quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Meditações

S. Pedro, o CEO da empresa que gere o clima, está muito volúvel. Há instantes, chovia por aqui torrencialmente. Agora, um sol radioso. Nada garante, porém, que essa luz clara e vibrante dure mais de uns minutos. Umas compras inadiáveis levaram-me à rua. A cidade pareceu-me, apesar de lavada, sombria. Quando digo cidade sinto sempre uma certa estranheza. Em tempos, uma tradição ligada à fundação da nacionalidade, havia uma divisão clara, caso o fosse, entre cidades, vilas e aldeias. Interrupção do profundo pensamento. Tornou a chover torrencialmente. Continuação. Agora, as cidades cresceram como cogumelos. Talvez os habitantes de um burgo queiram ser cidadãos e não vilões. Não percebem que é muito mais interessante ser vilão do que cidadão. Um cidadão só tem um plural, cidadãos. Um vilão, todavia, tem três plurais possíveis: vilães, vilãos e vilões. Por aqui, somos todos uns vilães, mas fingimos ser cidadãos. Estas promoções a cidade enternecem os habitantes e excitam ao paroxismo os dirigentes autárquicos. Alguns grandes aglomerados populacionais, porém, insistem em ser apenas vilas e com isso mostram o seu toque aristocrático. Pensarão os vilãos daqueles sítios: não há cão nem gato que não seja cidade, nós mantemo-nos fiéis à nossa memória histórica. O sol brilha de novo. Enfim, talvez seja caso para marcar consulta num psicanalista para S. Pedro. Haverá, neste comportamento, qualquer coisa ligada a um recalcamento na infância. Sim, porque os santos também tiveram infância e terão sofrido do complexo de Édipo. Depois de dois dias de descanso, o narrador não encontrou nada de útil para discorrer. Agora, vou fruir o feriado.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Vícios e virtudes

Desiludo-me sempre, eu que gostava de ser conciso. Juro que vou escrever meia dúzia de linhas, mas devo sofrer de alguma variante pérfida de logomania. Quanto menos tenho para dizer, mais as palavras se arregimentam para formar frases. A contenção é uma virtude, mas, pelos vistos, não a cultivo. Também é verdade que a virtude tem má imprensa e pior fama. Ser-se virtuoso era um ideal ético que, em aparência, regulava a vida. Hoje, toda a gente prima pela autenticidade e manda para o diabo as aparências. Com estas foi-se a virtude e restam, para ostentar perante o público, os vícios, como se fossem virtuosos. A logomania expande-se, como se vê. Entrego-me ao sestro das palavras, enquanto deveria cultivar a virtude do silêncio, talvez mesmo tornar-me cartuxo e deixar a vida deslizar no grande silêncio. Um dos homúnculos que habita em mim fez questão de me recordar que não tenho idade para entrar para a Cartuxa e quando a tinha não estava preocupado com o silêncio, que é coisa de velho, sublinhou, mas com coisas bem sonoras. Fiz-lhe um gesto indecoroso e ele fugiu para a caverna onde habita. Começou a semana e não sei o que dizer dela, nem sei se tenho poder para o fazer. Sigo, então, o conselho de Wittgenstein: Sobre o que não se pode falar, deve-se calar. Eis o silêncio como imperativo.

domingo, 4 de dezembro de 2022

Pura quietação

Um domingo sem história, mas talvez este domingo não se distinga de todos os dias da semana, desta e de todas as outras. A história, seja grafada com ou sem capitular, é coisa humana, demasiado humana. Quando se diz um dia histórico estamos a acrescentar um qualificativo postiço a um evento natural. Os dias limitam-se ao fenómeno do nosso pobre planeta rodar sobre si mesmo. Sucedem-se uns aos outros. Quanto aos fenómenos históricos são o fruto de uma doença que atingiu a espécie humana e que a leva a não estar quieta. Em resumo, este domingo foi para mim pura quietude. Suspensão de toda a actividade, a não ser aquela estritamente necessária. Sempre podia ter aproveitado para fazer algumas pequenas arrumações, mas nem isso. Também a mente se manteve em pura quietação. Nada de pensar, nem de me deixar levar pelas fantasias com que a imaginação costuma enlamear a clareza e distinção dos raciocínios, infectando-os com o óxido dos delírios e das utopias. Há dias, tive de participar numa espécie de mesa-redonda sobre um assunto que não vem ao caso. Um dos participantes estava entusiasmadíssimo com o dito assunto, pois ele representava a presença da utopia. Já não tenho idade para este tipo de coisas e calei-me. Sempre que os homens se lembram de realizar utopias, aquilo que obtêm é a mais hedionda distopia. Um dia o padre Lodo, sabendo-me um adversário das utopias sociais e políticas, aprovou a minha posição, acrescentando-lhe uma motivação teológica que nunca me tinha ocorrido. Todo o pensamento utópico, com a sua desterritorialização, é uma revolta contra Deus, uma fuga da terra tal como ela é, o lugar de exílio a que fomos condenados pela precipitação dos pais da nossa espécie. Eu ri-me, confessei que não era essa a razão das minhas preocupações e disse-lhe que não deixava de ser interessante partir-se de sítios diferentes e chegar ao mesmo lugar. Todos os caminhos vão dar a Roma, respondeu-me ele. Na verdade, nunca deixa de ser jesuíta.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Um dia perdido

Ainda há coisas que correm bem. Um problema com persianas. Ocorreu-me ligar para a empresa de montagem e manutenção. Estava aberta. Expus o caso e disseram-me que tinham homens na rua. Já me iriam contactar. Assim foi. Daí a pouco apareceu um funcionário – um imigrante brasileiro – e ocupou parte substancial da manhã a consertar duas persianas e a afinar mais uma meia dúzia. Agora tudo sobe e desce, desliza nas calhas e, fundamentalmente, não há persiana que não trave quando deve, coisa que nem todos os seres humanos fazem. Uma manhã perdida, mas ganha. A tarde foi pior, pois tive de enfrentar uma coisa sobre a qual não tenho poder, mas que acabo por ter alguma responsabilidade moral, digamos assim. Ter responsabilidade sem ter o poder de decidir é uma situação desagradável, mas a realidade é feita de situações desagradáveis. Tal como a manhã, também a parte luminosa da tarde foi perdida, mas o sucesso foi muito menor que o da manhã. Continuo a ler as cartas do marquês de Custine, da sua visita à Rússia em 1839. Passados quase dois séculos, as coisas não serão substancialmente diferentes. Também é plausível pensar que entre o Portugal de 1839 e o de hoje haverá grandes continuidades. As coisas são muito mais lentas do que o desejo dos reformadores do mundo. Escurece. Oiço as Variações Goldberg. Não, não é o Glenn Gould, mas o Pedro Burmester.  Logo, irei ouvir o Messias, de Händel. Talvez o dia não seja completamente perdido. Veremos.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Dedicatórias e vozeios

Abro um livro e encontro de imediato uma dedicatória da autora a uma prezada amiga, seguindo-se o nome desta. O texto data de 10 de Abril de 1944. A escrita é espantosa, pois completamente incompreensível, com excepção de raras palavras. Estas mais se adivinham do que se lêem. É uma escrita com letras enormes, inclinadas para a frente, combinando arestas vincadas e ameaçadoras com enormes arcos, como se certas letras sofressem de uma gravidez adiantada. Pouco consegui perceber, mas a pessoa objecto da dedicação não seria das relações próximas da romancista. Se o fosse, a prezada amiga seria querida amiga. Se ainda fosse mais próxima constaria apenas o nome. As palavras nunca deixam de trazer com elas os marcos com que se assinalam as distâncias. Ora as distâncias entre as pessoas pertencem a uma ordem subtil que vai muito para além das distâncias sociais. A noite já caiu, mas na praceta ainda há um vozear adolescente que, com corridas e gritos, enfrenta o frio. Sim, é o vozear adolescente que enfrenta o frio e não os adolescentes. Estes são apenas o suporte daquele vozear, a possibilidade escolhida para ele se revelar. Esperam-me ainda algumas actividades. Há dias que nem a noite lhes põe fim.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Chegou Dezembro

Chegámos ao último mês do ano e ao dia da Restauração. É pena que o dia em que nos livrámos dos Filipes tenha uma designação que o pode confundir como uma não pouco útil actividade económica, onde, em vez de nos livrarmos desses filipes indesejados que são os quilos, somos ajudados a acumulá-los. Aqui, não tendo sido possível fazê-lo no primeiro domingo de Advento, é dia de montagem dos enfeites de Natal. Até aos Reis, a tradição é cumprida com rigor. Além disso é exposta uma pequena colecção, não deste narrador, pouco propenso a coleccionar, de pequenos presépios, verdadeiras miniaturas, quase sempre reduzidos à Sagrada Família. Coisa sem valor, mas que, por graça, tem vindo a crescer. Também, hoje, é o primeiro dia em que se ouve o Ensemble Alba, no CD It barn er foed - Old Yuletide Songs from Scandinavia. Um álbum com velhas canções escandinavas de Natal, comprado num museu da Dinamarca, há uns bons anos. Entrou na tradição familiar e só é escutado nesta quadra. Cada casa tem as suas idiossincrasias. De manhã, tive de sair e estava um belo dia de Inverno, apesar de ainda estarmos no Outono. O frio da manhã, já tardia, combinava-se com um sol vigoroso. O orvalho em plantas e relvas resplandecia e a Terra, nessa hora, estava banhada na mais pura perfeição, como se tivesse sido encantada. Caminhei devagar para o meu destino, sentindo o ar frio nas narinas e vendo o sol a cintilar nos vidros dos automóveis. Depois, tudo passou, o feitiço foi quebrado e o tempo voltou a correr, ele que tinha sido suspenso. Já chegou a noite.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Sapiens sapiens

Não sei o que será pior, se um dia sem nada para contar ou a falta de vontade para inventar alguma coisa para narrar. Tendo adquirido um gadget novo, tenho passado os tempos livres preso à experimentação para descobrir como funciona. Todas estas coisas tecnológicas prometem muito mais do que aquilo que se dispõem a cumprir. Talvez porque a realidade as teme e lhes resiste, negando-se a dobrar a cerviz ao génio inventor da humanidade. Como todos sabemos, a espécie humana lá vai levando a água ao seu moinho, dobrando as coisas ao desejo, mas estas, depois de serem derrotadas pelo engenho do sapiens sapiens, conspiram e vingam-se. Decidem funcionar mal, se esperamos grandes desempenhos. Funcionam bem, demasiado bem, se pedimos para que não funcionem. Ocorreu-me que somos uma espécie curiosa. Não apenas descobrimos a existência de múltiplas espécies, como damos nome a cada uma delas e à nossa. Para nós, claro, escolhemos o mais elevado, homo sapiens sapiens, o que sabe o que sabe. Esta designação contém uma dilatação ao infinito. Nós não somos apenas o homo que sabe o que sabe, mas também o que sabe que sabe o que sabe, e assim por diante. Tudo isto significa que não apenas desejamos saber, mas queremos ter um saber infinito, porventura, a omnisciência. Em resumo, presunção e água benta, cada qual toma a que quer. Esta é a segunda máxima ao gosto popular. Já chega.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Herança

A luz cai sobre a cidade, lembrando aos mais distraídos que a tarde ainda não acabou. Na avenida, passa gente sem pressa, pessoas atreladas a pequenos cães, carros sem destino visível. A luz desmaiada do sol resplandece nas paredes do hospital e da escola aqui ao lado. Um cão solitário fareja os troncos das árvores, os pneus dos carros, os postes da iluminação eléctrica. Hoje, na busca de uns velhos papéis, encontrei um volumoso envelope castanho com três cadernos manuscritos. Não me pertencem, eram de Eduína. Recordei, ao vê-los, que ela me pedira para os guardar, até que os tornasse a requisitar. Assim fiz, mas ela nunca os pediu de volta e agora é tarde para o fazer. Esquecera-me deles e não faço ideia do seu conteúdo. Imagino que, nesta hora, já não serei o fiel depositário, mas o herdeiro. Um herdeiro acidental, fruto de não haver herdeiros directos nem indirectos. Quando peguei naquele embrulho fiquei perplexo e ainda não sei o que fazer com ele. Não me lembro qual foi a razão para que ela me pedisse para guardar os manuscritos, nem se terá dito alguma coisa sobre o seu conteúdo. Ela nunca deixara de ser esquiva, pelo menos quando isso a interessava. Um dia destes terei de tomar uma decisão sobre o que fazer com aquela herança ocasional. Agora, tenho de me preparar para uma videoconferência. Pelo menos, fico com a certeza de que estou integrado no admirável mundo novo. Não sou um digital nato, mas ainda consigo que me tomem por alguém adaptado às novas tecnologias. Se tivesse paciência, haveria de ver um jogo de futebol, mas este perdeu o encanto que um dia, há dezenas de anos, teve. E não me parece possível que possa ser reencantado. Também os mitos morrem.

domingo, 27 de novembro de 2022

Juízos e paixões

O domingo galopa para o seu fim. Entrou já no túnel negro da noite. Quando, pela aurora, voltar a luz, será a claridade de um outro dia. A casa está agora silenciosa, depois de as netas se terem ido embora. Ecoam ainda as risadas, mas são já pura memória. Ontem, elas tiveram infinita paciência para ele, para brincarem com o novo robot chegado há dias com os quatro anos. Conjugar adolescência e infância nem sempre é uma tarefa fácil. Avanço, com alguma preguiçosa lentidão, na leitura da obra do Marquês de Custine sobre a Rússia. Pus de lado a edição portuguesa, pois está amputada de um quarto das cartas, e leio em francês, a edição de 1843, graças à actividade benévola de quem põe em formato digital as obras caídas no domínio público. Na quinta carta sublinho Um juízo são é a recompensa das paixões reprimidas. Eis uma observação que os nossos dias não poderiam aceitar. A repressão das paixões teria um impacto patológico. Devemos ser compreensivos e aceitar a natureza humana tal como ela é, incluindo o seu carácter passional. A contrapartida, caso se aceite a máxima de Custine, será a ausência de sanidade dos nossos juízos. Talvez a nossa época imagine, caso as épocas imaginem seja o que for, que seja possível compatibilizar a clareza do juízo com uma gestão das paixões. Em vez da sua repressão, teríamos um exercício burocrático de administração passional. Custine pertence ainda a uma cultura que, do ponto de vista teórico, mas não prático, vê em qualquer paixão um princípio de desordem. Reprimi-las é trazer a ordem ao caos que habita no fundo tenebroso de cada ser humano. E será essa ordem, resultado do cultivo de certas virtudes, que permitirá a sanidade dos julgamentos, um discernimento claro e distinto. Oiço o Piano Trio n.º 2, de Franz Schubert, e sei que todos estes pensamentos se desvanecerão.

sábado, 26 de novembro de 2022

Pousio

Daqui a pouco chega o meu neto com os pais. As netas já cá estão desde ontem para sessões de trabalho contínuo com a avó. Consta que vão ter avaliações de Matemática. Agora foram sair. Enfim, a escola não faz bem a ninguém, embora existam coisam que, apesar do mal que sabem, acabam por ser boas. Tal como certos medicamentos. Este blogue esteve em pousio uns dias. Pousio é um termo do mundo agrícola. Traz com ele uma promessa, a de a Terra se regenerar e tornar mais fértil. Duvido, porém, que a analogia chegue até aí. O blogue tem poucas possibilidades de regeneração e é certo que a escrita não se tornará mais fértil. Há muito que não fazia uma caminhada. Fiz hoje. Embora não tenha qualquer prova de que tenha contribuído para a minha regeneração e fertilidade, senti a sensação agradável do ar frio, mas não em demasia, no rosto. Enquanto andava, ao final da tarde, pensava que estes são os dias mais magníficos do ano. Um dia de sol e de frio. São um sinal de uma presença daquilo que é arcaico, embora este arcaico se resuma ao meu arcaico e não ao da espécie. Em vez de pousio estive para escrever interregno, mas há que ser modesto. Estes escritos não representam reino de coisa nenhuma. Imagino mesmo que serão escritos republicanos, mas isto não diz nada, pois há monarquias que são efectivas repúblicas. Este assunto, todavia, está-me vedado, apesar de me ser permitido ler um poema de Horácio que é um panfleto contra a ascensão social de um ex-escravo. O Epodo 4 começa assim: Entre lobos e cordeiros não tão grande inimizade calhou em sorte / como aquela entre mim e ti, / tu, que tens os lombos queimados pelos açoites da Ibéria, e as pernas marcadas por durões grilhões! Não contente, acrescenta: Embora andes por aí a pavonear a tua riqueza, / a fortuna não muda o berço. Horácio deveria saber que a Fortuna é deusa caprichosa e se não muda o berço, pode muito bem mudar o leito.

domingo, 20 de novembro de 2022

D. Carlo

Como ontem tive de ir a Lisboa, cumprir com grande prazer a obrigação de avô, hoje saí para ir às compras. Dei uma volta pela cidade. Pareceu-me mais sombria do que habitualmente, as pessoas estavam de semblante carregado, como se temessem a aproximação do Inverno. Registei alguns quadros humanos que me fizeram lembrar um certo filme italiano, cujo título, por pudor, omito. Tenho estado a ouvir um CD com o título Gesualdo. Uma obra da etiqueta ECM. Apresenta duas peças de Carlo Gesualdo, príncipe de Venosa, uma do compositor australiano Brett Dean e outras duas do estoniano Erkki-Sven Tüür. Gesualdo foi uma personagem tortuosa, não apenas por ter assassinado a primeira mulher e o amante desta, mas também pelos estados depressivos de que sofreu na parte final da vida, na qual se entregou ao sentimento de culpa e a exercícios de punição, tendo contratado mesmo alguém para o açoitar com regularidade. Viveu, contudo, para a música e a sua obra é uma das mais significativas e inovadoras do Renascimento. Werner Herzog fez um filme-documentário sobre o compositor com o título Gesualdo – Death for Five Voices. Talvez a lenda negra que o rodeava tenha contribuído para o seu esquecimento até que o século XX o redescobriu. Desde o início dos anos noventa do século passado até hoje, segundo informa a inevitável Wikipedia, foram escritas pelo menos sete óperas que têm por tema a vida de D. Carlo Gesualdo. A primeira – o drama musical Maria di Venosa – é do compositor italiano Francesco d’Avalos, um descendente de um tio de Maria d’Avalos, a primeira mulher de D. Carlo. A justiça da altura, tendo os homicídios ocorrido numa situação de flagrante delicto, considerou que o príncipe de Venosa não cometera qualquer crime, apesar dos requintes de malvadez que envolveram o acto de vingança. Numa leitura mais suspeitosa poder-se-á pensar que a família de Venosa seria mais influente que a do duque de Andria, Fabrizio Carafa, o amante, e a dos de Avalos. Nestas coisas e naqueles dias, o direito e a força teriam cada um a sua lei. Lembro-me perfeitamente do disco em que descobri Gesualdo. Foi em Tenebrae (1991), em que a música do compositor é interpretada pelo The Hilliard Ensemble. Julgo que queria escrever sobre outra coisa. Perdi-me e agora já não me lembro sobre o quê. Imagino que o cinzento deste domingo me tenha levado ao encontro de D. Carlo. Também dos dias devemos desconfiar.

sábado, 19 de novembro de 2022

Motivos e causas

Um dia cinzento e húmido. É possível que chova, mas não é certo. Ouvem-se já desabafos sobre o excesso de chuva. Ora, as pessoas queixam-se da seca, ora temem o dilúvio. Uma coisa não é incompatível com a outra, mas há que admitir uma certa justiça cósmica. Se há grandes períodos de seca, é aceitável a existência de períodos dilatados de chuva. Contudo, nada prova a existência de uma justiça cósmica e o mais provável é que as coisas aconteçam um pouco ao acaso ou segundo motivações que não conseguimos determinar. É insensato, diz-me um homúnculo que vive dentro de mim, utilizar palavras como motivações para se referir aos acontecimentos naturais. Os acontecimentos não têm motivos, têm causas, acrescenta ele. Se essas causas apresentarem regularidade acabamos por lhes chamar leis. Eu encolho os ombros. O homúnculo, por vezes, irrita-me, mas, por norma, deixa-me indiferente. Se a natureza tem as suas leis, por que razão não haverá de ter os seus motivos? Isso é cair na mitologia, murmura o homúnculo. Que seja, digo. Aos sábados de manhã é necessário reencantar o mundo. Já basta quando chegarem os dias úteis. Nessa hora, a natureza deixa de ter motivos e passa a ter causas e mesmo os seres humanos, sempre tão cheios de motivos, não terão mais do que causas que os levarão a agir para enfrentar a dura necessidade e suprir os desejos naturais e os outros. Na verdade, está um dia cinzento e húmido. As nuvens permanecem indecisas. Conferenciam umas com as outras. Talvez chova, talvez não.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Epitáfios

No livro do poeta Jorge Gomes Miranda, A Última Pedra (2022), existem três breves citações em epígrafe. Uma de Eliot, every poem is an epitaph. Outra de Auden, breaking bread with the dead. Por fim, uma de Genet, offerte à l’innombrable peuple des morts. Fico sempre perplexo com a existência de epígrafes. Parecem funcionar como uma cobertura de autoridade ao que se vai ler. Das três, pelo menos hoje, prefiro a de Eliot. Há nela um critério para separar poemas de não poemas. Se cada poema é um epitáfio, então o que não for um elogio fúnebre não será poema. Poder-se-ia radicalizar a posição de Eliot e afirmar que cada poema é um requiem. Do elogia passar-se-ia para uma função soteriológica da poesia. Em vez do panegírico dos mortos, um pedido de salvação. O conjunto dos mortos – a quem se elogia ou por quem se celebra o requiem – não será composto apenas por seres humanos. Qualquer ser pode desencadear um poema, mesmo os mais insignificantes. Também a classe dos eventos é propícia a que se escreva poemas. É possível, porém, que nem Eliot acreditasse que cada poema é um epitáfio, mas terá achado que a junção das palavras poema e epitáfio compunha uma bela metáfora, que a predicação impertinente de epitáfio ao sujeito poema era um óptimo achado, que a verdade literal do que está dito é irrelevante. Por mim, deveria, porém, falar do poeta português. O quinto e último poema de um pequeno ciclo com o título CEMITÉRIOS diz: A própria terra / se pudesse / usaria máscara. / Protegia-se / de nós. Será que a terra não usa máscara? Pensei. Se a terra não usa máscara, se nos oferece o rosto despido, então para que servirá a poesia? Não é ela o rasgar da máscara com que a terra cobre o rosto? Hoje é sexta-feira. Choveu, ao contrário do que profetizavam os sites meteorológicos. Também eles se deixam enganar pela máscara com que a terra se cobre.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Bom senso

Há conversões curiosas. Por exemplo, a do marquês de Custine. O avô e o pai foram guilhotinados na época do Terror. A mãe esteve presa até à queda de Robespierre. Em 1839, faz uma viagem à Rússia. Vai, segundo diz, em busca de argumentos contra o governo representativo. Volta de lá adepto das constituições, isto é, adversário do absolutismo. Talvez fosse um espírito aberto à aprendizagem e por isso converteu-se. Na tradição cultural que nos forma, a mais célebre conversão é a de Saulo de Tarso, conhecido como S. Paulo. Todas as conversões trazem consigo um perigo, o da substituição de um fanatismo por outro. Não parece ter sido o caso de Custine. Tudo isto vem a propósito de uma viagem pela informação sobre o estado do mundo. Neste, existem convicções a mais e pouca gente com capacidade de se converter ao bom senso. Talvez porque este, segundo afirmava, não sem ironia, Descartes, é a coisa mais bem distribuída no mundo, pois não há quem queira ter mais do que aquele que possui. Sempre podemos questionar se a nossa época é mais insensata do que as anteriores. Não sei se a insensatez se mantém constante ou se vai variando, talvez de forma cíclica. O que sei é que nunca como hoje os meios para a difundir foram tão grandes e tão poderosos. Pena esses meios não terem qualquer poder para difundir o bom senso. Se as pessoas tivessem a predisposição para aprender, como a teve Astolphe Louis Léonor, marquis de Custine, as coisas por certo seriam menos desagradáveis. Porém, as pessoas assim como não querem ter mais bom senso do que aquele que possuem também não querem aprender mais do que aquilo que sabem. O que vale é que a noite já caiu e há-de trazer consigo o sono, onde tudo isto será apagado. Talvez a realidade também precisasse de um apagão.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Kitsch

Num ensaio de 1939, Vanguarda e Kitsch, Clemente Greenberg sugere que o kitsch é uma forma de arte sintética, na qual o artista digere a arte para o espectador, poupando-lhe o esforço, fornecendo-lhe um atalho para o prazer da arte que evita o que é necessariamente difícil na arte genuína. Este texto constata já a ruptura, nunca mais ultrapassada, entre arte e grande público. O grande público, cada vez mais, espera o que é fácil, aquilo que lhe provoca, de modo imediato, prazer. Os artistas, porém, procuram o difícil. Fazem, de certo modo, da arte um programa de interrogação sobre o real, procuram ir para além das aparências, para esse reino tão adverso à experiência sensível e ao sentimento que procuram rápida satisfação. Também as relações entre as pessoas deveriam ser assim, asseverou-me, um dia, Eduína. No amor e na amizade, não os confundo, acrescentou, devemos apenas buscar aquilo que é difícil, o que se esconde para além das aparências. Respondi-lhe fazendo notar que a imersão nessas paisagens desconhecidas dos sentidos e dos sentimentos não assegura mais autenticidade do que navegar por aquilo que é conhecido, conforta a sensibilidade e exalta o sentimento. O amor e mesmo a amizade serão do domínio do kitsch, vivem da facilidade. Estava a provocá-la. Por isso, respondeu, interditei-me o amor e relativizo a amizade. É a minha forma de mergulhar no difícil e evitar o kitsch na minha existência. Preciso do esforço e este não se compadece com certos estados de alma. Encontrei estas linhas num velho caderno datado de Setembro de 1992. Não se trata de um diário, mas de um registo de coisas que gostaria de não esquecer. Há notas sobre vinhos, indicações sobre livros a ler, resenhas de filmes, descrições de conversas havidas. Uma delas era esta, que se prolongou muito para além do que aqui escrevi.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Meios e fins

S. Pedro foi benévolo com os adeptos de S. Martinho, o que parece mostrar a existência de concórdia entre os diversos santos que se cultuam nesta terra. Passada a efeméride, o gestor – será o CEO? – dos humores climáticos continuou o combate à seca neste pobre país. Ordenou que as nuvens se juntem por cima do território nacional e deixem escorrer a água que as empanturra. E elas, obedientes, desfazem-se da carga. Está um magnífico dia de chuva, embora exista uma contínua oscilação de intensidade. Nas ruas, quase que não se avista vivalma. Tudo recolhido. Hoje comecei o dia com uma daquelas videoconferências cuja finalidade é não possuírem qualquer finalidade, mas cuja importância fundamental todos reconhecem. Somos uma pátria muito curiosa. Não temos fins, mas não regateamos esforços aos meios, embora se desconheça a que fins esses meios devem servir. Há pátrias em situação muito pior. Imaginem-se aquelas que além de não terem fins, também não têm meios. Outras há que estão cheias de fins, mas faltam-lhes os meios. São pátrias infelizes, pois vivem sempre frustradas, como se fossem atormentadas por um desejo muito intenso, mas que não encontram em si potência para o consumar. Não sendo o mais favorável, o nosso caso não é mau de todo. Ao não termos fins, não sofremos a angústia de não os atingir e ainda ficamos alegres porque usamos os meios, fazemos qualquer coisa, embora se desconheça para quê. Isto, escrevi-o antes de almoço. Caso fosse depois, teria opiniões completamente diferentes, pois a opinião é uma coisa variável, e as minhas opiniões variam em conformidade com os ponteiros do relógio. É verdade, o meu relógio ainda tem ponteiros. Sou um anacrónico.

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

A tentação da profecia

Um bom profeta é aquele que se inibe de profetizar sobre o futuro. Se já é difícil fazer profecias sobre o presente e o passado, mais difícil é fazê-las sobre aquilo que há-de vir. Ocorreu-me tudo isto ao ler um certo pensador que não se eximiu de descrever um quadro de possibilidades e de impossibilidades. Nem as possibilidades se realizaram, nem as impossibilidades deixaram de acontecer. Sobre o que acontecerá nos negócios humanos o mais indicado é manter um prudente silêncio. Ora, a prudência, apesar dos panegíricos feitos em sua honra ao longo dos séculos, nunca foi virtude que se cultivasse. No coração dos homens há uma inclinação para o excesso que os impele para o mar revolto, onde confundem a realidade com as paisagens fantasmagóricas do seu desejo. As acácias da praceta atingiram o ponto em que, nas suas folhas, o amarelo se sobrepõe ao verde, coexistindo ambos numa harmonia que tempo acabará por destruir. Como se vê, também este narrador tem alma de profeta, embora a profecia se funde na observação do carácter cíclico da natureza, o qual não assegura que a profecia se realize necessariamente. Penso muitas vezes que a segunda-feira não é dia propício para escrever, pois raramente me ocorre alguma coisa que valha a pena narrar. Passam das cinco da tarde e os cavalos da noite já galopam na planície. Não tarda, eles ocuparão a cidade que se defenderá das trevas com a luz lugubremente amarelada da iluminação pública. Nova profecia.

domingo, 13 de novembro de 2022

Peroração sem sentido

Fizeram-me, hoje, notar que tenho um comportamento de velho. O caso é simples. Como tinha compras para fazer e ontem não as tinha feito, hoje levantei-me cedo e resolvi o assunto a horas bem razoáveis. Razoáveis para mim, não para outros, claro. Nestas coisas, o perspectivismo e o relativismo são aceitáveis. Noutras, nem pensar. Seria absurdo, por exemplo, aceitar que para uns a Terra pode ter uma configuração mais ou menos esférica e para outros ela ser plana, e que ambos os partidos estariam na verdade, que tudo dependeria da perspectiva. O melhor, porém, é não me meter por estes caminhos, pois são quase tão tortuosos quanto os caminhos da política, se não mais. Está um domingo deslavado de província. Uma luz solar anémica, uma tarde sem fulgor. Nas ruas, passam rumorosos automóveis, passam gentes entediadas, perdidas, sem saber o que fazer destas horas livres. A liberdade sempre foi um grande peso e as pessoas atrapalham-se com ela, trocam mãos e pés e acabam por sentir saudades das cadeias que as prendem à estrita necessidade. Tinha razão Sartre naquela ideia de o homem estar condenado a ser livre. Muitos sentem a liberdade como uma condenação. Reparo agora que o padre Settembrini não me ligou, como costuma fazer aos domingos de manhã. Terei de investigar as causas, pois tudo o que acontece e o que não acontece terá a sua causa. Umas coisas terão causa para acontecer e outras terão causa para não acontecer. Isto significa que existem muito mais causas do que coisas que acontecem. A luz desmaiada do dia está a levar-me por maus caminhos. Será mais sensato continuar a beber o chá de gengibre, sempre me ajudará na digestão dominical, em vez de me entregar a perorações sem sentido. Diga-se, em abono da verdade, que a legião de coisas sem sentido é muito maior que a das coisas com sentido. O telemóvel está a tocar. Não, não é o padre Lodo. É uma neta. O que me quererá ela?

sábado, 12 de novembro de 2022

Coisas de poesia

Tinha encomendado online e fui, há pouco, levantar na Fnac que por aqui existe. Trata-se da tradução da obra poética de Paul Celan, que a Assírio & Alvim deu agora à luz, numa tradução de Maria Teresa Dias Furtado. Tinha lido a crítica, onde se salientava que traduzir Celan é um empreendimento muito arriscado, pois a sua poética implica quase uma reinvenção da língua em que escreveu, o alemão. Descobri que Celan, cujos pais morreram num campo de concentração nazi, se envolveu amorosamente, numa relação tensa, com a escritora austríaca Ingeborg Bachmann, cujo pai pertenceu ao partido nazi. Imagino que o antagonismo das origens terá desencadeado a centelha que os aproximou, mas isso é já colocar um motivo extrínseco à paixão que Eros neles terá incendiado. Voltando à tradução e não pondo em causa o que o crítico – aliás, merecedor da máxima atenção – disse, decidi-me pela compra, pois por problemática que seja a tradução, ela aproxima-me da poesia de Celan, a qual me é completamente inacessível no original. Não contente, com a obra de Celan, encontrei, mal olhei para os livros, a tentação é terrível, O Olhar Diagonal das Coisas, obra que reúne a poesia de Ana Luísa Amaral, a poeta – era assim que ela se reconhecia – desaparecida há muito pouco tempo, um dos nomes mais importantes da poesia portuguesa das últimas décadas. Ambos os livros têm uma belíssima edição, com capa cartonada. O problema é que, em conjunto, exigem uns dez centímetros de estante, para além de cada um pesar mais de mil e quinhentos gramas. Poderia ainda falar de Nathalie Sarraute e de Joseph Roth ou da belíssima revista Electra, mas ficará para outro dia, caso me lembre e me apeteça. Daqui a pouco chega o meu neto e tenho de mudar de registo. Terei de ir preparar os carros – as miniaturas, entenda-se – para fazermos uma corrida.

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Dilemas

Sou assaltado pelo reino do ruído. O cão não encontra outro lugar para ressonar a não ser no meu escritório O que vale é que amanhã retornará ao lar e eu à tranquilidade. Esta experiência veio confirmar a decisão de não ter animais domésticos. São muito engraçados na casa dos outros. Sei que não é muito popular esta posição, mas é aquela que me cabe. A humanidade é marcada, como se fizesse parte da sua essência, pelo pluralismo sobre todos os assuntos. O mesmo se passa relativamente aos animais domésticos. Há quem adore tê-los, quem não os suporte, quem apenas não os queira por casa, embora não tenha qualquer sentimento negativo perante eles. É o meu caso. Tudo então se conforma, segundo o gosto de cada um. Estou perante um caso momentoso. Ou oiço a terceira sinfonia de Gorécki e expulso o cão do escritório, ou oiço-o ressonar e esqueço a música do compositor polaco. Abro a janela, deixo entrar o ar outonal. A luz cai sobre a copa das árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado. Um verde luminoso sobrepõe-se ao verde sombrio das ramadas que não apanham luz. Mais ao longe, o hospital permanece estático, com as paredes cobertas de fungos, cada vez mais cinzentas. Ainda mais longe, erguem-se colinas de pouca monta, pontilhadas pelo casario de aldeias sem nome O que vem depois delas, não sei. E isto é o que acontece à humanidade, nunca saber o que vem depois. Suspeito, contudo, que depois desta sexta-feira, virá um sábado, mas é uma conjectura.