quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Traduções

Tenho diante dos olhos uma tradução de poemas de Rainer Marie Rilke. O mais certo é a poesia ser intraduzível. Não se trata de transpor sentidos, mas sons e ritmos. Imaginemos uma música universal. Ela é o rumor da Terra ou o murmúrio das esferas celestes. Os poetas captam essas ondas sonoras e a poesia nasce na fronteira que separa essa música e a fala. Então, a poesia é o exercício de uma dupla contaminação, a da música que contagia a fala numa certa língua e a da fala de uma certa língua que infecta a música primordial. Em cada poema entramos no domínio de uma patologia, de uma paixão. Ora, nem a doença que sofro nem a paixão que vivo são transmissíveis a terceiros. São propriedades minhas, propriedades intransferíveis. É esse o problema da tradução de poemas. Por certo, pode haver versões de poemas, mas são sempre outra coisa, na melhor das situações outros poemas, como bem compreendeu Vasco Graça Moura ou Herberto Helder. Em nenhum caso, porém, um não poeta deve pôr-se a traduzir poesia, pois aquilo que sai não é uma tradução e tão pouco um novo poema. E com esta diatribe contra os tradutores não poéticos de poesia chego a esta hora. Ainda é de dia, mas por pouco tempo. Espera-me uma caminhada para acumular passos e pontos cardio. Primeiro, porém, vou assaltar o bolo rainha que vi lá para dentro e depois enfrento o vento norte, com a esperança de queimar calorias.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Uma teologia da estucha

Entre o Natal e o Ano Novo está por cá? Por cá, o padre Lodo, o meu velho amigo Lodovico Settembrini, queria dizer por Lisboa. Respondi que não estaria. Tenho em agenda uma viagem com as netas, que me afastará da capital. Algum acontecimento especial, perguntei. Está cá o Hans, referia-se a Hans Castorp, e a mulher. Como já terei contado por aqui, Hans Castorp foi discípulo do padre Lodo, embora nunca tenha sabido em que condições ocorreu esse discipulato. Mais tarde casou com Emilia Bazán. Melhor, Emilia Pardo Bazán. Nunca deixou fenecer a amizade com o padre Lodo e, não poucas vezes, o visita em Lisboa. Por norma, isso dá direito a um almoço ou jantar grupal, no qual o velho jesuíta conjuga diferentes amizades e as junta numa atmosfera amena, onde uma conversa cordial não esconde diferentes visões do mundo, muitas delas pouco concordantes com o espírito da Companhia de Jesus. Há mesmo entre os membros do grupo alguns representantes do velho jacobinismo anti-jesuítico, mas que não resistiram à afabilidade do padre italiano. As divergências, porém, nunca ultrapassam a benevolência de pequenos chistes, que fazem sorrir. Terei de ver se eles ainda estarão cá depois da passagem de ano, essa estucha. Estucha, sublinhei eu com ar interrogativo. Sim, estucha, estopada, uma chatice, aquela coisa das passas e da meia-noite. Ninguém o obriga ao ritual das passas, de facto, uma coisa insuportável, mas estucha, nunca lhe tinha ouvido tal palavra. Foi uma confessada que me a ensinou. Chega ao confessionário e todos os pecados que debita acabam com a expressão uma estucha. Parece-me uma pecadora enfadada, respondi. Talvez, talvez o pecado leve à perda dos homens mergulhando-os no aborrecimento, acrescentou. O melhor, depois do spleen baudelairiano e da nausée sartriana, seria elaborar uma teologia da chatice ou, melhor, da estucha. Ele riu-se e ficámos de falar daqui a dias.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Taxionomias pilosas

Comecei esta noite a ler Não Sou Stiller, um romance do suíço Max Frisch. Parece-me ter feito uma grande descoberta. O mais apropriado, por certo, não seria enfatizar a descoberta agora realizda, mas reconhecer com humildade socrática a minha enorme ignorância. Escrevi suíço e fiquei a pensar nas suíças, aquela porção de barba que certos homens deixam crescer nas partes laterais do rosto, também chamadas patilhas. De onde virá a designação? Das mulheres dos suíços? Um enigma. Ainda procurei, lendo em diagonal, no Signum SalomonisA Figa – A Barba em Portugal, de José Leite de Vasconcelos. Ora, Leite de Vasconcelos entrega-se a uma informada e exaustiva taxionomia das suíças, mas não tem clara a razão que conduziu a que se chamassem suíças às suíças, não às mulheres naturais da Suíça, mas às vulgares patilhas, nome vindo daquele sítio de onde não vem nem bom vento nem bom casamento. Para quem esteja interessado em meditar os velhos usos pátrios da pilosidade facial, deixo o Sumário do Capítulo III, do livro supracitado: Formas naturais e artificiais • Barba medrada e seus nomes • Barba aparada • Nomenclatura da barba, segundo as partes do rosto que esta ocupa • Uso de formas de barba, já avulsas, já combinadas entre si • O que é projecto • Explicações etimológicas. Eu, como narrador glabro, não irei reflectir na metafísica da suíça, do bigode, da pêra e da mosca. Retenho o cavanhaque, não pela estética da pilosidade, mas por me lembrar o cognac. Quando me sentei aqui, não tinha qualquer intenção de falar de pêlos faciais, mas, faltando-me um espírito científico, deixei-me, como uma criança, arrastar pela associação de ideias, uma associação por contiguidade, para ser mais preciso. Nunca imaginei que o célebre Leite de Vasconcelos, nas suas investigações etnolinguísticas, se tivesse interessado por tal tema, mas o mundo é feito de surpresas, e eu sou um mestre em lugares-comuns.

domingo, 17 de dezembro de 2023

Motos e camelos

Sentei-me para escrever este texto e oiço um barulho na rua. Um desfile de motards passava pela Sá Carneiro. A maior parte vinha vestida de Pai Natal. Consta que faz parte da agenda cultural dos amantes das duas rodas esta celebração natalícia, ainda antes de Natal. Uma coisa fica provada. Existe evolução ao cimo deste pobre planeta. Houvesse, naqueles dias em que o Menino Jesus nasceu, o desenvolvimento tecnológico de hoje e os Reis Magos teriam chegado muito mais cedo. Em vez de camelos, vinham em potentes motos, isto para o caso de dispensarem os aviões e gostarem do ar a bater no rosto, e o dia de Reis poderia ser ainda antes do dia de Natal, como acontece com estes motards. Em vez de virem prestar tributo ao menino nascido, vinham partilhar as incertezas do parto, a expectativa que fosse um rapaz e que eles não se tivessem enganado ao seguir a estrela, que também andaria mais acelerada. Tenho, porém, de estar agradecido ao atraso tecnológico daqueles dias. Quando era criança, mas já estava submetido ao jugo da escolaridade, as férias de Natal iam até ao dia de Reis. Só a sete de Janeiro recomeçavam as aulas. Tudo acontecia sem pressa, com a lentidão de um camelo a atravessar o deserto. Olhando para trás, constato que havia alguma sabedoria naquele calendário escolar. Pelo menos, aprendi a ler, escrever e contar, sem ter que passar o dia inteiro na escola e ainda recebia o prémio de férias dilatadas, onde fantasiava a libertação dos deveres escolares. Talvez a solução para os problemas do ensino em Portugal, caso existam, seja a de substituir carros e motociclos por camelos, cavalos, mulas, machos e, acima de tudo, burros.  Essa lentidão recuperada permitirá aos corações e aos cérebros abrir-se à sapiência, sem as pressas ruidosas dos tempos modernos. Hoje acordei com a veia conservadora a latejar e dobro o meu espírito a essa sombra da tradição. Amanhã, terei tempo para ser moderno e trocar o camelo pelo automóvel, já que motos nunca me seduziram.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Trocas

Tem o número 000834 da biblioteca de um centro paroquial. Olhei para o número e pensei que seria grande a esperança de quem começou a catalogar os livros. Chegar às centenas de milhares seria um feito. O mais plausível é que quem carimbou aqueles algarismos, pois trata-se de um número carimbado, não tivesse meditado o suficiente nem em quantidades, nem em livros e muito menos em quantidades de livros. O destino dessa biblioteca paroquial foi o fim e os livros apareceram à venda. No site onde o comprei, havia informação de que estavam a esvaziar a sala onde se encontrava a biblioteca, pois era precisa para outras coisas. De facto, o espaço é pouco e talvez os livros sejam coisas que se dêem mal no espaço pertença de uma paróquia. O livro é composto por duas peças de teatro – A Muralha da China e Biedermann e os Incendiários – da autoria de Max Frisch. Há muito que não leio teatro. Não estou a dizer a verdade. Há uns meses li uma peça de Shakespeare, mas já não me lembro qual. Uma das portas que me permitiu entrar na literatura foi, todavia, o teatro. Sófocles e Sartre. O que li, então, exerceu forte influência sobre o meu pobre espírito de rapaz provinciano, mas não foi suficiente para me tornar um fiel leitor de peças teatrais. Recebi o livro há pouco, pois o centro paroquial é daqui perto e combinei ir lá buscar o livro. Pareceu-me uma paróquia muito dinâmica, mas imagino que pouco inclinada à leitura. Eu troquei o dinamismo pela leitura e não fiquei a ganhar, aposto.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Sextar

Estou dividido, embora a divisão seja superficial. Imagino que tenha sido no Brasil que a sexta-feira gerou o verbo sextar. Chegado a sexta-feira, alguém grita sextou! Não deixa de me divertir essa capacidade de reinventar o português que existe no Brasil. Por outro lado, não me ocorreria chegar a esta hora e gritar sextou! Em primeiro lugar, porque é desagradável andar a gritar por aí. Depois, porque temos obrigação de economizar nos pontos de exclamação. Por fim, porque há qualquer coisa de infantil na expressão. Como é hábito, a expressão começa a penetrar no léxico dos portugueses, que terão menos poder de imaginação para reinventar a língua e são mais sisudos do que os brasileiros. A conjugação destes dois factores faz com que, para sorrirmos, importemos a pilhéria do outro lado do oceano, tal como importámos o Carnaval, para que as raparigas despidas tremam de frio, enquanto expõem o corpo e fingem dançar o samba. Seja como for, chegámos ao crepúsculo desta sexta-feira, num momento em que o azul do céu se torna cinzento, para, depois, devir negro. Antes de chegar a casa, passei por um supermercado para comprar umas coisas que consta fazerem falta em casa. Acrescentei a isso duas garrafas de vinho, que não estando em falta, sempre animam o coração. Tinha já tudo acomodado quando descubro que deixara a carteira no carro. Ocorreu-me então que na pandemia se tinha desenvolvido o hábito de pagar por MBWay. Foi o que me salvou de ter de abandonar as compras e ir ao carro em busca do santo graal. Esta foi, felizmente, a coisa mais extraordinária que me aconteceu até agora, e assim espero que se mantenha. Não há nada pior do que as coisas extraordinárias. Às ordinárias sabemos como enfrentá-las, às extraordinárias, o fôlego já não é o que era. Estou a fazer horas para ir caminhar. Deixo que o fluxo do trânsito abrande, para não ter de respirar a fumarada que sai dos carros.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Especulações

Alguém diz Sem dúvida, o futuro será sombrio. Eu oiço o que é dito. Melhor, eu não oiço o que é dito, mas vejo o que está escrito. Talvez a pessoa que escreveu tal coisa não a diga. Imagino que nunca ninguém terá pensado nessa possível dissonância entre dizer e escrever. Imaginemos uma pessoa que, ao falar, diz certas coisas, mas que ao escrever se recusa a transpor por escrito as suas crenças orais. Quando escreve afirma coisas diferentes ou mesmo contraditórias. Todos tentamos unificar o ser que somos ao falar e aquele que somos ao escrever, mas será que somos o mesmo quando falamos e quando escrevemos? Imagine-se um académico. Quando faz uma conferência defende um certo ponto de vista sobre um dado assunto. Quando, porém, escreve um ensaio sobre esse mesmo assunto, propõe coisas radicalmente diferentes. A especulação desviou-me do tema que aqui me trazia. Como poderá alguém não ter dúvidas sobre a natureza sombria do futuro? O futuro, digo eu, não será sombrio, nem luminoso, nem negro. O futuro não existe, nunca existiu e nunca existirá, enquanto o tempo for aquilo que é. Eu nunca estarei no futuro, nem nunca estive no passado. Estive sempre no presente e, enquanto este se move, eu desloco-me com ele, que nunca me deixa abandoná-lo, e eu, por mais que tente, nunca consigo fugir-lhe. O resto são memórias e expectativas, mas nem uma coisa nem outra são tempo. Estas duas insanas especulações resultam de ter tido, malditas memórias, uns dias atribulados, preenchidos com tarefas que não contribuirão para a gesta que me há-de elevar à glória. Agora, essa casa de onde nunca saio, vejo um rosto feminino. Dos olhos abertos, deslizam duas lágrimas. A gravidade, todavia, é mais forte numa face do que na outra. Uma lágrima desliza mais rapidamente e aproxima-se já dos lábios. A outra parece parada sob a pálpebra. Eu fico a contemplar, numa revista, aquela estranha exposta numa fotografia a preto e branco. De súbito, encontrei nela uma inquietante semelhança com Eduína. Talvez os olhos abertos, talvez os lábios desejáveis, talvez a expressão de perplexidade, talvez o corte de cabelo. Se existisse passado, eu poderia dizer fui visitado pelo passado, mas não existe e eu não o digo.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Uma realidade disfuncional

Nem sei por onde começar. Há qualquer coisa que de disfuncional na realidade. Por exemplo, e começo por aí, o despudor com que ela se recusava, há pouco, a cumprir a previsão meteorológica. Para aqui, o site dava sol, ligeiramente encoberto por alguma nuvem passageira. Enquanto bebia café, consultava a previsão e via chover. Como pode a realidade, enganar-se deste modo, perguntava-me, não sem perplexidade. Demorou tempo até ela perceber o que lhe estava prescrito e deixar que o Sol brilhasse, apesar de algumas nuvens inconvenientes. Pior do que isso é o enigma do número 1949. Recebi há pouco um livro, Não Sou Stiller, um romance do escritor suíço Max Frisch. Um livro comprado num alfarrabista online. A tradução portuguesa, da saudosa Arcádia Editora, é da escritora Fernanda Botelho, e foi publicada em 1958. Ora, e aqui está o enigma, no canto superior direito das terceira e quinta páginas aparece um nome, um apelido grafado em maiúsculas, e debaixo dele o número 1949. Não faz sentido ser a referência ao ano da compra, pois a edição portuguesa só apareceu nove anos depois. Também não faz sentido que seja o ano de nascimento do comprador, pois é implausível que alguém de nove anos tivesse comprado aquele livro. Também não é referência ao ano da publicação original da obra, pois esta é de 1954. Folheio o livro à procura de pistas, mas não encontro nada. A única nota digna de atenção encontra-se no facto da página 181 estar dobrado no canto inferior direito, formando a dobra um triângulo rectângulo escaleno. Esta informação é interessante. O proprietário, eventualmente parou a leitura nessa página, não chegando a metade das 450 que compõem a obra. Um primeiro traço emerge, era pouco persistente. Também é claro que, apesar disso, procurava distinguir-se, pois a norma para dobrar as páginas é usar um canto superior e não inferior. Isso é confirmado pela forma como escreveu o apelido, todo em maiúsculas. Se fosse amante da harmonia e da proporção teria dobrado a folha em forma de triângulo equilátero, mas não. Repugnar-lhe-ia o princípio da igualdade e optou pela total diferenciação e o desequilíbrio. Certamente, alguém que gostaria de se armar em importante, dirá um espírito mais impiedoso que o meu. Com tudo o que se sabe do proprietário, ainda nada sei do número 1949. Como se vê a realidade não apenas é disfuncional, como resiste a que a compreendamos. Derrotado, desdobro a página e fecho o livro. Coloco-o na pilha de livros a ler e vou apanhar Sol.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Melancolia cantabile

Já não tenho idade para estas coisas, pensei. Logo, porém, me arrependi do pensamento, pois é agora que começo a ter idade para frequentar com assiduidade consultórios médicos e enfrentar a estranha forma como os médicos lidam com o tempo, bem como com a sua inultrapassável incapacidade para perceberem a palavra pontualidade. Setenta e cinco minutos após a hora marcada entrei para consulta. É evidente que poderia ser pior. Cento e cinquenta minutos seria bem mais desagradável. Depois, fui recebido com um pedido de desculpas. O problema é que estes pedidos de desculpa são meramente protocolares, fazem parte do business as usual. Passada essa provação, o meu dia foi assediado pela chuva e pelo cinzento que deslizou do céu e se incrustou por ruas e avenidas, tingindo o casario de uma melancolia quase cantabile. Ao passear pela rua, pensei no húmus. Que excelente húmus dariam estas folhas mortas que inundam os espaços da cidade. Não faço ideia a razão que me trouxe a esta constatação agrícola, logo eu que não tenho qualquer inclinação para a vida no campo. Elevo o pensamento aos céus e, em ânsia, peço uma noite sem chuva, que me permita caminhar. Preciso de coleccionar pontos cardio e de evitar comparações melindrosas entre o peso que tenho e aquele que deveria ter. Disfarço bem a discrepância, mas que ela existe, existe. Vou jantar. Talvez o melhor é fazer jejum, mas não estamos na Quaresma. E mesmo nesta já ninguém jejua.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Uma questão de adequação

Distraí-me e entalei um dedo no quebra-nozes. Foi o segundo incidente no espaço de minutos. O primeiro foi a recusa do dito quebra-nozes em quebrar uma noz. Aliás, um fruto pequeno, quase miserável, mas de casca resistente. Teve de ser subjugada à martelada, não com um martelo. Usei o próprio quebra-nozes, agora em função de martelo. Talvez o instrumento se tenha sentido humilhado pelo uso contra-natura e, vendo-me distraído, abocanhou-me um dedo. Faz parte da ingenuidade dos seres humanos despir os objectos materiais de vontade. Não me parece plausível a ideia de lhes negar um querer, pois eles querem muitas vezes aquilo que nós não queremos e submetem-nos ao querer deles. Imaginemos um carro que se recusa a trabalhar, enquanto nós, os seus proprietários zelosos, estamos cheios de pressa para um compromisso inadiável ou para o encontro da nossa vida. Isto não é um querer? Claro que a inocência humana designa por avaria aquilo que é um acto da vontade e, para mais se iludir, julga o caso como um acidente mecânico ou electrónico, ou qualquer outra coisa que desculpe a maldade do dispositivo. Não consigo compreender o alvoroço que anda aí por causa de podermos vir a ser dominados pela inteligência artificial ou por robôs. Se já somos dominados pelas máquinas a que não atribuímos nem inteligência nem vontade, o que poderemos esperar de dispositivos a quem demos inteligência e mesmo vontade? Retornando ao caso do quebra-nozes, tenho de considerar que foi benévolo comigo, apesar da maldade que lhe vejo no rosto. O dedo não sofreu grande coisa, mas imagino que foi um aviso. Da próxima vez que quiser martelar uma noz renitente vou buscar um martelo. É uma questão de adequação entre o objecto e a finalidade.

domingo, 10 de dezembro de 2023

Na aldeia

Depois de uma viagem ao mundo colonial trazido por Joaquim Paço d’Arcos, entretenho agora as insónias com uma viagem por Madona, de Natália Correia, uma visita – pelo menos de início – ao mundo alternativo da parisiense rive gauche, no pós-segunda guerra mundial, onde, supostamente, Sartre oficiava um culto a não se sabe bem o quê, e no qual alguns portugueses se tingiam de modernidade, que haveria de ser usada na pátria para encontrar distinção e sublinhar a boçalidade daqueles que o acaso ou as possibilidades não conduziram à capital francesa. Não será improvável, tendo em conta o que já li no romance, cerca de um quarto, que tudo acabe em querelas domésticas, passadas na província, num mundo onde ninguém ouviu falar de Sartre e da rive gauche, nem de náuseas, ou sequer do velho spleen baudelairiano, bem anterior à náusea existencial. Em novo, por certo, eu terei cultuado esses heróis de outras gerações que viveram esses anos de perdição. Hoje, porém, dou graças por a vida ter-me poupado a esses destemperos e a ilusões que só poderiam lembrar ao génio maligno do senhor René Descartes. Apesar de velho, nasci demasiado tarde para poder imaginar sequer a minha pessoa a deambular pelas caves, onde o jazz se europeizava. Sento-me, em silêncio, e vejo correr o rio da minha aldeia, que não é aldeia, mas uma cidade que parece uma aldeia. E nisso está toda a minha felicidade, enquanto leio os poemas de Alberto Caeiro e vejo neles toda a verdade deste mundo, mesmo que seja apenas a verdade desta hora de domingo em que escrevo isto.

sábado, 9 de dezembro de 2023

O que me vale

Caminhar na capital não é das coisas mais suaves. Subir e descer, descer e subir. Enquanto se desce, as coisas não estão mal, mas tudo tem um preço e a cada descida corresponde uma subida. Talvez não seja muito sensato fazer pontos cardio num sítio como este, a não ser que se vá para a margem do rio, onde tudo é mais plano, o que não estava nas minhas intenções. Para recuperar as calorias perdidas, perdi-me num restaurante perto do Museu Nacional de Arte Antiga, onde são oferecidos – isto é um eufemismo, claro – pratos dos sítios por onde os portugueses andaram. Escolhi uma visita ao Brasil e não me arrependi. Depois, retornei à caminhada. Chegado a casa, em vez de ir ao cinema, como tinha pensado, sentei-me e fiquei a ver um jogo de rugby da Taça dos Campeões. Não me perguntem quais eram as equipas. Uma era irlandesa, a outra inglesa. O jogo foi interessante, apesar de ter adormecido uns minutos depois do intervalo. Contudo, adormecer diante de ecrãs e monitores tornou-se uma das minhas especialidades. A gesta de que sou o protagonista está cheia de grandes actos libertadores do mundo. É nessa categoria que se devem colocar os adormecimentos diante da televisão ou do computador, onde o meu ser ensonado vence o obstáculo do estado de vigília. O Outono declina a olhos vistos, o solstício de Inverno está a uma distância de menos de duas semanas. Não tarda é noite de Natal e um novo ano perfila-se já bem dentro do horizonte. Hoje é daqueles dias, que não são poucos, em que nada tenho para dizer. Vale-me o ser capaz de inventar qualquer coisa em cima da hora.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Agora

Neste momento, onde me encontro, tenho um único livro em papel à mão. Não é um livro recomendável, nem o é o seu autor. O livro compila um discurso de 4 de Janeiro de 1849 e a troca de correspondência entre o autor e o Conde de Montalembert. No início do discurso, depois do protocolar Meus Senhores e de mais umas quantas frases, referindo-se a um discurso anterior que seria o epílogo de um outro epílogo, e este era o epílogo de todos os equívocos que foram inventados durante os últimos três séculos e que trazem inquietadas quase todas as sociedades humanas de hoje. Este tipo de crença é extraordinário, pois supõe que antes destes três últimos séculos não se tinham inventado de maneira sistemática equívocos, além de supor que as sociedades anteriores teriam menos razões de inquietação. Tudo isto faz parte do combate político no congresso espanhol de então, coisa que não me interessa. Todavia há uma prova da incapacidade humana para olhar o passado, imaginando-o um tempo superior ao presente, mesmo que o presente já tenha três séculos. Todas as inquietações que eu vivo, mesmo sendo apenas um narrador, isto é, uma figura literária, todas as inquietações que eu vivo, repito, são presentes, pois não nos foi dada a capacidade de viver as inquietações de um passado onde não existíamos. A este tipo de crenças chamam-se involucionistas. Crêem, consciente ou inconscientemente, que o início da vida do homem na Terra foi esplendoroso, vivia-se na idade do ouro, e que a partir desse momento tudo se foi degradando, foi involuindo. Tanto aqueles que vêem no passado a sua casa, como os que a vêem no futuro, têm um problema com a sua própria existência, pois esta apenas se dá no presente. A idade do ouro ou a idade de ferro apenas existem no presente, pois não há outro tempo que possamos habitar. Ninguém vive no passado ou no futuro, vive no agora. O resto são suposições fundadas na memória ficcional e na expectativa também ela ficcional. E agora é de noite.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Ensaio sobre a noite

Há muito que não via anoitecer na capital, não numa dessas capitais do tremoço, da castanha pilada, do rabanete ou do chouriço, as quais abundam por esse país, onde não há lugarejo que não seja capital de alguma coisa, mas na capital verdadeira, aquela que foi capital de um império e agora é a de um país que, na ponta mais ocidental da Europa, parece precipitar-se para o oceano. O problema do anoitecer numa capital é que os prédios se interpõem entre o observador e o céu de onde cai a noite. Uma pessoa é surpreendida. Na província, numa província plenamente provinciana, o cair da noite oferece-se ao olhar contemplativo daquele que a espera. Não entra furtiva pela casa dentro, como um ladrão que viesse roubar a luz dos nossos olhos, mas como um convidado que se faz anunciar atempadamente, dando-nos tempo para o esperar e lhe dar as boas-vindas. Isto significa que a mesma noite não é idêntica no seu ser moral. Nas grandes cidades, ela não passa de uma entidade delituosa, enquanto na província é um anjo benfazejo. Onde estou, existem três cães. São cães citadinos, daqueles que são passeados à trela pelas ruas. Mantemos uma relação de justa distância, eles no seu território e eu no meu. Eles esboçam para mim um pedido de amizade, mas apenas lhes prometo que não seremos inimigos. O pior é que ressonam, talvez julguem que a noite é toda ela para dormir, eles que nunca pensaram sobre a noite, nem sabem distinguir a capital da província.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Precipitação

Tem estado um belíssimo dia, frio, mas não muito, uma luz feita de cinza, que deixa cair sobre as ruas da cidade uma certa tristeza sonâmbula e a ventura da melancolia. Tudo fazia lembrar o Natal, esse Natal que se imagina com um tempo quase gélido e de neve nas terras altas, o que não será o caso por aqui. O relógio parou e tive de ir a uma relojoaria para que lhe mudassem a pilha. O tempo que tinha parado há dois dias voltou a pôr-se em marcha. Não sei se esta decisão de reactivar o tempo terá sido sensata. Talvez fosse uma oportunidade de suspender o tempo ou, pelo menos, fixá-lo naquele instante em que os ponteiros se imobilizaram. Quando saí da relojoaria senti uma leve sensação de culpa. Tornei a pôr o tempo a andar e restituí todos os seres à sua condição transitória e mortal, no caso dos seres que são vivos. Foi uma precipitação. Não fiz mais do que copiar a precipitação original de Eva e Adão, a qual nos tornou mortais. Fiz o mesmo ao precipitar-me para pôr o relógio a funcionar, não aproveitando a oportunidade que me foi dada para salvar o universo da sua irremediável perda. Como poderei eu ser um cavaleiro andante digno de ombrear com o Cid, El Campeador, com o rei Artur ou com Ricardo, Coração de Leão, se me precipito na hora crucial em que tudo se decide? Não posso, para meu desgosto. É possível que quem tece as linhas com que se compõe o fado de cada um se tenha precipitado e, por isso, ter-se-á esquecido de pôr no meu destino essa gloriosa tarefa de derrotar o tempo, matando Cronos pelo simples acto de me recusar a pôr uma pilha miserável num relógio ainda mais miserável. É a hora do crepúsculo. Parece que acentua nos pacientes a tendência para a loucura. Vou para a janela ver chegar a noite.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Um herbário passional

Ao passar hoje por uma FNAC, descobri que tinha sido editado um primeiro volume da poesia completa de Pedro Homem de Mello. Também está disponível a poesia completa de Natália Correia. Não comprei nenhum, mas é uma questão de tempo. Há um mistério que não consigo decifrar. Portugal é um país onde poucas pessoas lêem. Se se trata então de poesia, o número será ínfimo. Contudo, o negócio das obras poéticas completas parece ir de vento-em-popa. Por norma, são edições cuidadas, capas cartonadas, preço elevado. Ouve-se, por vezes, dizer que os poetas só são lidos por outros poetas. Se isto é verdade, então somos mesmo um país de poetas. Fossem os portugueses menos dados às musas e não haveria tanta poesia completa à venda. O mais importante, porém, é que resisti estoicamente e não comprei um único livro. Troquei a adicção pela ascese. Entrei puro e saí casto. Também é verdade que já hoje tinha ido aos CTT levantar uma encomenda onde constavam os três volumes da Trilogia do Cairo, de Naguib Mahfouz, Thomas o Obscuro, de Maurice Blanchot, e o nada literário Ensaio sobre as Liberdades, de Raymond Aron. Vou aqui abrir uma excepção à estrita regra de abstenção nestes textos de qualquer referência à política. Uma citação do livro de Aron. Quem acompanhou de perto a rivalidade de partidos na Câmara dos Comuns não deixará de admitir que os ritos parlamentares, com a sua estilização tradicional, são efeito de uma arte política que, devido a uma sabedoria profunda, reconhece a necessidade do artifício para dominar as paixões, tolerando uma expressão simbólica delas. O interesse da frase vai muito para lá da política e entra no domínio da arte. Como se dominam as paixões? Através do artifício artístico, o qual constrói uma expressão simbólica dessas paixões. Estamos perto da catarse aristotélica promovida pela tragédia. A poesia, como forma de arte, é então um artifício onde se expressam e se dominam as paixões. E quem terá traduzido o livro de Aron para português? Algum sociólogo ou algum filósofo, dir-me-ão. Falso, respondo. Foi Ruy Belo. Tudo isto significa que parte dos portugueses, talvez ínfima, mas ainda assim comercialmente significativa, se entrega a esse exercício de dominar, enquanto expressa, as suas paixões. As do corpo e as da alma. Talvez a poesia não passe de um herbário passional, um lugar, na realidade fúnebre, pois os herbários são sítios onde se colecciona o que está morto, um sepulcro de paixões extintas.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Diminuição

Hoje é muito menor. Na verdade, não é, apenas me parece muito menor. Talvez seja, de facto, menor. De tarde, tive de dar um salto à capital de distrito, à zona do liceu. Ali, ainda não fizera dez anos, tive de prestar provas para ser admitido no ensino liceal. O edifício, naqueles dias de brasa, visto da minha pequenez e da experiência da escola primária, parecia-me descomunal. Entrava nele e sentia-me perdido. Era tudo ou demasiado alto ou demasiado comprido, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Prestavam-se provas escritas e orais. No intervalo entre elas, ia-se assistir às orais dos outros candidatos, dos desgraçados que tinham de enfrentar o júri antes de nós. Das provas escritas não possuo qualquer memória, mas das orais restaram algumas. O interrogatório diante dos mapas das colónias que, naquela altura, já tinham mudado o nome para províncias ultramarinas. Rios e afluentes, produções, sei lá mais o quê. Recordo também a experiência de estar no quadro a resolver os problemas que um professor de bata branca, que me pareceu muito velho, mas que talvez nem o fosse, se lembrava de me colocar. Contudo, nada disso me impressionou, nem os mapas, nem os problemas de matemática, nem o júri sisudo, nem o professor de bata branca, a quem, disseram-me depois, chamavam o Herodes. Apenas o edifício exercia sobre mim um fascínio temeroso, aqueles longos corredores, aquelas salas tão altas. Não estava habituado a escolas assim. Hoje ao passar por lá, senti uma leve decepção. O edifício é quase banal e, por certo, não terá corredores tão longos ou salas tão altas como aquelas que eu, nesse longínquo ano, vi. Talvez, com o passar das décadas, tenham diminuído.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Bocejar

Bocejo, agora que a noite caiu. Passei a manhã e parte da tarde a trabalhar, apesar de hoje ser domingo. Depois, fui comprar laranjas e tangerinas numa aldeia aqui perto, onde os produtores locais montam banca à beira da estrada. As pessoas acorrem. É um modo primitivo de comércio, mas eficaz para quem vende e para quem compra. Os produtos são melhores, os preços talvez não sejam inferiores aos praticados pelas grandes superfícies. Quando o tempo está cinzento e húmido, a viagem, uma pequena viagem de meia dúzia de quilómetros, é sempre reconfortante. Há uma tal melancolia na paisagem que o coração quase rejubila pelo confronto com a mágoa manifestada pela natureza. Não porque seja um coração malévolo, mas porque se sente grato pelo poder de expressão das coisas da terra, que, usando um alfabeto e uma gramática ancestrais, permitem mesmo aos mais inveterados citadinos, após um momento de perplexidade, entendê-las. Não foi um domingo glorioso, mas a província é parca em glórias. Deveria ir caminhar, mas está frio e humidade. Além disso, a preguiça toca-me a alma e expande-se pelo corpo. Talvez vá procurar um filme para ir vendo. Talvez. Bocejo.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Uma viagem colonial

Por vezes, obrigo-me a fazer umas viagens na minha terra. Com isto não quero dizer que me ponho a fazer turismo nacional, a ir para fora cá dentro. Sobre esse viajar turístico recuso-me a falar. As viagens na minha terra a que me refiro são outras. São incursões na ficção nacional. Preferencialmente, no romance que nasce no século XIX e vem até aos nossos dias. São autênticas caminhadas no espaço e no tempo, o que é muito mais interessante do que a viagem turística que, por mais voltas que se lhe dê, é sempre uma deslocação no espaço e apenas nele. Confesso que essas viagens na literatura sofrem um enviesamento pouco literário. Não procuro nelas, o prazer estético, o confronto com uma grande obra de arte, mas uma descoberta daquilo que imaginamos ser ao longo do tempo. Cinjo-me ao romance moderno. Se se questionar o ChatGPT sobre qual foi o primeiro romance moderno, ele diz que foi Viagens na Minha Terra, de Garrett, publicado em 1846. A realidade talvez seja diferente. Em 1845, o mesmo Garrett tinha já publicado o primeiro volume de O Arco de Santana. Por seu turno, Herculano publicara, em 1844, Eurico, o Presbítero. Esses, dir-se-á, são romances históricos, logo, não contam. Mesmo que ponhamos de lado esses dois, Viagens na Minha Terra não foi o primeiro romance moderno português, mas O Estudante de Coimbra, do médico algarvio Guilherme Centazzi, que foi publicado em três tomos entre 1840 e 1841. A obra tem um subtítulo curioso: Relâmpago da História Portuguesa desde 1826 a 1838. Será aqui o ponto de partida para as viagens na minha terra, uma visita à Universidade de Coimbra e aos tempos das guerras entre absolutistas e liberais. Como fui dotado de uma enorme inclinação para coisas inúteis, o meu anseio, nunca concretizado, é o de fazer uma história imaginária de Portugal, a partir da imaginação dos seus romancistas. Como isso é uma tarefa de difícil concretização, vou fazendo incursões aqui e ali, no intervalo das leituras que efectivamente me interessam e me dão prazer estético. Veio isto a propósito de uma opção que, às tantas da manhã, em período de insónia, me levou a ler mais de 50 páginas de o Herói Derradeiro, o primeiro romance de Joaquim de Paço d’Arcos, cuja Crónica da Vida Lisboeta, seis romances centrados na capital, merece leitura. Entrei, então, numa viagem num Portugal colonial, mas ainda não sei como ela acaba. Uma curiosidade. A história de Paço d’Arcos é inspirada por Carlos Burnay da Cruz Sobral, um aristocrata que foi um desportista de múltiplos interesses, tendo sido também jogador de futebol em vários clubes de Lisboa, nos primeiros dois decénios do século XX e que morreu numa colónia portuguesa em luta corpo-a-corpo com um leão. O herói do romance herda de Carlos Sobral não tanto a vida e a biografia, mas os traços psicológicos. Entrei, portanto, numa viagem colonial.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Exaltação patriótica

Depois de uma manhã com aguaceiros, alguns bastante irados, ameaçando mesmo apedrejar carros e peões, a tarde furtou-se ao império da cólera e permitiu que um sol radioso caísse sobre a cidade. Um brilhante sol de Inverno, apesar de estarmos no Outono. Há um vento frio, quase cortante, a soprar de Norte, mas apetece estar na rua, caminhar sem destino definido, a não ser o de retornar a casa. Há 383 anos, os conjurados puseram fim ao domínio dos Filipes, um acto sensato, pois quem teria paciência para falar uma algaraviada que se fala ali ao lado a que, por equívoco, chamam espanhol, mas que não passa de castelhano. Eu sou como o outro, embora o outro nem chegasse a ser um heterónimo, mas um semi-heterónimo, que dizia Minha Pátria é a língua portuguesa. Não gostaria de ter de falar em espanhol, não porque deteste Espanha, não detesto, pelo contrário, mas porque os sons da minha infância, os sons que ouvia e ainda não os sabia imitar, eram na música do português, na qual terei sido embalado em algumas noites mais tempestuosas. O tal semi-heterónimo também diz uma coisa sobre a ortografia que subscrevo palavra por palavra: Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m´a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha. Aquilo que, em 1911 e em 1990, fizeram ao português, foi destruir-lhe a dimensão visual, a forma como se vestia, primeiro passo para dinamitar a sonoridade. Quiseram, em nome da plebe, destruir-lhe os traços nobres, o aspecto aristocrático, mas os Miguéis de Vasconcelos da língua não sabem que aquilo de que a plebe mais gosta é do aspecto aristocrático, e tudo o que se apresente a essa plebe como plebeu merece-lhe o maior dos desprezos. O que fizeram ao português, quanto ao aspecto visual da língua, teria um equivalente, no campo do património, na destruição de tudo aquilo que perdeu a utilidade. Castelos sem cavaleiros, conventos sem monges, igrejas sem culto, ruínas romanas sem romanos? Não passam de consoantes mudas. Que se deitem abaixo. Foi isto que fizeram ao português, destruíram-lhe a memória, roubaram-lhes a filiação, apagando os retratos de família. E nem foram precisos espanhóis. Devo ter sofrida uma insolação, para tão exaltado verbete.