço ideia, mas a maior parte das coisas acontecem sem que saibamos as suas razões. Quando acordei, fiquei aliviado por um sonho não passar de um sonho, mesmo que a realidade não seja aquela que se deseja para o melhor dos mundos possíveis, aquele que traria a maior das felicidades para a humanidade. Embora, sobre esta se deva dizer aquilo que um poeta meu amigo escreveu: a humanidade verdade / seja dita só aparece / quando se evoca // (…)

sábado, 17 de setembro de 2022

Vulcões extintos

O meu primeiro contacto com ela, a escritora austríaca Ingeborg Bachmann, foi através de uma recolha de poemas a que foi dado o magnífico título de O Tempo Aprazado, nome de um dos livros da autora. Foi amor à primeira vista. Li tantas vezes aquela pequena edição bilingue, da responsabilidade de João Barrento e Judite Berkemeier, que as páginas se soltaram uma a uma. Ingeborg Bachmann nasceu em 1926 e morreu em 1973. Conheci-a bem depois de estar morta, mas não é possível uma pessoa não se apaixonar quando lê poemas que, mesmo depois de traduzidos, ainda ficam assim: Para onde quer que nos voltemos na tempestade de rosas, / a noite ilumina-se de espinhos, e o trovão / da folhagem, antes tão leve nos arbustos, / segue-nos agora de perto. // Onde quer que se apague o incêndio das rosas, / a chuva inunda-nos o rio. Oh, noite tão distante! / Mas uma folha que nos encontrou é levada pelas ondas / e segue-nos até à foz. Ou então a sonoridade alemã da primeira quadra do poema ‘Fall ab, Herz’: Fall ab, Herz, vom Baum der Zeit / fallt, ihr Blätter, aus den erkalteten Ästen / die einst die Sonne umarmt’ / fallt, wie Tränen fallen aus dem geweiteten Aug! Li todos estes poemas em alemão, sem compreender a generalidade das palavras, li-os a meia voz, tentando aproximar-me da sonoridade germânica, deixando-me envolver pela musicalidade que desse alemão, por certo mal pronunciado, se desprendia. Tudo isto era possível porque a poesia antes de ser sentido é som, música. A poesia é música que adquire sentido. Depois, há a beleza desse primeiro verso que em português fica assim: Desprende-te, coração, da árvore do tempo. Tudo isto vem a propósito de ter comprado, há pouco, Malina um romance de Ingeborg Bachmann, publicado em português, em Junho deste ano, pela Antígona. Esta editora, com o seu catálogo, entrou para o top três das minhas editoras preferidas. Além dela, estão a Cavalo de Ferro e a Relógio d’Água. Para acabar a minha diatribe, os três primeiros versos do poema ‘Canções de uma Ilha’: Tombam frutos de sombra das paredes, / o luar caia a casa, e o vento / que vem do mar traz cinzas de vulcões extintos. É o que todos somos, vulcões extintos.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Concisão

Por vezes, enquanto narrador destituído de narrativa, à míngua de actos a tornar memoráveis, penso que estes textos são um equívoco, a emanação da minha inclinação para a hipérbole. O ideal seria uma dimensão idêntica à de um tweet, 280 caracteres, ou mesmo dos antigos telegramas que se pagavam à letra, o que originava textos com uma sintaxe muito especial. Não me lembro de alguma vez ter enviado um telegrama, mas a memória não é de confiança. Ocorre-me que quem não diz o que tem a dizer em 280 caracteres é porque não tem nada para dizer, mas ama a prolixidade. Em matéria de concisão não há como os japoneses. Inventaram o haiku, um poema que diz o que tem a dizer no espaço equivalente às nossas dezassete sílabas métricas. Agora, poderíamos dar mais um passo e matematizar tudo isto, formulando uma lei daquilo que se tem para dizer. Poderia ficar assim: aquilo que se tem para dizer é inversamente proporcional ao número de caracteres (ou de palavras) que se utiliza. É uma bela lei, apesar de não ser muito original. A palavra original fez-me lembrar uma piada, talvez contada por algum professor meu que tenha estudado em Coimbra, o que eram quase todos. Reproduzo a pilhéria ouvida talvez há cinquenta anos. Numa oral, o lente – estaríamos em ambiente universitário – volta-se para o aluno e afirma que o exame escrito dele tem coisas boas e coisas originais. Depois de uma pausa, nestas coisas a pausa é alma do negócio, acrescenta que só é pena que as coisas boas não sejam originais e as originais não sejam boas. Por certo, ao aluno não lhe terá ocorrido responder que não se pode ter tudo nesta vida e que o doutor se deveria contentar em apreciar tanto a bondade que há no hábito, como a originalidade do erro. Estes pensamentos, quase mórbidos, ocorrem-me à sexta-feira à tarde, não por ser a véspera do fim-de-semana, mas como reflexo da semana plena de utilidades. Meu Deus, a onde vão os 280 caracteres. Se isto fosse pago como um telegrama, há muito que teria falido. Não, já teria sido decretada a minha insolvência. Não sou nenhuma firma para falir.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

As minhas efemérides

Este é o lugar onde anoto o passar do tempo. Invento efemérides como se fossem marcos miliários desse caminho que nos traz do nada e nos conduz à inexistência, que é uma coisa diferente do nada. Hoje assinala-se o último dia da primeira quinzena de Setembro e, ainda, o ducentésimo quinquagésimo oitavo dia de 2022. Um acontecimento irrepetível, saliente-se. Há coisas curiosas que aconteceram num 15 de Setembro. Em dois 15 de Setembro, com cinquenta e quatro anos de diferença, em dois conclaves papais foram eleitos como Papas dois Giambattistas. O primeiro, em 1590, era de apelido Castagna e tomou o nome de Urbano VII, o segundo, em 1644, era Pamphili e ficou conhecido como Inocêncio X. Ainda não descobri a razão por que os Papas, ao serem eleitos, mudam de nome. Terei de consultar o google. Gostaria também eu de marcar este dia com uma aventura digna de registo, mas o mais que consegui foi irritar-me com coisas idiotas que o oportunismo e a vaidade dos homens semeiam no caminho de quem tem por lema não incomodar os outros. Este deveria o mandamento central da vida social. Não incomodes os outros! Uma parte dos seres humanos, porém, julga que a sua missão na Terra é alimentar o seu pequeno ego, um animalzinho sempre esfaimado, que nunca deixa de crescer e nunca deixa de ser minúsculo. Uma irritação, todavia, não é uma aventura, e, assim, fico em desvantagem perante o meu dilecto amigo, o cavaleiro da triste figura.

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Excesso de cabeça

Há um retrato desenhado a carvão do escritor Heinrich von Kleist (1777-1811) quando estava no regimento n.º 15 da guarda prussiana. Quando o vi, devido ao bicorne na cabeça e à farda, pensei que era Napoleão. Um olhar um pouco mais atento mostrou-me ser outra pessoa. Descobri que era Kleist. O retrato parece uma caricatura, devido à desproporção da cabeça, acentuada pelo chapéu, em relação ao corpo, demasiado pequeno para cabeça tão grande. Tentei encontrar o retrato na internet, mas a procura foi frustrada. Nem tudo se encontra na rede. O escritor prussiano alistou-se em 1792 e saiu das forças armadas em 1799, para grande pena da família, de tradições militares. Tinha aspirações espirituais, terá argumentado. Na Wikipédia em língua portuguesa, na entrada que lhe é dedicada refere-se a existência de uma tradução de Michael Kohlhaas – o rebelde da autoria do poeta Egito Gonçalves, publicada em 2004, pela Antígona. Ora, a minha primeira memória do autor é precisamente dessa obra, mas data dos anos setenta do século passado. Foi publicada pela Editorial Inova, do Porto, e a tradução deverá ser a mesma. Tentei confirmar, mas não encontrei o livro. É outro que terei deixado não sei bem onde. A obra fazia parte de uma colecção denominada duas horas de leitura. Dela constava um livro de contos de José Rodrigues Miguéis, Comércio com o Inimigo. Lembro-me de ter ficado fascinado por aquelas narrativas. Também esse livro ficou perdido por algum sítio. Há uns anos, porém, tornei a comprá-lo num alfarrabista, mas o fascínio tinha passado. É possível que Kleist, como Napoleão, fosse pequeno. A média de alturas dos homens dos exércitos napoleónicos rondava, segundo li num livro do historiador Eric Hobsbawm, o metro e meio. Talvez, naqueles tempos, as cabeças fossem excessivas para os corpos.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Das orquídeas

Este foi um ano mau para as orquídeas cá de casa. Nem todas floriram, uma secou, perdeu anteontem a última folha. As que floriram fizeram-no, quase todas, por pouco tempo. É um facto que ninguém cuidada delas como Nero Wolfe cuida das suas, passando com elas quatro horas diárias, no intervalo de resolver os mais intrincados crimes e de se se dedicar aos prazeres da comida e do vinho. Há muito heróis dos livros policiais. Eu sou muito convencional. O primeiro é Sherlock Holmes. Depois, muito perto na classificação geral, vem o inspector Maigret. A seguir Hércule Poirot, que antecede o advogado Perry Mason e Nero Wolfe, o das orquídeas. Esta classificação, assente no gosto, tem uma explicação fácil. Foi com os primeiros que contactei. Só bem depois, quando já essa literatura não me atraía, descobri Philip Marlowe. Contudo, há explicações adicionais para os dois primeiros. O fascínio adolescente pela lógica de Holmes e pelos ambientes onde se movia – ou move, pois estas personagens são eternas – Maigret. A folhagem das acácias continua de um verde poderoso, quase agressivo. Balança tocada pelo vento, depois acalma-se, um raio de luz incide naquelas folhas que se tornam mais verdes, mais luminosas, mais folhas. Espera-me uma liturgia, de que serei o oficiante. Há que preparar o sermão, embora aos crentes pouca fé lhes sobre. Também ao pastor. Olho as orquídeas, as duas que ainda estão floridas, e tento decifrar as razões do seu estado de espírito.

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Da causa do divórcio

Um calor pegajoso. O tempo ameaça tempestade, os céus parecem que, de uma vez, vão cair sobre a cabeça dos gauleses, mas nada. Por vezes, chove, mas nada que limpe a terra e os espíritos dos homens. A semana útil consumiu o seu primeiro dia. Para lá das inutilidades que me são úteis para pagar as contas, não tenho aventura digna de nota. Recebi um livro de Judith Navarro, Terra de Nod, um romance comprado online num alfarrabista. É o terceiro de quatro romances que a autora publicou. O exemplar que me chegou às mãos tem uma dedicatória da autora datada de 1968, embora o livro tenha sido publicado em 1961, tal como se pode ver numa das últimas páginas. O que diz a dedicatória? Ao Senhor / (nome completo), e a sua querida mulher, (os dois nomes próprios), como lembrança afectuosa. / Judith Navarro / 1968. Claramente, a pessoa não pertencia ao círculo de amizades da autora. A utilização da expressão lembrança afectuosa é uma forma para criar um falso sentimento de intimidade, aliás como querida mulher. O ano de 1968 ainda pertencia a um tempo em que a mulher de alguém não era tratada como esposa, mas como mulher, e esse era o tratamento socialmente correcto. Agora, houve uma invasão de esposas, não sei se por contágio brasileiro. Pode ser a principal explicação para a recorrência do divórcio. No tempo em que as mulheres eram mulheres e os homens, maridos, nesse tempo tudo seria mais sólido. A introdução da esposa talvez conduza a que as mulheres pensem eu não quero ser esposa e zás, pedem o divórcio. O romance começa assim: O meu nome é Cecília. Pelo menos, a protagonista tem um belo nome, de grande musicalidade, apesar de ter entrado no limbo dos nomes que não são utilizados. Resta saber se ela era mulher de alguém, se se separou ou não. Para saber isso, há que ler o livro. Demorei tanto tempo a escrever este texto, o telemóvel é um dispositivo sempre pronto para interromper, que o céu decidiu derramar-se sobre esta pobre cidade.

domingo, 11 de setembro de 2022

Previsões e preguiça

Não há coisa mais volúvel do que as previsões meteorológicas. Minto. As previsões económicas têm um maior grau de volubilidade, de tal maneira que, já depois dos factos ocorridas, as previsões podem mudar e, não poucas vezes, o prognóstico depois do jogo é errado. Tinham-me prometido para aqui um dia nublado. Ora, está um sol risonho, contente por dardejar raios sobre as ruas sem que um escudo se entreponha. Seja como for, hoje estou entregue à cultura da preguiça, um pecado mortal como toda a gente sabe. A ideia de a preguiça ser um pecador mortal é uma inovação relativamente recente. Pecado mortal era a acédia, um estado espiritual que atingia os monges cristãos, marcado pela apatia, isto é, pela falta de paixão pela paixão do Senhor. A preguiça e a apatia são coisas diferentes. Um preguiçoso não tem de ser apático, não tem de ser destituído de paixões, apenas suspende a vontade de fazer alguma coisa. A preguiça pode mesmo ser uma grande paixão e ser activamente procurada em certos momentos da vida. Daí que possamos usar sem problema o oxímoro o preguiçoso activo. Neste momento do dia, é isso que eu sou, um preguiçoso activo, pois activamente me entrego à prática da preguiça. O senhor Karl Marx via no trabalho um elemento emancipatório, mas Deus, talvez para o castigar, deu-lhe um genro, Paul Lafargue, que escreveu o Elogio da Preguiça. Casou com Laura, a segunda filha do autor do Capital, e suicidaram-se ao mesmo tempo, num pacto de amor. Os pais do protagonista de Serotonina, de Michel Houellebecq, fazem o mesmo, muito possivelmente uma reminiscência do escritor francês da história de Paul Lafargue e Laura Marx. A junção dos nomes de Paul e Laura daria um belo título para um romance romântico, com um final feliz, pois os amantes entram na eternidade de mãos dadas.

sábado, 10 de setembro de 2022

Sebastianismo

Um terço de Setembro já foi consumido pelas chamas do tempo. A metáfora não será brilhante, mas não deixa de ser quente. Por outro lado, talvez aquilo que se aproxime mais da inexorabilidade da marcha do tempo seja a dos incêndios. Leio o romance O Reino Encantado, de Mário Ventura. Há qualquer coisa nele que me irrita. O reino encantado seria uma referência a acontecimentos ocorridos no Brasil com uma seita sebastianista. O escritor lera uma referência ao assunto no livro de João Lúcio d’Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, provavelmente na mesma edição que eu tinha, a da Editorial Presença, publicada em 1984. O livro é de 1918, editado pela Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira. Procurei o meu exemplar, mas perdeu-se numa das voltas da vida. Acedi a um pdf da obra, na Archive.org. A cópia é a de um exemplar que foi comprado em 4 de Dezembro de 1918, por alguém com os apelidos Freitas Veloso. Data e assinatura constam numa das primeiras páginas onde apenas se encontra o título da obra. É plausível que a obra tenha pertencido, depois, a uma outra pessoa, pois na mesma página encontra-se uma assinatura de alguém com nome próprio Manuel e com um apelido ilegível. Debaixo desta assinatura não consta qualquer data. Como é que este exemplar foi parar à Universidade de Toronto, à Robarts Library, não faço ideia. O certo é que foi lá digitalizado e, depois, cedido à Archive.org. As referências de Azevedo aos acontecimentos em Pernambuco são escassos, uma página e mais três linhas de outra. Cito uma pequena passagem para mostrar aquilo que terá atraído Mário Ventura: O embusteiro sanguinário, que capitaneava esses energúmenos, logrou convencê-los de que por sacrifícios humanos se alcançaria desencantar o monarca, e que as vítimas ressuscitariam com êle, para participarem dos tesouros que ao seu povo então distribuiria. O romance, pelo menos nos 3/5 que já li, trata do trabalho do escritor na busca de informação fidedigna dos acontecimentos (1818 e 1836) que envolveram duas seitas sebastianistas. Numa entrevista a um jornal, na altura da publicação do romance (2005), o autor refere que queria mostrar a carpintaria do romancista. Ora numa bela cadeira, o que apreciamos é a cadeira e não o trabalho que a produziu e é isto que me está a irritar, estar perante um romance sobre fazer um romance, melhor, sobre a recolha de materiais para fazer um romance. A irritação, porém, não é suficiente para pôr o livro de lado.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Grandeza

Chegou o fim-de-semana. O carrocel de úteis inutilidades suspende-se por dois dias, para que o corpo entediado se aliene da sua situação. Sobre tudo isto, posso usar como resumo um poema de um poeta meu amigo: esperar anunciar garantir prometer / só me resta a fraude // um rasto de sangue lento / e avançar, e vencer, e temer. Conformemo-nos, contudo, com aquilo que a vida é, se ela é alguma coisa. Um interregno nesta proibição de falar de política. Sou um narrador republicano, assim me criou o autor, de um republicanismo mudo e invisível. Porém, quero dizer que gostava da Rainha de Inglaterra. Apesar de não ter qualquer poder, tinha um poder imenso que nascia do seu exemplo. Onde há grandeza, devemos prestar tributo, e Isabel II engradeceu não só a Monarquia britânica, como o mundo, que anda por aí tão falho de grandeza. Fim de interregno, retorno da proibição. Uma nota de rodapé, apenas, antes de acabar com o interregno. O filho de Isabel II escolheu o nome de Carlos III. Não sei se será um bom augúrio. O primeiro dos Carlos, um absolutista talvez católico, foi executado. O segundo, filho do primeiro, dissolveu o parlamento e foi casado com Catarina de Bragança, mas não deixou boas recordações em Inglaterra, absolutista tal como o pai. Desconfio que a escolha do já terceiro dos Carlos não foi muito assisada, ele que podia ter escolhido Artur, Filipe, Jorge, logo haveria de escolher o pior dos nomes possíveis. Voltemos a esta sexta-feira que desliza sem pressa para o fim-de-semana. Deixemo-nos invadir pela vinda não de D. Sebastião, mas dos dias descomprometidos com o labor.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Alba

Oiço uma faixa denominada Alba, do álbum Echoes, do Søren Bebe Trio. Já o o traçado with a stroke, como se tivesse sido trespassado por uma seta me deixa em contemplação estética, mas nada que se compare com a palavra Alba. A própria sonoridade produz em mim uma certa ideia de luminosidade ainda não maculada, uma luz virginal. Contudo, a sombra semântica não é a única coisa digna de atenção. Devemos dar atenção ao som, à sua melodia e à promessa que ela contém. Alba é uma palavra lenta, que se diz devagar, tal como deve ser lento o romper da aurora. Qualquer precipitação pode perder o dia. Por fim, e não menos importante, a configuração gráfica, o modo como a palavra se apresenta diante do olhar. No oceano da prosa, a configuração das palavras perde-se na massa aquático do texto, mas quando se trata de poesia não é qualquer palavra que nela pode figurar. Esta interdição não se deve nem ao som nem ao sentido, apenas à imagem dela no papel, naquelas linhas que representam rios paralelos que nem no infinito se deverão encontrar. É isso o que são os versos. Rios paralelos, uns mais caudalosos que outros, mas sempre rios e nunca oceanos ou mesmo lagos. Hoje é dia 8 de Setembro, choveu nas primeiras horas do dia e a tarde está encoberta, presa a um calor húmido. Oiço as minhas netas, inventam jogos com que ocupam, por instantes, a sua adolescência. Quanto tempo faltará para que estar aqui se torne uma seca?

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Emancipações

Há coisas que são efectivas libertações, se não mesmo acontecimentos emancipatórios. Emancipei-me desse dispositivo arcaico que incomoda qualquer homem, quando não usa casaco. Usei o adjectivo arcaico não porque saiba que o dispositivo em causa seja muito antigo, mas porque fica bem classificar qualquer coisa de arcaica. Fui emancipado pelo telemóvel. Não apenas por ele, mas por essas coisas maravilhosas que dão pelo nome de aplicações, mais conhecidas por app. Dinheiro? Uma app resolve. Cartão de cidadão, carta de condução, documento único automóvel e não sei mais o quê? Outra app resolve. Cartões diversos? Outras app resolvem. Emancipei-me da carteira, desse trambolho que não fazia a ideia onde, não vestindo casaco, o haveria de colocar. Não podemos negar a existência de progresso no mundo, nem mesmo de progresso moral, pois tudo aquilo que nos liberta e emancipa de tutelas várias é moralmente bom e substitui algo que, pelo seu carácter constringente, nos rouba a liberdade. Diante de mim tenho dois pequenos cadernos ou, para dar um mais cosmopolita, dois notebooks. São de excelente papel, têm capas atraentes, apetece mesmo estar com eles na mão. De resto, não servem para nada, pois não lhes maculo as páginas com a minha letra sofrível. Sofrível é uma palavra que me fez recuar muitos, muitos anos. Quando era estudante pós-primário, havia uma estranha escala de classificação do desempenho dos alunos. A estranheza, uma inquietante estranheza, uma real Unheimlichkeit freudiana, vinha da introdução entre o medíocre e o suficiente – melhor, entre o medíocre mais e o suficiente menos – do sofrível. Num dos dicionários de língua portuguesa que uso, no verbete sofrível encontro o seguinte: antiquado – nota escolar um pouco inferior a suficiente. Eu que recebi classificações sofríveis tenho, por isso, a prova do meu arcaísmo, para além da minha insuficiência. Fui classificado por uma escala definitivamente antiquada. Imagino que terá sido algum professor com pouca paciência para os desempenhos dos alunos que inventou o sofrível. O que este escreveu, pensou, pode-se suportar, pode-se sofrer. Daí o sofrível. Acho que vou oferecer os notebooks de papel às minhas netas.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Estátuas de sal

Resisto, mas o poder da realidade é mais forte que o meu ou de qualquer um que lhe resista. Realidade deriva de real, que em latim – reāle – se origina em res, que significa coisa. Há um curioso sentido de real: aquilo que é relativo às coisas e não às pessoas. Aqueles que, como este pobre narrador sem narrativa, tentam resistir à realidade fazem-no para impedir a sua coisificação, a sua transformação em coisa. Ora, parece ser o destino de qualquer pessoa transformar-se em coisa, metamorfosear-se nessa coisa que está aí. Quanto mais reais, menos pessoas somos. Portanto, a realidade é uma enorme e poderosa máquina de converter pessoas em coisas. No Antigo Testamento há uma história que confirma o que acabo de escrever. Em fuga de Sodoma, Lot e a família foram avisados para não olharem para trás. Caso contrário, seriam transformados em estátuas de sal. Ora, a mulher do sobrinho de Moisés não conseguiu suster a curiosidade e olhou para trás, para a realidade de onde fugia. Foi coisificada. Moral da história? Não devemos ter contacto intenso com a realidade, caso contrário viramos estátuas de sal ou coisa pior. Seja como for, não se pense que mergulhar no ideal e viver nesse éter sublime salva quem quer que seja de se transformar se não em estátua, pelo menos em sal.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Sobre a inovação

Fui reconstituir um dente. O tempo de espera para além da hora marcada triplicou o tempo da reconstituição. Ouvi um pedido de desculpas, não foi mau. Alguma coisa estará a mudar, ainda que muito lentamente. Estou a exagerar, mas é preciso não esquecer que tenho, por vezes, uma certa atracção pela hipérbole. Como hoje é um dia dedicado à medicina, estou com curiosidade para ver quanto tempo, para além da hora marcada, esperarei no cardiologista. No livro de Houellebecq que estou prestes a acabar, a personagem principal, a dado momento, refere que está longe o tempo em que os caminhos de ferro franceses tinham como ponto de honra cumprir os horários. Portanto, ainda há uma memória de que em tempos cumprir o horário era sagrado. Não é o caso da medicina em Portugal. A experiência arcaica é que os horários não são para cumprir. Quando há esculápios que se empenham em fazê-lo – e começa a haver – estamos perante uma quase novidade. Era óptimo que se transformasse numa tradição ou, mesmo, num dogma cuja infracção representasse uma heresia. Não é que, nos dias que correm, a heresia afaste alguém de a cometer. Tornou-se marca de ousadia e distinção ser herege. Não me refiro apenas à religião, mas a qualquer assunto, pois todos os assuntos suscitam um corpo de crenças que, com o passar do tempo, se tornam canónicas. Ora, se se estabelecer uma analogia com o cancro, logo se percebe que este é herético. Há um código original que não se deve alterar, um texto sagrado, mas a introdução da inovação gera as neoplasias, que são uma espécie de doutrina herética em relação aos dogmas em que um organismo assentava. As consequências da inovação não são as melhores. Aqui, este texto entra em contradição. Apela à inovação como coisa boa e mostra que a inovação é coisa má. Talvez o autor sofra de uma incompatibilidade com a lógica. É uma possibilidade séria que o narrador não desmente, mas também não confirma.

domingo, 4 de setembro de 2022

Artes da ficção

Foi preciso um fim-de-semana com o meu neto para, por duas vezes, pôr os pés na areia da praia. Os netos têm poderes que só os avós reconhecem. A relação entre pais e filhos é contaminada pela necessidade de educar, impor regras, dizer não. A figura da autoridade é uma necessidade. Com os netos, as coisas são diferentes. No lugar da necessidade, reina a liberdade. No lugar da autoridade, a subversão de regras. Às vezes, porém, é necessário conter a ideia de subversão, pois parece que ela transborda da criança, sempre disposta a pôr as regras em causa, a encontrar modo de as furar, de lhes retirar a precária universalidade com que os adultos sonham revesti-las. Tirando estas aventuras de avô, restou o tempo de insónia. Consigo preencher esse tempo com leituras, o que não ajuda a pôr-lhes fim. Sem pegar em Serotonina durante o dia, em duas noites cheguei aos setenta por cento. Mais uma insónia moderada e acabo o romance. Conforme envelheço, não quero generalizar, menos consigo dormir. Agora, o neto e pais já se foram e eu preparo-me para retornar a casa. Aí chegarão as outras netas, para passar uma semana, antes que as aulas cheguem e a vida seja conspurcada com as nuvens negras da realidade. Não sei se é uma idiossincrasia pessoal, mas desde que um dia a minha mãe me levou à escola, tinha eu feito seis anos há um mês, que a vida nunca mais foi a mesma. Nunca me curei dessa traição, embora tenha disfarçado ao longo da vida. Não há nada como as artes da ficção.

sábado, 3 de setembro de 2022

Dias de ilusão

O encontro com a balança no pós-férias não foi particularmente penoso, apenas quinhentos gramas mais do que antes desse período fantasioso, no qual se alimentam quimeras como a possibilidade de as coisas não serem o que são. As férias estão para os nossos dias como o Carnaval estava para a Idade Média. Li que, então, era também conhecido como Festa dos Loucos. Era uma despedida dos prazeres da carne, a que se seguiria o tempo quaresmal. As férias de hoje são, mutatis mutandis, a mesma coisa. Não se trata tanto da questão da carne, mas da irrealidade. Uma das origens possíveis do Carnaval encontra-se na Babilónia e é um testemunho eloquente daquilo que nós, seres humanos, somos ou também somos. Nas Saceias – uma festa – um prisioneiro assumia durante alguns dias o papel de Rei. Vestia como ele, comia como ele e dormia com as suas mulheres. Enfim, um admirável mundo novo. Passadas as festividades, era espancado e executado. Fala-se em enforcamento, mas também em empalamento. Tudo tem um preço, dir-se-á. À irrealidade do reinado daqueles dias, seguia-se a dura realidade. As férias não me anularam a inclinação para a insónia. Esta noite, deu-me a possibilidade de ler um quarto do romance de Michel Houellebecq, Serotonina. A humanidade não sai lá muito bem tratada, mas o que seria de esperar quando se fala de uma espécie que concede uns dias de ilusão para, logo de seguida, supliciar até à morte o beneficiário dessa fantasia?

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Valor e preço

Descobri que dois livros que tinha comprado em férias já constavam nas estantes. O pior é que, antes de sair e de os encomendar, tinha ido verificar se existiam. Verifiquei, mas não vi. Por vezes, os deuses conspiram para nos perder. Não que a perda seja muita, mas é uma espécie de humilhação imposta pela realidade. Tenho de fazer o levantamento das coisas repetidas e pô-las à venda. O problema é que não tenho alma de vendedor. Como se sabe, há almas de todos os géneros e cada um tem a sua. Os que têm alma para vender, fazem-no com quem bebe um copo de água. Não é o meu caso, o que é sinal de desastre num mundo formatado pelo espírito do mercador. Quando o terceiro-estado tomou conta do mundo, tudo se converteu em mercadoria regulada pela lei da oferta e da procura. Esta é a mais curiosa das leis. Parece fundar-se na liberdade. O preço das coisas, de qualquer coisa, depende do exercício de vontades livres que chegam a acordo entre si. O efeito disto é que tudo deixou de ter valor e passou apenas a ter preço, que varia conforme os humores de compradores e vendedores. Os meus livros têm um preço, embora para mim tenham valor. Não são mercadorias, mas qualquer coisa que rompeu com o fetichismo da mercadoria. Contudo, isso é apenas um assunto privado. Objectivamente, eles têm um preço. Acho que me perdi no jardim dos caminhos que se bifurcam. Queria eu dizer que um mundo regulado pelo espírito dos mercadores é um mundo onde o valor foi substituído pelo preço. As coisas deixam de valer e passam a custar. Não sei o que me deu para escrever este conjunto de bagatelas, há muito conhecidas. Tenho a imaginação em pousio, mas isso não significa que, depois desse período de descanso, ela produza mais e melhores ideias. Já não tenho idade para me iludir, embora nunca desista de o fazer.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Viagens digitais

A internet é uma porta aberta para mundos que sem ela ficariam apenas ao alcance de poucos. Por exemplo, o universo dos alfarrabistas. Estes, claro, existiam muito antes de haver uma rede que liga toda a gente a toda a gente, mas a sua pura existência física não permitia aquilo que o alfarrabismo digital permite, o aceder quase ao mesmo tempo a vendedores de livros dispersos por todos o país, por todo o mundo. Depois, consente, sem ter de tocar nos livros, admirar estranhas conjugações de livros. Por exemplo, O Paraíso da Droga, a que se segue, do historiador Luís de Albuquerque, «O Reino da Estupidez» e a Reforma Pombalina, que é seguido por outro com o notável título Ensaios filosóficos escolhidos de operários, camponeses e soldados, da editora Vento de Leste. A este segue-se Ventriloquia ao alcance de todos, que precede Lobos do Mar, de Kipling, o qual antecede Poemas, de Holderlin. A seguir surge, inevitavelmente datado de 1974, Partidos Políticos – ponto por ponto e, para acabar a enumeração, a obra principal de Giordano Bruno, Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos. São estranhas constelações que se formam e que não eixam de enviar sobre o transeunte digital uma certa luz sobre o mundo em que ele aterrou. Além de perder tempo, estas viagens acabam por serem instrutivas, pois sempre se vai descobrindo autores desconhecidos. Agora, tenho de me fazer à vida. A realidade espera-me e eu não gosto de me atrasar. Setembro começou.