domingo, 9 de julho de 2023

Ser pessoa

Um domingo de clausura, como se ainda estivéssemos no tempo dos confinamentos. Deixei as horas deslizar, coisas em que elas são de uma competência inexcedível. Troquei telefonemos com amigos e familiares, dormitei, enfim um dia sem história. Peguei num ou noutro livro, abri-os ao acaso. Num desses encontros acidentais li: Qualquer pessoa musical consegue distinguir melodias de meras sequências de sons.  Não foi o conteúdo da proposição, da autoria de Roger Scruton, que me fascinou, mas o sujeito dessa proposição, a pessoa musical. Haverá pessoas não musicais? Imagino que dizer pessoa musical será redundante. Ser musical é uma condição necessária para ser pessoa, mas, reconheça-se, não será suficiente, pois consta que animais que não são pessoas são musicais.  De Scruton saltei para Montaigne. No ensaio sobre a amizade, a certa altura, diz não sem graça: Ao convívio à mesa, associo gracejo, não seriedade; na cama escolho a beleza antes da bondade; na conversação, a competência mesmo sem a virtude. Há na frase uma prosápia insuportável, a manifestação pública de uma imagem hiperbólica de si como sujeito refinado, de bom gosto e espirituoso. Em qualquer circunstância escolho sempre o meu prazer, isto é, escolho-me. Este parece-me, todavia, um caminho para alguém perder a sua musicalidade e, sendo esta condição necessária de ser pessoa, para se perder enquanto pessoa.

sábado, 8 de julho de 2023

Um Rocinante

Ao fim de umas miseráveis trinta e seis horas dependente de canadianas, decidi ir em busca de um Rocinante que me levasse aonde eu quisesse ir, ou quase. Uma cadeira de rodas, onde me transporto sem temer cair. Descobri que não tinha vocação de funâmbulo. Bem tentei equilibrar-me, bem tentei aproveitar as lições online, mas o resultado foram dores no pescoço e um dedo do pé esquerdo preto, motivado por um inesperado encontro com uma das canadianas. Quase ia caindo, mas lá me encostei a uma parede. Sempre tive vertigens e nunca achei que seria boa ideia pôr-me a fazer equilíbrios na corda, fosse ela bamba ou não. O culpado deste desvario foi o cirurgião, quando me disse olhe, tem de usar canadianas por uns tempos. Confesso que olhei, mas não vi nada, não percebi o filme em que estava metido. Poderia ter dito olhe, use uma cadeira de rodas para se transportar e chame-lhe Rocinante. O mal do médico, um rapaz novo e talvez um pouco azougado, é desconhecer quem foi o Rocinante e não perceber que também eu sou um cavaleiro da triste figura. Agora, faço gincanas pela casa. Isto não melhora a minha figura, mas para isso é já demasiado tarde.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Instruções

Como D. Quixote, tenho à minha frente um mar de desafios que farão parte da gesta que será cantada até ao fim dos tempos. Não são coisas ilusórias como moinhos tomados por gigantes ou feiticeiros e encantadores que geram os males do mundo, mas canadianas reais em que me apoiarei, durante as próximas duas semanas, sem que o pé direito, pobre dele, tenha direito (uma contradição nos termos) a suportar o corpo de que faz parte. Desde ontem à tarde que tento estabelecer com os dispositivos de suporte uma aliança e um tratado de paz e cooperação. Não me têm parecido particularmente cooperantes, mas com o passar do tempo, como se deseja nos casamentos por conveniência, as canadianas e este candidato a cavaleiro andante talvez cheguem a amar-se e estabeleçam uma relação harmoniosa, apesar de efémera. Como se fosse ler uma arte de amar, vou ver uns vídeos onde se explica como estabelecer uma boa relação matrimonial com as canadianas. Neste mundo, que é o melhor de todos os possíveis, há vídeos com instruções para tudo, até para as mais inusitadas núpcias.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Remeter-se ao silêncio

O Verão tem sobre mim um efeito nefasto. Já constatei isto milhares de vezes, e já o anunciei aos ventos quase outras tantas. Cheguei à idade em que uma pessoa está condenada a repetir-se. Este pendor para a iteração nada tem de misterioso. É uma forma de luta contra o esquecimento. É verdade que essa propensão tem um poder especial de irritar os outros, os que não podem fugir dos nossos discursos, mas a memória lá se vai aguentando à tona de água. Há também uma outra possibilidade. Remeter-se ao silêncio. Esse silêncio cria um espaço onde a pessoa rememora continuamente aquilo que lhe dá prazer. Se, um acaso, traz uma memória desagradável, basta um encolher de ombros ou um franzir de sobrancelhas, e ela vai-se embora, para que aquilo que é radioso ocupe o palco. E é isso que vou fazer a seguir, remeter-me ao silêncio e contemplar as paisagens luminosas que a memória me traz.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Errância

A certa altura dos Parerga und Parlipómena, Schopenhauer diz: O ponto em que se dissociam em primeiro lugar as virtudes morais e os vícios do ser humano é essa oposição de ânimo fundamental em relação aos outros, que assume o carácter da inveja ou o da compaixão. Como salienta o filósofo alemão, estes atributos opostos nascem da comparação que cada um faz do seu estado com o dos outros. A inveja, fonte da actuação viciosa, levanta um muro entre o eu e o tu, a compaixão torna esse muro menos espesso, mais transparente, podendo mesmo derrubá-lo. Contudo, parece-me, há invejas virtuosas e compaixões que traem a marca do vício. Quando alguém admira o desempenho de alguém excelente, nunca deixa de ressoar uma ponta de inveja. É virtuosa, contudo, porque não deseja eliminar o outro, mas superar-se a si mesmo. Por outro lado, certas formas de compaixão não são outra coisa senão afirmações de uma superioridade, e ser compassivo é uma forma viciosa de prender o outro na sua suposta inferioridade. Imagino que, quando nos prendemos à oposição entre virtude e vício, já nos perdemos no caminho. Perdemo-nos quando cedemos à tentação de nos compararmos com os outros, de aferirmos a nossa singularidade pela de terceiros. Nesse momento, entramos na errância de onde raramente, muito raramente, se sai. Nem todos têm um destino como o do filho pródigo, perdendo-se uns na inveja, outros na compaixão.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Dragões

Julho manifesta a exuberância com que foi dotado. Ri-se com gargalhadas quentes, da sua boca saem baforadas de fumo. Julho é um dragão disfarçado de mês para poder figurar no calendário. Os dragões, como é do conhecimento geral, são seres esquivos, por isso disfarçam-se e metamorfoseiam-se. Ao virar da esquina podemos deparar-nos com um transformado em automóvel ou camião, de preferência. Quem não se deixou enganar foi S. Jorge. Trespassou com a lança um dragão que tinha ultrapassado as marcas. A princípio, como é hábito de todos os dragões, pedia apenas que lhe dessem duas ovelhas por dia para deixar os homens em paz. A certa altura, todavia, em vez de ovelhas quis a filha única do rei da Líbia. Foi a sua perdição, o que está de acordo com a tradição. S. Jorge, imagino que na altura ainda não estivesse canonizado e, por isso, sem direito a título, surgiu do nada, que é o sítio de onde surgem todos os verdadeiros heróis, e zás. Matou a dragão. Não sei se o derrotado teve direito a funeral ou ficou abandonado aos cães selvagens e às aves de rapina. Também não tenho informação sobre se S. Jorge, que ainda não o seria, casou com a filha do rei. Se não casou, é uma pena. Era uma história que além de acabar em bem ainda envolvia a marcha nupcial, apesar de nem Mendelssohn nem Wagner terem escrito as suas, mas na terra onde existem dragões tudo é possível, mesmo a existência de coisas antes de terem sido criadas. Está calor.

domingo, 2 de julho de 2023

Uma demanda falhada

Uma saída de manhã em busca de um produto que, afiançaram-me, estaria num certo sítio. Chegado ao lugar designado, dou conta de que o artigo será tão elusivo quanto o Santo Graal. Como acontece com muitos daqueles que demandam o Graal, acabei por descobrir um sucedâneo e, conformado, troquei o objecto da aventura por aquele que encontrei à mão de semear. Afinal, não sou nenhum cavaleiro da Távola Redonda. Aliás, aquilo que procurava não seria tanto o graal, mas o que se poderia pôr dentro dele. Apesar de tudo foi uma viagem instrutiva. Aprendi que não se deve confiar em certas informações, por mais fiáveis que pareçam ser. A realidade é de tal modo mutante que aquilo que ontem era verdade, hoje será mentira. Depois, a experiência da atmosfera seca que envolve estes sítios recordou ao corpo a realidade, corpo que tinha andado protegido dos calores por terras mais amenas. Tudo se paga. Hoje é domingo, mas não consigo imaginar o que isso significa, tão lassos estão os meus neurónios. Escrevi, sem incorrecção, lassos, mas se escrevesse laços também não estaria incorrecto, pois a lassidão neuronal que me acomete arredonda-me os neurónios, que se curvam sobre si, formando laços e remetendo-se a uma implacável greve ao contacto com os parceiros. Uma tragédia. Pelo WhatsApp recebo um vídeo. O meu neto deu as primeiras pedaladas na bicicleta sem cair. Valha-me isso.

sábado, 1 de julho de 2023

Nêspera

A França, como pertence à sua natureza, está efervescente. Nessa efervescência reflecte-se a tragédia europeia e a morte de um sonho, de uma utopia que não se constituiu a partir da destruição das liberdades e de uma vida de perseguições. Um célebre sociólogo francês, Raymond Aron, publicou, em 1981, um livro de entrevistas com o título O Espectador Comprometido. A expressão assenta num oximoro. A imparcialidade parcial. Na ideia de espectador manifesta-se aquele que observa imparcialmente o que se passa, o filósofo, no dizer de Pitágoras. No compromisso declara-se a parcialidade de tomar partido, de enviesar o olhar para afirmar o bem. Talvez a posição do filósofo seja insuportável. Olhar sem tomar partido parece o desígnio de um deus e não de um homem. Por isso, fantasio, Aron foi um sociólogo. A pergunta perturbante, perante o panorama de uma Europa em convulsão, é se se deve ser apenas um espectador ou se se acrescenta ao acto de olhar a ideia de compromisso? Quem pensa em comprometer-se fica refém da parcialidade do compromisso. Quem se decide por permanecer como espectador poderá ter a sorte da nêspera do poema de Mário-Henrique Leiria: Uma nêspera / estava na cama / deitada / muito calada / a ver / o que acontecia // chegou a Velha / e disse / olha uma nêspera / e zás comeu-a // é o que acontece / às nêsperas / que ficam deitadas / caladas / a esperar / o que acontece. Como narrador, tenho o destino de uma nêspera, ser comido por uma Velha. Talvez, medito, não seja pior destino do que o compromisso, o qual está longe de assegurar que no caminho não existam Velhas que gostem de nêsperas.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Mudança ou permanência

Depois de uns dias de repouso, este blogue volta, embora nada assegure que venha revigorado, para celebrar mais uma efeméride, o fim do mês de Junho. Uma coisa parece já segura. O descanso não intensifica a imaginação. É pena. A rua, apesar do vento, não é de frequência aconselhável, mas se tiver de ser haverá que enfrentar os decretos de quem toma conta das coisas do clima. Depois de todos estes dias fora da pátria, dar uma vista de olhos pela imprensa e redes sociais – apenas uma, saliente-se – permitiu-me uma reflexão mais ou menos filosófica. Afinal, o tempo não existe, pois o que era continua a ser, sem mudança alguma. No velho, talvez imaginário, conflito entre Heraclito de Éfeso e Parménides de Eleia, começo a desconfiar que será o eleata o dono da razão. O mais assisado, todavia, é deixar este assunto de lado, pois o dia, a anunciar fim-de-semana, não está propício a reflexões. Há pouco consegui arranjar uma persiana. Estava parada, como se fosse uma adepta da teoria de Parménides, e por mais que se tentasse, não se mexia para cima ou para baixo. Pura imobilidade. Abri a janela, estive algum tempo em contemplação e, tendo compreendido a situação, com uns encontrões nas lâminas a situação resolveu-se. Isto demonstra, todavia, que é possível que Heraclito tenha razão, pois houve uma mudança radical na situação. Imagino que Parménides diria que a mudança ocorrida não passa de uma ilusão sensorial, pois tudo que é permanece idêntico a si mesmo. Por mim, abstenho-me de tomar partido. Pelo menos, hoje.

terça-feira, 20 de junho de 2023

Efemérides

Hoje cumprem-se dois terços do mês de Junho. Escrever estes textos fez-me descobrir que sou dado às efemérides, mas talvez não o suficiente. Um verdadeiro amante de efemérides não pode ficar pelos números redondos ou aqueles que assinalam o fim ou início de alguma coisa. Por exemplo, assinalar o décimo sétimo dia de um mês e sexto de outro, não porque haja qualquer motivo subjacente, mas pelo valor intrínseco de serem o décimo sétimo e o sexto. Objectar-se-á, não sem alguma razão, que efemérides são acontecimentos memoráveis, importantes. A objecção, todavia, esquece que na raiz de efeméride está efémero, o que dura só um dia, no dizer dos gregos antigos. Ao assinalar-se o décimo sétimo dia ou o sexto de um mês celebra-se aquilo que passa, que dura apenas um dia. Comemora-se a banalidade e cultiva-se o trivial. É disso que me aproximo velozmente, mas ainda fico preso aos números redondos, ao preconceito da tradição. Luto, porém, para me emancipar desse passado tenebroso que nos prende aos dias memoráveis e aos números redondos. Estive quase três horas a perorar e agora sinto a garganta cansada e um vazio no lugar onde, supostamente, deveria haver um cérebro. Nem sei o que me terá dado para falar tanto, eu que tenho uma propensão para estar calado. Quando escrevi, acima, três horas cometi um erro. Escrevi três oras. Corrigi, mas fique maravilhado com a expressão. É como se dissesse três poréns, caso o ora fosse conjunção. Caso fosse um advérbio, talvez fossem três agoras, o que abre as portas para a admissão da existência de pelo menos três universos, cada qual como seu agora, todos à mesma hora. Ora… ora. Junho chegou ao vigésimo dia e é tudo o que tenho para dizer.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Protótipos

Talvez os portugueses tenham uma inclinação para o dramático. Ontem, falei aqui num livro que, na capa, apresentava O Sacrifício de Isaac, de Caravaggio. O livro denomina-se O Rosto de Deus e é da autoria do filósofo inglês Roger Scruton (1944-2020). Ao olhar, há pouco, para a capa fiquei com curiosidade de saber se ela igual à da edição original. Ora, nesta não é o sacrifício de Isaac que é mobilizado para reprodução, mas um detalhe de uma pintura de Pere Mates (1500-1558), com o título Adão e Eva no Paraíso. Desconheço as razões da editora portuguesa, mas, por estranho que possa parecer, a alteração da capa representa uma alteração da obra. A tradução portuguesa é de 2023, portanto o autor já nada poderia dizer acerca da capa escolhida. Quando se escolhem para capa de uma obra reproduções de obras-de-arte saturadas de sentido, todo o cuidado é pouco, pois esse sentido transborda da capa para o interior do livro e contamina a obra. Contínua um tempo doentio, quente, abafado, ameaçador. Dou comigo a pensar, não poucas vezes, que ultrapassámos a nossa medida e que estamos a manipular aquilo que não está na nossa mão controlar, neste caso o clima. Nas tragédias gregas, é a hübris que perde o herói. A hübris não é outra coisa senão o ultrapassar da medida. Talvez seja isso o que, de um outro modo, nos diz a história de Adão e Eva. Também eles ultrapassaram a medida. Ora, o Adão e a Eva de Pere Mates têm os genitais cobertos de parras, o que significa que ultrapassaram a medida e temem enfrentar o rosto de Deus, um dos temas de Scruton. Se os grandes mitos têm, para além da função de arquétipos, a de protótipos, então poderemos olhar para o destino de Adão e Eva, a expulsão do paraíso, como o nosso próprio destino. A natureza, ou Deus através da mão da natureza, está a expulsar-nos do pequeno paraíso que inventámos nos últimos dois séculos. O calor pega-se ao corpo.

domingo, 18 de junho de 2023

Melhorias e perturbações

Ontem, comprei alguns livros. Entre eles, encontra-se um de Isaiah Berlin. O primeiro ensaio começa com uma citação, em epígrafe, de León Trotsky que reza assim: Quem desejar ter uma vida pacata fez mal em ter nascido no século XX. Uma nota de rodapé informa que aquela formulação do texto de Trotsky é uma “melhoria” típica de Berlin de um texto que diz Qualquer contemporâneo nosso que, mais do que tudo, queira paz e conforto escolheu uma má altura para nascer. De facto, a nota de rodapé andou bem ao colocar melhoria entre aspas, pois o texto original é bem mais interessante do que a adaptação de Berlin. O efeito irónico de colocar o nascimento como um acto do livre-arbítrio do nascituro perde-se por completo, e esse efeito é o melhor da frase, pois é plausível pensar que não houve século da história da humanidade que não tenha sido, para quem ame a paz e o conforto, um péssimo século para nascer, o que torna o incómodo de nascer no século passado uma trivialidade partilhada por todos os que nasceram noutros séculos. A culpa de os séculos serem lugares temporais pouco próprios para nascer, caso se almeje uma vida de paz e conforto, reside na história. Esta é o lugar das mais intensas tropelias e tem um apetite insaciável e buliçoso por todo o género de travessuras, de preferências as mais violentas. Dito de outro modo, a história é uma rameira sedenta de sangue, sempre pronta a usar o chicote para flagelar os que se viciam nela e, por arrasto, os outros que não se esconderam a tempo. Num outro livro comprado, a capa tem uma representação parcial de O Sacrifício de Isaac, de Caravaggio. É uma história que tem final feliz, mas que não deixa de ser extraordinariamente perturbadora, mas não me apetece pensar nesses assuntos, ainda por cima com o calor que se abateu sobre esta terra, como se o clima a estivesse a preparar para a hora em que ela fizer parte do deserto que por aqui se formará.

sábado, 17 de junho de 2023

Um miserável pecador

Agora deixou de dar conta das nossas conversas no seu blogue? Foi com esta interrogação, talvez com um toque de imperativo, que o padre Lodo começou a conversa, hoje de manhã. Não respondi e perguntei-lhe a razão de ter trocado a habitual manhã de domingo pela de sábado para me ligar. Não se faça desentendido, respondeu-me. Sabe bem que sou um Settembrini e que acumulo o treino de jesuíta com uma costela ancestral de iluminista. Eu sei, eu sei, mas não tenho qualquer razão para o facto. Os meus textos, acrescentei, são regidos por um radical princípio de incerteza, que vai bem mais longe do que o de Heisenberg. Acontecem ao acaso, tudo é incerto até estarem online, e mesmo depois ainda pode acontecer que se alterem. Não partilho da ideia de Einstein de que Deus não joga aos dados. Não tem calhado dar conta por aqui dessas nossas conversas. Boa desculpa, respondeu. O facto de não conhecer as causas dessa decisão de me censurar não quer dizer que elas não existam. Agora, deu em determinista, adepto de Espinosa, perguntei. E antes que me respondesse, fiz nova questão: será que se está a tornar um herege, um negador do livre-arbítrio? Olhe que os doutores da Igreja bem pugnaram em sua defesa. Já não tenho idade para heresias, ouvi vindo do outro lado do telemóvel. Sabe, disse de súbito, estou de férias naquele sítio que bem conhece. Não está por cá? Não, respondi e acrescentei: nem vou estar nos próximos tempos. Não faz mal, temos tempo, vou estar por aqui mais tempo do que é habitual. A Companhia acha que devo descansar, meditar, fazer oração e olhar o mar com calma. E fazer uns belos almoços e jantares, acrescentei eu. Isso, retrucou, é para me manter humilde, para não me esquecer que não passo de um miserável pecador, inclinado à gula.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Atraso

Há muito que não escrevia tão tarde estes textos. O dia, com os seus afazeres e peripécias, empurrou-me para estas horas. Há pouco, chegou a minha neta mais velha, veio descansar do exame de Matemática a que foi sujeita no dia de hoje. Ao jantar contou que, na noite de ontem, tinha sonhado que não encontrava a sala onde o exame se iria realizar. Hoje, não dava com a sala e começou a ficar em pânico, como se o sonho se fosse realizar. Depois, a sala veio ter com ela. Não estava num conto de Borges nem numa narrativa de Kafka. Lá realizou a prova. Consta que estes exames não se chamam exames, mas provas finais. Desconfio que deve haver no Ministério da Educação uma direcção de serviços cuja finalidade é mudar o nome às coisas. Imagino que não lhes falte trabalho. No meu tempo, a escola primária era primária, agora é básica do 1.º ciclo. Não sei o que será pior, ser básico ou ser primário. Parece que primária era uma conotação reprovável, mas secundária já é muito digna, pois os antigos liceus foram coagidos a tornarem-se escolas secundárias. Quando era aluno, fazia pontos, agora fazem testes, mas mesmo esta designação parece estar sob fogo inimigo. O crepúsculo prolonga-se. Já passa das nove e meia, mas a noite ainda não acabou de cair. Como se sabe, em certas alturas do ano, a noite cai muito mais devagar do que noutras. Devia ir fazer uma caminhada, mas estou pouco inclinado para o movimento. Aliás, estou pouco inclinado seja para o que for.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Da verdade

Levantei-me, ainda cedo, com alguns projectos claramente delineados para executar durante o dia. A realidade, porém, não tem qualquer consideração pelos nossos planos. Decidiu contra eles, e, agora, que se aproxima velozmente a hora de jantar, nada do planeado foi realizado, tendo sido arrastado por um turbilhão de coisas que teria tido prazer em evitar. Não que me tenham causado dor, apenas um sentimento de que os seres humanos, por mais que proclamem a autonomia, estão submetidos a um mundo que não controlam. Felizmente, apesar de tudo. Pois se cada um tivesse poder para controlar o mundo, este ficaria incontrolável. O que nos salva, ou tem salvado até aqui, é a nossa impotência. Diante de mim tenho um romance. Na página três, sob o título da obra encontra-se escrito entre parêntesis o seguinte: Novela verdadeira. Fico suspenso dessas palavras. O que queria dizer o autor com esse aviso? A ficcionalização de um acontecimento que ocorreu no mundo? Estes casos são aqueles que mais deveriam levar a suspeitar da palavra verdade. Um romance assente com fidelidade canina num caso real é, plausivelmente, uma grande falsificação. Por outro lado, um outro, em que tudo o que é narrado é falso, será efectivamente verdadeiro, pois a verdade de uma obra de arte não nasce do seu acordo com a realidade, mas da capacidade de criar uma realidade. Verdade significa poder de criar mundos. Passo com os dedos pelas folhas e pergunto-me se, apesar de tudo, irei ler este romance. E não encontro resposta. Imagino que a obra seja ilegível. O vento não dá sossego à ramagem das acácias. Um melro poisa num cedro. Ao longe, dois corvos rasgam o horizonte, pois o horizonte é uma coisa que serve mesmo para ser rasgada, de preferência por corvos. É este o meu destino, escrever falsificações, e nem tudo o que é falso é arte, e banhar-me na trivialidade. O que me vale é a existência de corvos, mesmo que não rasguem o horizonte.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Hexadezena

Agora que a primeira quinzena de Junho se aproxima do fim, ainda não sei o que dizer dela. Talvez que uma quinzena sejam duas semanas mais um dia. Eis uma questão factual, embora seja possível pensar quinzenas de dezasseis dias, pois não produzimos, na história da nossa língua, um vocábulo para nomear um período de dezasseis dias. Quinze, quinzena. Logo, dezasseis, dezassezena. Ora, a solução proposta não existe, seria patética caso existisse, e é um sinal claro de discriminação dos conjuntos de dezasseis dias, que podem, e devem, sentir-se em desvantagem, não apenas perante os conjuntos de quinze dias, como diante dos polígonos de dezasseis lados que recebem o nome de hexadecágono ou mesmo ante os polícoros de dezaseis faces, que são chamados de hexadecácoros. Aqui, entre nós que ninguém nos ouve, não são nomes lá muito bonitos, que devemos evitar de colocar a um filho. Seja como for, podem ser inspiradores. Um período de dezasseis dias poderia, então, ser uma hexadecazena ou, mesmo e talvez muito melhor, uma hexadezena. A formação de palavras parece fazer-se por tentativa e erro. Então, diríamos, passarei a primeira quinzena de Julho em casa, mas a hexadezena seguinte será por aí a vaguear sem destino, que é a única coisa que se poderá fazer nas hexadezenas, que não faltam no calendário.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Do mal

Hoje, floriu a última orquídea. Foi a tempo de apanhar todas as outras floridas. Mais uns dias e haveria já uma ou outra que se teria despedido do seu fulgor. Olhando para todas, não encontro razões para tal disparidade na gestão do tempo, mas os meus olhos são pouco indicados para encontrar tais razões, pois a ignorância sobre o assunto é tão grande que mesmo aquilo que vejo é como se não visse. Passei parte da manhã a ouvir alguém em confissão. Logo eu que não tenho qualquer vocação sacerdotal. Bem, não se tratava de uma confissão, mas de um desabafo sobre pecados alheios. A confessada, pois era alguém do sexo feminino, era mais paciente do que agente, sofria mais os pecados de outrem do que se referia aos seus. O interessante é que a pecadora, pois também o agente era do sexo feminino, não vê o pecado como pecado, mas, aposto, acha as suas acções virtuosas. Não se reconhecerá, por certo, como maldosa. Caso fosse religiosa, julgo que se acharia merecedora da glória dos altares. Apesar do discurso quase teológico, a coisa nada tem que ver com a religião, mas com a trivialidade das coisas quotidianas. Enquanto ouvia o desabafo, ia pensando que há pessoas, de tão mal resolvidas que estão na existência, que parecem ter nascido para azucrinar a cabeça a terceiros. Imagino que sintam nisso uma compensação pelo o facto de serem irresolvidas. Fossem essas pessoas orquídeas, e a pecadora poderia ter sido uma bela orquídea, e nunca haveriam de florir. Como se vê, nem tudo o que é possível se torna real. Nem tudo o que está em potência passa ao acto, para citar o velho estagirita.

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Impontualidades

O dia não começou mal. Uma consulta marcada para as nove da manhã. Eram dez e ainda não tinha entrado no gabinete do médico. Haverá, por certo, razões ponderosas para explicar este conflito entre a pontualidade e o exercício da medicina. Há dias, no blogue de um conhecido embaixador, este dizia que, finalmente, percebia a razão por que se chamam pacientes aos que têm de recorrer a um médico. Tinha a ver com o tempo de espera no consultório e a paciência necessária. Parece que esta é uma experiência universal. Pelo menos, por cá. Imagino que a D. Filipa de Lencastre nos trouxe imensas coisas, mas uma delas não foi, por certo, a pontualidade britânica. Talvez, nos dias dela, os britânicos não fossem pontuais. Uma competência que foram desenvolvendo ao longo do tempo. Isto dá-me a esperança de que nós portugueses, onde se haverão de incluir os esculápios e as esculápias, já agora, nos tornemos pontuais. Como se vê, eu tenho grande capacidade para me iludir. Se, em tempos, os britânicos faziam gala da sua pontualidade, nós fazíamos, e fazemos, gala da nossa impontualidade. O vício é apresentado como virtude. A partir daí, pouco há a fazer. O dia está cansativo, eu estou cansado, a realidade está um cansaço. Vou descansar.

domingo, 11 de junho de 2023

Bebidas

Para o que é a norma, a norma dos domingos, esclareça-se, almocei cedo. Bebo agora café. Há muito que, num movimento centrípeto, deixei de frequentar cafés, reduzindo-me ao convívio do lar ou comigo mesmo para tomar uma das bebidas de que mais gosto. Há, para além da água, bebidas notáveis. O café, por exemplo. O vinho, uma boa aguardente vínica, o cognac e, como não podia deixar de ser, o whiskey, a versão irlandesa de preferência à escocesa, a qual não leva e. O Word sublinhou-me coganc, assinalando um terrível erro, pois só conhece conhaque. Erro pior cometi há muitos anos quando, num restaurante em França, onde me serviam um cognac e, imprudente, falei de armagnac. O proprietário seria um típico cognaquiano e não me mandou fuzilar por pouco. Um cognac resulta de uma tripla destilação de vinho branco, enquanto o armagnac apenas de uma, não há comparação, sublinhou perante a minha heresia, a qual consistiu apenas na nomeação da coisa, sem fazer comparações. Se o pobre senhor fosse filósofo dira que pertenciam a paradigmas diferentes e, como tal, incomensuráveis. Sobrevivi, mas a partir daí nada de comentários sobre bebidas, pois aquilo pareceu-me pior do que uma disputa política ou mesmo futebolística, que ainda é pior. A realidade, triste realidade, é que, nos tempos que correm, deixei os destilados numa outra era e restrinjo-me a uma santíssima trindade. Água, vinho e café. A água purifica-me, o vinho dá-me o pouco espírito que tenho e o café talvez me mantenha acordado, mas tenho dúvidas. Dá-me prazer. Daqui a pouco chega o meu neto. Tenho de me preparar.

sábado, 10 de junho de 2023

Mitologias

Há pouco passei uns minutos diante da televisão. Num canal de desporto, via-se uma das mais importantes corridas de automóveis, as 24 Horas de Le Mans. Há cinquenta anos eu teria ficado muito mais do que os minutos que fiquei. Nessa altura, as corridas fascinavam-me. Hoje, o que me fascinou não foram os carros que giram interminavelmente pelos mesmos lugares, mas o facto de isso me fascinar há cinquenta anos. Não demorou muito a que o fascínio desse lugar ao alheamento. Será essa a natureza das paixões, um fogo intenso que termina nas cinzas da indiferença. Enquanto arde, parece ser coisa eterna. Terminada a combustão, a vida refaz-se noutros horizontes. De que me lembro desses anos em que as 24 Horas de Le Mans faziam parte da minha mitologia pessoal, bem como dos meus amigos de então? Da feroz rivalidade entre os Ferraris 512S e os Porsches 917K e da morte, faz amanhã 51 anos, de Jo Bonnier, na altura um piloto da Lola. Os Ferraris eram vermelhos e os Porsches, azul-claro com uma lista cor-de-laranja, salvo erro. A experiência diante da televisão não me elucidou sobre o que me apaixonava naqueles tempos. Os comentários fizeram-me sorrir, perguntar-me como é que adultos podem mostrar, perante um simples divertimento, um entusiasmo de jovens acabados de sair da adolescência. Por certo, há cinquenta anos ter-lhes-ia dado a máxima atenção e pensaria que eram sábios. Cada um de nós traz em si um conjunto de mitologias. As mais intensas foram aquelas que, iniciando-se na infância, foram morrendo com o aproximar da idade adulta. A partir daí os mitos morreram e passaram a existir razões, mesmo que, por vezes, travestidas de paixões.