quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A espera

Como a imaginação escasseia, retorno à citação. Andrea Köhler, uma correspondente, estabelecida em Nova Iorque, do diário suíço Neue Zürcher Zeitung, tem um ensaio denominado O Tempo que Passa – Um ensaio sobe a Espera. Não o conhecia, mas vi o livro na mão de uma pessoa amiga e dei uma vista de olhos pelo conteúdo. Descobri, no início do capítulo «Desiste!», página 40 da tradução portuguesa, o seguinte: Fazer esperar é um privilégio dos poderosos. No piso da administração, onde nos deixam entregues à espera, há quem supervisione o nosso tempo e o consuma voraz e irreflectidamente. Quem nos faz esperar celebra o poder que detém sobre o nosso tempo de vida, e a dúvida sobre se não é justamente essa a razão para sermos deixados à espera é o que confere a esse poder o seu aspecto mais ameaçador. O meu conflito contumaz com as esperas nos consultórios tem aqui a sua raiz. O bem mais precioso que recebemos ao sermos concebidos é o tempo. Que outro disponha do nosso tempo a seu bel-prazer é não apenas uma humilhação, mas um ataque violento contra a nossa autonomia. Todos temos de gastar o tempo dos outros, mas há diversas formas para o fazermos. Esse gasto pode resultar de um acordo justo entre as partes. Pode também proceder de um exercício de poder daquele que se encontra numa posição superior e que, por isso, dispõe do tempo do outro. As relações entre chefes e subordinados, entre empregadores e empregados, entre médicos e pacientes, são todas elas propícias a um exercício de poder irracional fundado na disposição arbitrária do tempo do outro. Esse poder sobre o tempo dos outros pode acontecer em qualquer circunstância, mesmo as mais inesperadas. Há muito tempo, vivi durante um ano numa cidade do Alentejo. Um dia, precisava de uns parafusos, dirigi-me a uma loja de ferragens. O tempo ali passava muito devagar. A certa altura, o empregado percebendo em mim alguma impaciência, disse-me para não ter pressa, pois ele só saía dali às sete horas. Seriam pouco mais de três. Havia naquela graçola uma vingança. Ele tinha de perder o seu tempo a trabalhar para outrem e vingava-se naqueles que necessitavam do seu atendimento. Sempre que tenho um compromisso esforço-me para chegar a tempo, para não fazer o outro esperar, pois a espera não é o princípio de esperança, mas o sinal de uma distorção na relação entre seres dotados de razão, que devem respeito uns aos outros.

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Lidar com o tempo

Ontem recebi uma chamada. Era só para recordar que amanhã tem uma marcação para vir pôr o Holter, ouvi. Ah sim, obrigado, respondi. Está marcado para as onzes horas, mas pedimos que venha um quarto de hora mais cedo. Disse que sim, que estaria um quarto de hora mais cedo. Tinha a vaga ideia de ter este exame para fazer, mas já nem me recordava quando. E lá fui hoje, de modo a chegar um quarto de hora mais cedo, imaginando que me despacharia rapidamente. Não foi inocência minha. Apenas burrice, pois, como diz uma amiga, inocência depois dos quarenta é apenas burrice. Saí de lá uma hora depois, sem o aparelho colocado. Tinha um compromisso inadiável e não podia esperar mais. Não, não foi no serviço público. Parece que a incompatibilidade entre cumprir horários e exercer a profissão de médico se alargou para os outros serviços de saúde. Desde que os técnicos de saúde se apresentam e são apresentados como doutores, imagino, que tenham também herdado, para além do título, a prerrogativa de não cumprir horários. Em tempos um antigo professor meu da faculdade deu aulas em Medicina sobre ética e saúde. Nessa altura, achei que fazia sentido, mas estava muito longe dos quarenta e a inocência era-me permitida. Hoje continua a fazer sentido que professores de Filosofia tenham lugar para ensinar nos cursos de formação de médicos. Não sobre ética, mas, de preferência, sobre metafísica, onde se trata do problema do tempo. Uma meditação sobre o tempo e a sua irreversibilidade. Desfazer a confusão de que parecem sofrer os praticantes de profissões médicas entre tempo e eternidade. Umas boas aulas de metafísica poderiam, inclusive, ajudar a saber ler um horário e perceber, com a ajuda da ética, o seu carácter imperativo. Tudo isto seria um contributo inestimável que a Filosofia poderia dar aos pobres mortais que, querendo adiar o desfecho que a sua natureza impõe, recorrem aos serviços de saúde. Aquele tempo que gastam em salas de espera seria aproveitado em coisas mais interessantes, mesmo que fizessem mal à saúde. Estamos em época de eleições, sobre as quais não falarei. A política está-me vedada, mas faço uma confissão. Irei ler os programas de todos os partidos e coligações concorrentes, no capítulo da saúde, para ver se algum deles se propõe enfrentar o pior de todos os problemas que afectam a saúde em Portugal, a dificuldade de as profissões ligadas à saúde lidarem com o tempo.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Uma ferida

Na praceta aqui em baixo, adolescentes jogam à bola enquanto esperam o começo das aulas no centro de línguas. Nestes jogos onde nada se joga há uma plenitude que em nenhum outro lado se encontra. Os jogadores não têm outro objectivo que não seja jogar. Coincidem com o seu próprio acto e são inteiros na finta que fazem ou no pontapé que dão. Estão a despedir-se de uma inocência de que não possuem qualquer consciência e é nesse não saber que reside a sua inteireza e a sua inocência. Estes jogos espontâneos são um adeus ao paraíso de que estão, paulatinamente, a ser expulsos. De súbito, fez-se silêncio. Terão entrado para uma aula. Um dia destes já não jogarão, pois deixaram de coincidir consigo mesmos. Essa cisão crescerá como uma ferida. Descobrirão que é uma doença crónica. Haverá aqueles que procurarão a cura e perder-se-ão de si. Outros haverá que aprenderão a viver com a doença, permanecendo dentro do seu próprio horizonte. Caso cheguem a velhos, pensarão sobre isto, sobre o modo como conviveram com a doença crónica e a tornaram num instrumento da sua própria saúde. Nessa altura, sentirão, primeiro, uma leve nostalgia pela inocência em que o seu corpo coincidia consigo mesmo quando um pé encontrava uma bola e a garganta gritava golo. Depois, sentirão o alívio de nunca terem querido curar a ferida aberta pela cisão que os constitui.

domingo, 21 de janeiro de 2024

Progresso e regressão

A certa altura, uma altura recente, da história da humanidade iniciou-se um culto fervoroso pelo progresso, pela evolução do homem. Uma autêntica religião, embora cindida em diversas igrejas, com a sua liturgia, os seus rituais e os seus sacramentos. O século XX foi, porém, uma época propícia para o cultivo da dúvida. O agnosticismo e o ateísmo em relação à evolução da humanidade cresceram, reduzindo o número de fiéis e ainda mais o de praticantes. Da crença na evolução, ficou apenas a certeza do progresso da técnica e um medo terrível de que a moralidade humana estivesse longe de ser capaz de acompanhar o ritmo do desenvolvimento técnico. Este culto público do progresso e da evolução da humanidade sempre foi acompanhado de um outro culto, com raízes muito antigas, mas de natureza quase secreta. Há quem acredite que os seres humanos não estão em evolução, mas em involução. Desde há muito que vivemos numa fase de regressão da nossa humanidade. Em tempos, todos os seres humanos teriam sido mais sábios e sensatos, a vida entre eles era justa e aprazível. Depois, entraram num processo de decadência que se vem acelerando ao longo do tempo. Poder-se-á mesmo afirmar que, para esses cultores da regressão, o progresso técnico é inversamente proporcional à qualidade da humanidade. Quanto melhor a humanidade, menos necessidade da técnica ela tem. Quanto maior recurso à técnica, pior é a humanidade. Estas duas perspectivas têm o condão de sublinhar a necessidade que temos de contar histórias e, ainda mais, de contar histórias que permitam contar todas as outras. Estas duas histórias contadas aqui são histórias enquadradoras, são elas que permitem que contemos todas as outras, sejam elas quais forem. A dificuldade, a minha dificuldade, é que não sei em que campo hei-de enquadrar a história deste domingo. Será a história de mais um passo na evolução da humanidade ou, pelo contrário, será a prova da sua regressão. Ora, não será uma coisa nem outra, pois neste domingo não tenho nada para narrar e este é o ponto de equilíbrio, um ponto neutro, entre a crença no progresso e a fé na involução. A utilidade dos dias úteis, por certo, dar-me-á mais imaginação para encontrar assunto.

sábado, 20 de janeiro de 2024

Interesses

Retornei a O Leopardo, o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Li-o há muito e vi algumas vezes o filme que Visconti fez a partir dessa obra. Estou naquele momento em que Angelica, a bela filha de Dom Calogero, chega ao jantar dado, no regresso a Donnafugata, pelo príncipe de Salina. É extraordinária a forma como Lampedusa mostra a mudança de poder, a queda lenta e inexorável da velha aristocracia e a subida de uma nova casta, ainda rude, mas que fará do interesse próprio a espada com que, sem contemplações, triunfará. Os privilégios da velha aristocracia fundavam-se num ethos do serviço, o qual dissimulava ou sublimava o interesse próprio. Os que triunfaram com Garibaldi puseram de lado esse ethos do serviço e legitimaram o interesse próprio como única razão para agir neste mundo. Poder-se-á pensar que o triunfo dos novos senhores teve o condão de tornar manifesto aquilo que era oculto. É verdade, mas também é verdade que condenou à irrelevância a ideia de servir os outros ou mesmo a necessidade de sublimar, no sentido de tornar sublime, aquilo que era apenas um impulso egoísta. Olhando para essa mudança de poder social que se iniciou no século XVII, em Inglaterra com a Gloriosa Revolução, passou pelas Revoluções Americana e Francesa e se prolongou até à primeira guerra mundial, constata-se que os novos poderes, ao perseguirem os seus interesses próprios, muitas vezes com uma rudeza extrema, acabaram por proporcionar um mundo mais benevolente para a maioria das pessoas. É aquilo a que Hegel chamou de astúcia da razão. Do ponto de vista de uma contabilidade utilitarista, a mudança de poder foi moralmente boa, ao proporcionar a felicidade de um maior número. Contudo, o espírito sente, perante o ethos triunfante uma certa repulsa, pois a conduta dos indivíduos é movida por aquilo que uma longa tradição, que junta o legado grego e, principalmente, o cristão, sempre considerou adverso à virtude moral, o agir segundo o interesse próprio. Cristo, o modelo do homem na cultura ocidental, morreu na cruz movido pelo interesse dos homens e não pelo seu interesse pessoal.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Contra a colaboração

Estou em maré de citações. Citar outrem é aliviar-se do encargo de pensar por si. É uma espécie de coexistência espúria, como o são todas as coexistências. Ouvi-o a Bernardo Soares e li-o no seu livro do desassossego, quando passei os olhos pelo trecho Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas relações com os outros. O facto divino de existir não deve ser entregue ao facto satânico de coexistir. Descobri, em tempos, que vivemos num mundo de colaboradores e que colaborar é uma virtude primeira das relações sociais. Essa descoberta deixou-me sempre desconfortável. Eu não sou um colaborador, falta-me a alma de colaboracionista. A minha revolta contra o verbo colaborar era estética. A colaboração é uma coisa feia. O Bernardo Soares, porém, veio ajudar-me a compreender o fenómeno. Há na colaboração uma morbidez metafísica. Uma decomposição metafísica não cheira menos mal do que uma decomposição física. Pelo contrário. Imagine-se o mau cheiro que deita a putrefacção de uma alma. Começa com um cheiro a enxofre e a partir daí a gama dos odores é cada vez mais repelente. Em vez de desperdiçar a nossa personalidade em orgias de coexistência, a expressão é do Soares, entreguemo-nos à ascese da existência, digo-o eu para evitar que o acto de citar cubra todo este texto. Chegou a sexta-feira, o que me poupa a algumas orgias da coexistência. Entro nela como se entrasse para um eremitério.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Trazer à linguagem

Albert Manguel, o conhecido autor de Uma História da Leitura, na Nota Prévia ao romance de ficção científica Solaris, de Stanisław Lem, afirma Na nossa arrogância só vemos o que queremos ver, vendando os olhos para o resto. A ciência elabora argumentos de ficção científica para nos consolar ou entreter, mas, na realidade, limita-se a dar respostas a expectativas tradicionais. Há nas palavras de Manguel uma insurreição contra o hábito. Nem a ciência escapa à submissão à tradição. Para completar a diatribe revolucionária, acrescenta Ficam por dizer o inimaginável, o impensável, o inacreditável. Ester ardor contra o instalado esbarra, como qualquer projecto revolucionário, com aquilo que se propõe. Dizer o inimaginável, o impensável, o inacreditável. Há dois equívocos neste programa. O inacreditável ocupa um lugar não despiciendo nos actos de fala e de escrita. Muitas são as coisas inacreditáveis que são ditas e escritas. Por vezes, são-no de tal modo que, apesar de absolutamente inacreditáveis, elas são acreditadas e multidões há que juram serem verdadeiras. Se há uma coisa que está no poder da linguagem humana é dizer o inacreditável. O segundo equívoco nasce do programa utópico de dizer o impensável e o inimaginável. A linguagem tem um vínculo com o pensado e o imaginado. Aquilo que não pode ser pensado ou, tão pouco, imaginado não pode ser dito e isto não se deve à submissão dos homens ao hábito ou a uma tenebrosa tradição, mas à natureza do impensável e do inimaginável. Contudo, a linguagem tem tido um enorme poder para trazer à expressão aquilo que ainda não tinha sido pensado ou imaginado, mas que, em última análise, não era ontologicamente impensável e inimaginável. Se a linguagem fosse sempre dependente de um hábito ou de uma tradição, o mais plausível seria que ainda não existisse uma verdadeira linguagem humana, mas apenas um sistema rudimentar de vocalizações que se repetiriam infinitamente, um sistema pré-babélico partilhado por todos os animais humanos. A confusão das línguas resultante da aventura de Babel não é outra coisa senão o símbolo de uma humanidade que procura trazer à linguagem aquilo que ainda não foi pensado ou sequer imaginado, mas que não é, por natureza, impensável ou inimaginável.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Desolação

A meio da manhã fui a uma grande superfície. Quando ia para sair, chovia desalmadamente. Sem guarda-chuva que me protegesse corpo e alma, guardei-me da chuva indo até ao sítio, também grande, onde existe um posto dos CTT, um centro de cópias, melhor de fotocópias, venda de material de escritório e escolar, assim como de brinquedos e também de livros, em quantidade apreciável, diga-se. O desolador, porém, é constatar aquilo que anima o comércio livreiro. A quantidade de lixo publicado em forma de livro é extraordinária. Imagino que essas publicações substituíram as antigas fotonovelas Corin Tellado e outros títulos do género. A minha desolação não deriva desses livros serem publicados em abundância, mas de continuar a haver procura. Havendo procura, logo haverá quem esteja disposto a produzir a oferta que responderá ao desejo. A desolação nasce da constatação de que um aumento exponencial da frequência escolar não alterou o gosto, nem produziu gerações mais interessadas naquilo a que se pode chamar, talvez com presunção, alta cultura. Ao contrário do ensino, a excepção não se democratiza, e procurar o excepcional parece não fazer parte daquilo que se ensina. Olhava para as estantes e por cada romance digno desse nome havia mais de cem que não passavam de um renovamento das antigas fotonovelas, agora sem fotografias. Talvez o progresso esteja aí, na transição da curta legenda pespegada numa fotografia para centenas de páginas de texto sem imagens. O problema que ruminei ao ver aquele papel cheio de palavras foi o de saber quantas gerações serão necessárias para que a quantidade se transforme em qualidade. Talvez essa ideia não passe de uma ilusão dialéctica. Seja como for, cada um lê o quer ou pode, pois é isso o que pressupõe uma certa interpretação da liberdade. Esta ruminação melancólica demorou o suficiente para deixar de chover e poder fazer-me ao caminho, já que a farmácia me esperava, embora ela não o soubesse. Uma visita de surpresa.

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Justa medida

Talvez não devesse ter comido tanto chocolate. Em termos absolutos, foi até bastante pouco. Apenas três quadrados de um chocolate de origem austríaca. Na realidade ninguém pode comer quadrados seja do que for, mas nunca ouvi, e aqui a tradição é fundamental, dizer que se comeu uns paralelepípedos de chocolate. Ora, estes três quadrados estavam longe de ser generosos, mas mesmo assim ultrapassei a medida que, nesta altura da existência, me cabe quanto ao consumo de chocolate. Isto levanta um problema filosófico que não interessará ninguém e muito menos a qualquer filósofo. A justa medida não passa de um conceito relativo. O que será a justa medida para uns, não o será para outros. Pior, a justa medida para mim foi variando com o tempo. Há muito tempo três quadrados de chocolate era prova de frugalidade. Hoje, é um excesso. Comparemos a justa medida, enquanto critério de acção, com o metro padrão, enquanto critério de medida. Este é objectivo e, a não ser por acidente mecânico, não varia. A justa medida é de uma inconstância assombrosa. Desconfio que seja por causa dessa volubilidade que andamos todos perdidos no mundo. Nunca sabemos qual é a justa medida de cada instante e caímos ora no excesso, ora na falta. Os antigos gregos faziam dela o centro da virtude moral, mas estou longe de pensar que eles fossem virtuosos. O mais sensato seria definir o conceito de justa medida com a precisão com que se definiu o metro padrão, mas logo haveria uma gritaria sem fim, protestando que somos todos diferentes, cada um tem a sua medida e só a sua é justa para si. Este culto exacerbado do subjectivismo cansa-me. Uma pessoa tenta ajudar a humanidade a encontrar um rumo, mas logo percebe que o melhor é estar calado. Talvez a minha justa medida fosse calar-me, mas imagino que não seja suficientemente virtuoso para o voto de silêncio.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Obras apócrifas

Salvo por uma chamada de telemóvel. Sentei-me para escrever este texto. Sem saber o que dizer, acabei por adormecer. A meditação deve ter sido tão profunda que mergulhei no reino dos sonhos, embora não tivesse sonhado. Um amigo, a precisar de uma indicação na manipulação de um certo software, ligou-me e eu retornei ao estado de vigília para lhe dar a indicação e enfrentar o texto que espera a minha decisão para se manifestar. Isto significa que o texto que estou a escrever existe a priori e que eu não sou o seu criador, mas aquele que, sem saber como, o revela, trazendo-o do mundo invisível para o visível. Esta transição entre mundos, como todos sabemos, é problemática e, por norma, representa uma queda. É o que acontece com estes textos. No mundo invisível, eles, suspeito-o, são brilhantes, mas quando opero a transição entre mundos, eles degradam-se e acabam naquilo que se vê. É verdade que nunca recebi qualquer reclamação do outro mundo por diminuir a qualidade da obra. Quando penso nisso, e penso-o muitas vezes, nunca consigo chegar a um acordo sobre as razões desse silêncio. Será que quem vive nesse mundo onde se produzem textos brilhantes é benevolente e compreende a imperfeição do mediador? Será que é condescendente e aceita a degradação textual com um encolher de ombros, como se não se pudesse fazer nada? Será que não quer saber do assunto para nada, já que o que se passa neste mundo não lhe diz respeito? Fico sempre indeciso perante a pluralidade de hipóteses. Acabo por não investigar qualquer delas e aceitar a ignorância. Quem ler o que acabei de escrever julgará que é uma artimanha para colmatar a ausência de assunto. Puro engano. Imaginemos qualquer obra literária, desde as mais importantes até às que não têm qualquer importância. Os seus autores são todos eles desconhecidos. O que nós conhecemos são mediadores. Ulisses ou O Processo existiam a priori nesse mundo invisível. Estavam prontos há séculos, apenas esperavam que chegassem os mediadores certos. E eles acabaram por chegar, como sabemos, pois podemos comprar esses romances. Um corolário de tudo isto é que já estão escritas as grandes obras que se manifestarão daqui a um, dois ou cem séculos. Esperam a hora em que o mediador certo venha à existência e esteja pronto para as descobrir e tomar-se como seu autor. Um segundo corolário é mais dramático. Não há obra literária, genial ou medíocre, que não seja apócrifa. O mesmo se passa com estes textos.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Preocupação

Todas as épocas têm as suas crenças dominantes. Por norma, existem diversas crenças. Contudo, há umas que têm maior peso na opinião pública. Crenças dominantes não significa que sejam verdadeiras, mas que geram uma aceitação mais generalizada e tecem uma espécie de consenso que nos permite viver uns com os outros. A certa altura, esse sistema de crenças começa a ser desafiado e um outro arvora-se em orientador da vida comum. O grande problema é que em caso algum a verdade dessas crenças seja a razão para que se tornem dominantes. Por norma, são os preconceitos que tecem a dominação opinativa. Há épocas em que o conjunto de preconceitos dominantes é moralmente mais aceitável. Isso não significa que de seguida não sejam os preconceitos mais imorais e contrários tanto à razão natural como à revelação divina que se tornem dominantes. Estamos a viver uma época dessas, concluiu o padre Lodovico Settembrini. Esta longa meditação foi a resposta a uma questão inocente. Perguntei-lhe como achara a sua Itália, nesta estadia de duas semanas. Não me falou do que encontrou, apenas se entregou a uma reflexão abstracta e que se pode aplicar a qualquer lado. Fiz-lho notar, ao que respondeu que era verdade. Aquilo que tinha dito também se pode aplicar a outros lados, incluindo a este país a que já pertence. Não vale a pena, acrescentou, ficar amargurado, nem desiludido com a espécie humana. Contudo, este ano de 2024 cheira mal, muito mal, apesar de só ter duas semanas. Não me parece que exista fluido ambientador que lhe disfarce o cheiro. Ter-se-á convertido ao cepticismo, perguntei. O padre Lodo riu-se e disse que não era uma questão de conversão. Um católico que se preze é um céptico em relação à espécie humana. Aquela história do homem pecador não é apenas uma artimanha para arranjar gente que vá aos confessionários. É um exercício de cepticismo sobre o homem. A esperança, disse, não reside no homem, mas em Deus, na sua graça. E onde abunda o pecado, superabunda a graça, respondi-lhe. Ele riu-se e não se conteve. Agora cita Paulo de Tarso? Os conversos nunca deixam de ser personagens fascinantes, repliquei. Do ponto de vista estético, esclareci. Disse-me que tinha de se ir preparar para ir dizer Missa. Nem sequer sugeriu um almoço em Lisboa, o que me deixou preocupado.

sábado, 13 de janeiro de 2024

Classificações

Espera-me um encontro com os netos. Olho pela janela, percebo que está a chover e penso que tenho de conduzir. Paro o pensamento e vejo-me preocupado por ter associado o estado do tempo com o facto de ter de conduzir. No outro dia, alguém me disse que eu entrava na categoria de idoso. Reagi com ironia, mas a verdade desta minha associação prova que não há ironia que resista ao facto classificativo. Ao diabo as taxinomias. Olho a rua e dois adolescentes – ainda uma classificação – passam sem chapéu de chuva. Vão como se não chovesse. Os campos de jogos da escola aqui ao lado apresentam pequenos lagos. Ondulam ligeiramente, se o vento sopra. Está um sábado desagradável. Na frase anterior, coloquei um a a mais em “Está” e um a a menos em “sábado”. Esatá um sábdo… escrevi. Podia ser o ponto de partida para inventar uma língua, mas falta-me a energia criativa e cedo, cobardemente, ao hábito, corrigindo as palavras que poderiam ser a porta de entrada no árduo caminho da glória. Oiço um secador a trabalhar. Eis um som que pertence à categoria de sons com poder para me irritar. Poderia agora começar uma classificação dos sons, mas tenho de resistir ao impulso taxinómico. Continua a chover.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Tirar do nada

Fui para aquele sítio onde oficio uma liturgia que não toca o coração da assembleia, a qual se entrega ao ritual como quem se entrega a um hábito tão enraizado que já nem dá conta de que é um hábito. O pior é que antes de ir troquei de casaco. Trocar de casaco não é um acontecimento que traga mal ao mundo, tão pouco ao trocador. O caso é simples de perceber. Deixei os óculos no casaco despido. Quando quis ler alguma coisa, um salmo ou uma epístola, as letras tinham encolhido de tal modo que as linhas me pareciam rectas puras, sem que qualquer relevo me anunciasse ali a existência de letras. Valeu-me que os salmos e as epístolas a que recorro não pertencem ao domínio da religião, o que me permite inventar salmos e epístolas sem cair na heresia. Aliás, não recorro muito a leituras, coisa que nem os crentes suportam, quanto mais os agnósticos e ateus que frequento. O mais interessante de tudo isto reside no facto de ser mentira. Contar uma coisa que nunca se passou é mais aliciante do que contar coisas que se passaram. Contar uma coisa que se passou tem o odor da confidência, o que repugna qualquer ouvinte. A gesta que aqui narro, a minha epopeia, é composta por grandes aventuras que nunca existiram. Não se pense, todavia, que essa gesta é nada. Não é. Fazer de não acontecimentos alguma coisa é um acto mais que humano. É tirar um mundo do nada e é isso que faz de mim um narrador digno não de dó, mas de crédito. Só narro mentiras.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Espelhos

Alguém diz quando me olho ao espelho não é o meu rosto que vejo, mas o de alguém que se está a olhar ao espelho. E continua, quando vejo a minha fotografia não é a mim que vejo, mas uma face congelada. Em resumo, eu não sou a minha aparência, tão pouco a série das minhas aparências, como pode acontecer num filme ou nesse mesmo espelho. Tão habituados estamos a espelhos, fotografias e filmes que não temos consciência de que sem esses artifícios não teríamos acesso ao nosso rosto. Sem eles, a minha face será sempre a face para um outro e não para mim. É plausível pensar que olhar o seu próprio rosto seja uma infracção à nossa condição, a qual se paga pela perda de si na confusão entre a aparência que se vê e a realidade que se é. Isto recordou-me um texto de Jacques Lacan, lido há décadas, sobre o estado do espelho como formador da função do Eu. A criança, dizia o psicanalista francês, numa idade em que ainda é ultrapassada em inteligência instrumental pela cria do chimpanzé tem já a capacidade de se reconhecer ao espelho. Lacan apontava para uma idade entre seis e dezoito meses. Ora, fundindo os dois discursos, descobrimos que nos perdemos quando nos reconhecemos, o que não deixa de ser bizarro. No momento em que descubro que sou um eu, fecho a porta para saber quem sou, pois esse eu não passa de uma aparência. O eu é sempre a aparência de um outro que se esconde. Ora, nunca deveríamos ter descoberto os espelhos. Não porque eles se possam quebrar, mas porque são monstruosos ao devolver-nos uma imagem que confundimos connosco. Esta natureza monstruosa dos espelhos é referida por Jorge Luís Borges no conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Quase no início, escreve: Do fundo remoto do corredor, espreitava-nos o espelho. Descobrimos (a altas horas da noite esta descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram abomináveis, porque multiplicam o número de homens. Compreende-se agora a razão por que o heresiarca de Uqbar era uma heresiarca. A sua heresia estava em não ter percebido o que há de abominável nos espelhos. Eles são-no não porque multipliquem os homens, mas porque os perdem ao devolver-lhes uma aparência que lhes esconderá para sempre a sua realidade. O rosto de cada um só aos outros compete observar. É no desconhecimento da sua face que começa a verdadeira sabedoria. Malditos espelhos que me roubaram a sabedoria.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Vanguarda

Movido por um comentário escutado há dias na Antena 2, tenho dedicado parte do dia à escuta do segundo quarteto de cordas de Joly Braga Santos. Vou na terceira audição. Leio que foi escrito em Milão, no ano de 1957, onde o compositor terá contactado a vanguarda musical. Ainda apanhei o comboio da vanguarda, apesar de ele ter partido de uma estação bem anterior à do meu nascimento. A certa altura, tudo era vanguarda. Na música, na poesia, na pintura, na política, na arquitectura, sabe-se lá mais onde. Aquilo que eu apanhei foi apenas a sombra dessa vanguarda. Pensamos, quando se pensa na vanguarda, na radicalidade dos pressupostos e dos projectos, na ideia de romper o tecido do tempo, para instaurar a novidade, apressar a vinda do futuro. Deus, os anjos e a própria morte, caso cada uma destas entidades exista, franziam todos o sobrolho e não cessavam de se perguntar o que se estaria a passar. Quem é que quer estar na linha da frente, quando chovem as balas? Quem é que deseja apressar o futuro, se no futuro todas estaremos mortos? A própria morte, grande beneficiária do desejo de estar na vanguarda, estava desconcertada com tanto desejo de a frequentar. A excitação vanguardista, como todas as excitações foi passando, e a vanguarda tornou-se velha, caindo na retaguarda, tentando resguardar-se da ceifeira implacável que tinha tentado seduzir. O quarteto de Joly Braga Santos ainda não se inscreve na tradição vanguardista, saliente-se. De tudo isto, subsiste, para mim, um enigma. Se os que marcham à frente estão na vanguarda e os que marcham atrás estão na retaguarda, os que marcham no meio, estão na mesoguarda?

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Construtores e destruidores

Há muito tempo havia um programa de televisão dedicado à animação, da responsabilidade de Vasco Granja. As obras viriam um pouco de todo o mundo, mas tenho a sensação de haver um peso significativo de filmes provenientes dos países de leste, daqueles que estavam para lá da Cortina de Ferro, uma equívoca metáfora, diga-se. O ferro tem a tendência irreprimível para se tornar em ferrugem e duvido que uma cortina ferrugenta fosse, efectivamente, uma cortina. Deixemos estas considerações sobre as metamorfoses dos materiais de lado. Por norma, não consumia o que passava naquelas sessões. Já não teria idade. Há um filme, uma animação curta, dos poucos que terei visto nesses programas, que nunca esqueci. Era um mundo habitado por duas espécies de seres. Uns eram construtores, passavam a vida a construir coisas. Os outros eram destruidores e ocupavam-se a destruir aquilo que os construtores construíam. Estes ficavam infelizes, talvez irados com a malevolência irritante daqueles que reduziam a pó o seu trabalho. A certa altura, porém, os destruidores tiveram uma epifania e converteram-se ao bem. Decidiram nunca mais destruir o trabalho dos outros. A princípio, os construtores ficaram felizes pela conversão. Com o passar do tempo as construções acumularam-se e o trabalho dos construtores tornou-se excessivo. A vida de construção perdeu sentido. Restava aos construtores rogarem aos destruidores que voltassem à acção. Qual a moral da história, perguntar-se-á. Como vivemos numa época onde o relativismo é o credo do dia, a única resposta sensata será dizer que cada um tire da história a moral que lhe aprouver. E se não lhe aprouver tirar alguma lição de tão metafórica história, então não tire. Como se vê, este narrador é muito liberal.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Bens que vêm do mal

Comece-se com uma máxima ao gosto popular. Há males que vêm por bem. Uma proposição que poderia entrar no debate filosófico-teológico sobre a existência de Deus. Os negadores da existência de Deus oferecem como prova central da sua posição a existência do mal. Se Deus é omnipotente, omnisciente e maximamente bom, então não pode haver mal. Contudo há mal no mundo. Daí se conclui que Deus não existe. Contudo, os afirmadores da existência de Deus, retrucam que a existência do mal é compatível com a existência de Deus. O mal que existe proporciona um bem ainda maior. A partir daqui a discussão centra-se em saber se existem ou não males gratuitos, isto é, males que não proporcionam qualquer bem. Os ateus afirmam a existência de males gratuitos. Os teístas negam-nos. A sabedoria dos portugueses está condensada na fórmula há males quem vêm por bem. Não se comprometem. Estão bem com Deus e o diabo. Os teístas lêem males como sendo todos os males, uma leitura possível, e afirmam a máxima prova a existência de Deus. Os ateus rejubilam e dizem claro que há males que vêm por bem, mas os outros males, aqueles que não vêm por bem? Esses provam que Deus não existe. Confesso, todavia, que quando escrevi a máxima não visava a questão da existência de Deus, foi uma coisa que me ocorreu e que desviou o rumo do pensamento. O mal a que eu me referia era a insónia desta noite. O bem, a leitura de 50 páginas, um quarto do romance, da obra de Joseph Roth, Direita e Esquerda. Não se pense que é um romance político. Até aqui praticamente nada de política. Talvez apareça, mas nessa altura calo-me. O romance é de uma ironia notável. Não daquela que leva à gargalhada, mas a que fomenta um sorriso leve, que oculta um grande prazer. Deveria estar mal-humorado com a insónia. Acordar às quatro e meia da manhã é um mal, mas não um mal absoluto ou sequer gratuito. O próprio humor se foi transformando e quando voltei a adormecer, a boa disposição – o bem – reinava no fundo da minha alma. E só esta palavra dava para iniciar uma outra discussão filosófico-teológica, mas vou continuar a ler o romance do Roth, para que de um bem não venha um mal.

domingo, 7 de janeiro de 2024

A única moralidade

Desde a madrugada de 27 de Dezembro que a Gripe A, primeiro, e as suas sequelas, depois, me fazem viver assombrado pelo espectro da incomodidade. O corpo sente-se inapto e o espírito, colaboracionista e fraco, submete-se aos delíquios de uma entidade física incapaz de mobilizar energia suficiente. A situação não é dramática, apenas incómoda, mas existe uma incompatibilidade entre a cultura reinante e a incomodidade. Tudo se organiza para que a vida seja cada vez mais confortável, mas a natureza nem sempre está pelos ajustes e envia os seus batalhões para semear o caos e reduzir a pó as nossas expectativas. Em tudo isto poderia existir uma lição moral, que nos alertaria para o mal que se esconde por detrás do néon da vida fácil e aconchegada. Sejamos espartanos, diz-nos essa moralidade. A vida deve ser rude, para que o corpo não ceda perante os inimigos, visíveis ou invisíveis. A verdade, todavia, é que nós descendemos de Atenas e não de Esparta. A vida não é milícia contínua. Não queremos saber de moralidades assentes na rudeza marcial. O que desejamos é um bom analgésico que tire as dores, um anti-inflamatório, caso alguma coisa se inflame, ou um médico que nos receite um antibiótico eficiente, se for necessário. A nossa vida moral depende do receituário, e essa é a única moralidade que existe em tudo isto.

sábado, 6 de janeiro de 2024

Dia de Reis

Aqui nunca há filmes que se possam ver, ouvi. É verdade, respondi, mas está cá um bom filme. Ouvi a crítica na Antena 2. Vamos ver, acrescentei. Ora, o filme desapareceu de imediato de cartaz das salas de cinema desta pobre cidade, que se fosse elevada a vila seria uma grande promoção. Saiu com uma rapidez estonteante. Quando se foi por ele, já tinha partido. Também não admira, é um filme sobre Enzo Ferrari. A velocidade era o seu negócio e um filme sobre ele não é para gente retardatária ou serôdia. Comentei que seria mais interessante um filme sobre os Reis Magos. Chegaram com quase duas semanas de atraso, o que seria ideal para pessoas como nós, elucidei. Se Enzo Ferrari tivesse sido Rei Mago teria chegado três dias antes do nascimento e ainda teria contratado uma parteira e trocado o burro e a vaca por ar condicionado. Agora, vir de camelo não lembra a ninguém, mesmo que se venha carregado de ouro, incenso e mirra. Não fui ao cinema e tive pena, embora, confesso aqui, nunca fui, naqueles tempos em que as corridas de automóveis me incendiavam os ânimos, um adepto da Ferrari. Na Fórmula 1, era um fã de Jackie Stewart, o escocês voador, que correu, primeiro, pela Matra e, depois, pela Tyrrell. Nos Protótipos, preferia os Porsche aos Ferrari. Coisa de adolescente, não as preferências, mas os interesse automobilísticos. O Dia de Reis, por aqui, não regista qualquer ocorrência. Não se vêem camelos, nem reis, nem magos. Também é verdade que isto não é Belém, mas podia ser o caso de haver uma representação, um auto dos Reis Magos. A falta de iniciativa, todavia, tolhe o desenvolvimento cultural da população local. Entardece e a tarde desliza para o crepúsculo, uma palavra cheia de tonalidade românticas. Só faltam as ruínas, embora existam, mas não se vêem daqui.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Vita beata

Cheguei tarde a casa. Um dia ocupado. Sentado à secretária, vejo as notícias sobre o que se passa no mundo. Este é um lugar onde se passam muitas coisas, mas as notícias versam apenas sobre aquela parte que os seus autores imaginam ser mais fervilhante. Os noticiadores amam a ebulição, pois tudo que não esteja no estado de fervura não será digno de se notar. A ideia destes agentes do alvoroço, caso tenham alguma, será lançar água a ferver por tudo o que é sítio. Imagino que terão uma atracção infantil pelo vapor de água. Como se poderá lidar com toda esta excitação que, a todo o instante, é semeada? As soluções possíveis são antigas. Adere-se ao epicurismo e cultiva-se a ataraxia. Tranquilidade de ânimo, moderando os prazeres, para que a animosidade não tome conta do espírito e o precipite na ebulição das inquietudes e das preocupações. Outra solução é tornar-se um estóico e aspirar à apatheia para que em nós se dissolvam as paixões, essas patologias que nos arrastam para o rígido reino da dependência. O ideal seria deixar de lado as inquietações e apagar as paixões. Se todos se tornassem um misto de estóicos e epicuristas acabariam as notícias, a comunicação social deixaria de ter o que comunicar e a vida decorreria sem que acontecesse nada digno de nota. Será nesta ausência de coisas notáveis que residirá a felicidade, a verdadeira beatitude. Imagino-me na prática de uma vita beata. O pior é que nunca deixo de ir ver as notícias, talvez porque a inquietação ainda faz parte do lote que me coube, agora que as paixões entraram na fase de cinza. O que não faz de mim um virtuoso. As sextas-feiras, depois das festividades, recobraram o seu pleno sentido, como uma promessa nunca cumprida de abrirem o caminho para o jardim do Éden. Também não era suposto, pois há que beber o cálice até ao fim. Uma fatia de bolo rei, na sua versão feminina, vai saber-me bem.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Ponto de exclamação

Chove! Não sinto a chuva, nem a vejo. Ouço-a. É da audição que me deriva a certeza manifestada no ponto de exclamação. Este pobre sinal de pontuação tem má-fama. Coitado daquele que o usa em abundância. O melhor, murmura-se, é nem o usar. Cai mal andar por aí a enfatizar o discurso, a sublinhar admirações. Ninguém tem já autorização para se admirar seja do que for. Um pensamento débil exige a eliminação das exclamativas. Onde não há convicções, não há exclamações. Isto, todavia, é apenas uma parte da história. Digamos que ela se passa no mundo relativamente civilizado. Fora dele pululam pontos de exclamações. Nas redes sociais, por exemplo, o que mais se vê são pontos de exclamação. Não sublinham verdades nem admirações, tão pouco o espanto. Os pontos de exclamação, nesse território insalubre, vêm directamente da bílis, do fel. A quantidade de fel que se vem produzindo nos últimos tempos tem batido recordes. O excesso de produto leva a que ele apareça no mercado em forma de ponto de exclamação, até porque os habitantes dessas terras obscuras não conhecem o ponto de interrogação, e esse é o problema. Aquele que usa a interrogação está preparado para a exclamação, para a surpresa, para a admiração com aquilo que se manifesta perante os olhos interrogadores ou os ouvidos atentos. Como o cair da chuva nesta noite negra e fria.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Desconcerto ou desconserto

O ano já vai no seu terceiro dia e parece que nada mudou neste pequeno mundo a que por convenção chamamos Terra. Esta imutabilidade é, porém, apenas aparente, uma forma insidiosa de enganar o incauto que por ela se deixa encantar. Tente-se recuperar aquilo que se era às vinte e três horas do dia 31 de Dezembro passado, e ver-se-á que, afinal, esse ser já não existe. A cada instante deixamos de ser, mas iludidos pela memória não descobrimos nisso qualquer desconcerto. Prefiro desconcerto a desconserto. O primeiro tem um maior número de portais semânticos. O desconserto fica preso à ideia de desarranjo, enquanto o desconcerto se derrama por imensas possibilidades para além desse mesmo desarranjo. Desconcerto é desordem, dissonância, discórdia, entre outras significações que não vêm ao caso. O tempo desconcerta-nos, pois traz com ele a desordem que mina a nossa ordenação, oferece-nos a dissonância que nos obriga a partir em busca da consonância, impõe-nos a discórdia que fere os corações que sonham com a concórdia. A memória é, deste modo, uma tecedeira que tece um manto que esconde o desconcerto em que cada um vive. A própria Terra vive de desconcerto em desconcerto. A tudo falta a harmonia concertante. De resto, ninguém quer saber, pois a sabedoria é mercadoria perigosa para materiais tão frágeis. Eu também não quero saber. Basta-me a dor lombar ou, talvez de modo mais erudito, a lombalgia. Decidiu atacar-me nos últimos dias do ano e ainda não se retirou. Olho para ela e não sei se ela faz parte do meu desconserto ou do meu desconcerto. Terá por causa um desarranjo ou trata-se de uma dissonância no corpo ou uma discórdia entre partes do mesmo corpo que deixaram de cooperar e eliminaram das suas relações a consonância? À falta de melhor, vou meditar na causa da coisa.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Sentido

Está um dia frio. Ontem havia sol, o astro dardejava os seus humores sobre a Terra, sem que esta, talvez por ser o primeiro dia do ano, se defendesse. Hoje não é assim. O planeta armou uma muralha de nuvens cinzentas e os raios que a atravessam apresentam-se sem força nem brilho. Retorno à realidade, embora com pouca vontade. Aliás, protelo o mais que posso esse retorno, mas ele é inexorável. Se chovesse, haveria menos frio. Não chove e os terrenos vão secando. Janeiro nem sempre é um mês fácil. Os outros também não. As nuvens, reparo ao olhar os céus, viajam apressadas, impelidas por um vento ansioso. Na praceta, não há ninguém. Tudo se cobre de uma melancolia sem nome, de uma tristeza tocada pelas cores sombrias nascidas no fundo negro dos corações. Procuro o sentido para todas estas coisas, mas não lhe encontro sentido algum. Sentido e coisas serão incompatíveis e repelir-se-ão mutuamente. Dizer coisas é equivalente a dizer coisas sem sentido. Dizer sentido é negar as coisas. Como numa auto estrada, existe uma via apenas para as coisas e outra via só para o sentido. Se o mundo for o somatório das coisas, então o mundo é destituído de sentido. Se o sentido repousa apenas em si mesmo, então é sentido de coisa nenhuma. Deveria escrever como um dia escreveu António Ferro: Entretanto, este constante turismo ao meu espírito, através dos rails das minhas frases, há-de fazer-lhe bem… Que Mademoiselle Y me perdoe esta última impertinência… Só não o escrevo, porque me falta o espírito, as minhas frases não possuem rails, e não conheço nenhuma Mademoiselle Y, infelizmente. Se a conhecesse, jurar-lhe-ia que nunca teria ela de me perdoar qualquer impertinência. Seria para ela sempre pertinente, para que ela me agradecesse com desvelo a minha pertinência. Talvez pudéssemos passear pelos jardins despidos do Inverno e esperar que os nossos corpos se tocassem para enfrentarem a rispidez do frio, a falta de empenho do Sol em fazer chegar até aqui o radioso das suas mensagens. Depois, teria de decidir se ela, a Mademoiselle Y, tinha sentido ou seria apenas uma coisa. Aqui, porém, estou a entrar um campo minado e o mais sensato é evitar deflagrações.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Entardece

Um bando de crianças aterrou no parque infantil. Trazem o Ano Novo pendurado ao pescoço. Correm, gritam, chamam pelos pais ou são, por estes, chamadas. O sol está como a minha vontade, anémico. Um medicamento age sobre a rigidez do meu corpo e torna-me fraca a vontade. Ainda não saí de casa, o que me permite dizer que não vejo as ruas há um ano. Uma pilhéria fácil. Aliás, sou um narrador vergado ao peso das coisas fáceis, nado no mar da trivialidade. Penso no estado do mundo, mas, após longa ruminação, concluo que o mundo não tem qualquer estado, não é sujeito de seja o que for, tão pouco é substância em que possamos espetar uns pregos para pendurar o casaco da existência. Na televisão, alguém falava de uma secular tradição começada há vinte anos. Talvez, isto é uma conjectura, não exista tradição que não seja secular e aquelas que nasceram hoje, ao serem denominadas tradição, tornam-se de imediato seculares, o que anima bastante as pessoas. Estas adoram tradições e séculos. Logo, amam com desvario as tradições seculares. Um historiador, Hal Foster, diz numa entrevista que existe actualmente um problema entre os jovens intelectuais, que é o de terem as respostas quase antes de se formularem questões. Pensei sobre o assunto e fiquei aliviado. Não sendo nem jovem nem intelectual, não sou um jovem intelectual. Por isso, não tenho respostas e vivo rodeado de problemas. A uns trato como rosas; a outros, como cardos. Lido com cuidado com ambos, para evitar picadelas. O problema do tal medicamente é que ele não apenas me descontrai a rigidez de certos músculos e torna a vontade fraca, como me põe uma névoa dentro da cabeça, o que dificulta o contacto entre os neurónios e a transmissão da actividade nervosa, ficando, a actividade nervosa, engarrafada no interior de cada neurónio. Uma criança grita, parece ser mais uma birra, de que ela é contumaz. Entardece. É sempre tarde para qualquer coisa.

domingo, 31 de dezembro de 2023

Alma de contabilista

O melhor é não dizer nada. Foi esta a resposta que em mim ressoou quando, por distracção ou dependência de um velho hábito de fazer balanços, perguntei, no silêncio da consciência, o que se pode dizer deste ano, o que agora acaba. Não dizer nada, estar calado. Isto não significa esquecer. Indica antes uma via contemplativa. Olhar para o ano que agora se prepara para as exéquias e não deixar que o discurso interponha entre nós e o ano um véu, que, por mais transparente que seja, sempre há-de ocultar o essencial. Isto ocorreu enquanto caminhava pelas ruas da cidade, mergulhado no cinzento do dia, absorto em pensamentos, indiferente ao destino das coisas e pessoas pelas quais passava. Ouvia duas composições de Morton Feldman, Why Patterns? e Crippled Symmetry, de 1978 e de 1983, respectivamente. A música encerrava-me dentro de mim sem criar obstáculos, pelo contrário, ao movimento do corpo. Depois de almoço, sento-me e retomo o texto. O sol ainda não deu um ar da sua graça e volto ao pensamento acerca dos balanços que quero evitar, mas ainda assim ocorre-me a existência de livros de Deve e Haver. O que poria em cada uma das colunas? Não faço ideia. Continuo com Morton Feldman e, sem particular curiosidade, espero que o ano acabe e outro comece, embora não existam fins e começos de anos, pelo simples motivo que não existem anos, nem meses, nem semanas, nem dias. Também é possível que não existam começos e fins, a não ser aqueles que os homens convencionam, para que a vida lhes pareça regulável e uma ordem enquadre as desordenações do coração ou do fígado. Um amigo faz hoje anos. Tenho de lhe telefonar. Talvez deva aguardar mais um pouco e observar a evolução das nuvens nos céus que se avistam da cadeira do meu escritório. Vou ligar o aquecimento. Depois, farei outra coisa qualquer, menos balanços. Falta-me alma de contabilista e isso pode não ser coisa boa.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Presunção

Uma noite com muito tempo sem conseguir dormir. Acabou por ser verdadeiramente rentável. Pareço um contabilista a falar. Permitiu-me acabar de ler Não Sou Stiller, de Max Frisch, um grande romance, e começar Os Homens Não São Máquinas, do mesmo autor. Há muitas coisas que devia ter lido e sei que não li. O caso da obra de Max Frisch é pior. Até há pouco tempo eu nem sequer sabia que tinha o dever de a ler, pois ignorava-a por completo. Foi, já nem sei onde, uma referência a ele e a Hans Fallada que me alertou para a sua existência. Mal dormido, mas satisfeito, levantei-me cedo. Ida à farmácia e, depois, à estação da Rodoviária para que as netas tomassem o Expresso para Lisboa. De seguida, uma passagem por um supermercado – por aqui, há mais supermercados do que pessoas – para umas compras necessárias. A certa altura, ao olhar os clientes, fui atingido pela memória de um filme de Ettore Scola, cujo título em italiano é Brutti, sporchi e cattivi. Recuso-me à tradução portuguesa para diminuir o peso da culpa por ter feito tal associação. As pessoas que ali estavam não vivem num bairro de lata dos arredores de Roma. Provavelmente, tomam banho com regularidade suficiente, usam perfumes e têm bons carros, mas há nas suas expressões uma tal rudeza que não consegui evitar a analogia. Ainda não terão entrado na fase do policiamento dos gestos, do exercício da contenção, da sublimação da animalidade. Em muitos daqueles olhares existe o brilho vivaz da manha, mas ainda não a cintilação da inteligência e a ponderação da sabedoria. Vivem a fase que prepara essa grande metamorfose em que uma linhagem de gente rude dá lugar à beleza dos corpos e, talvez, mais adiante, à dos espíritos. Penso, ao olhar o entardecer, que o melhor seria evitar passar, a um sábado pela manhã, num sítio daqueles, onde o instinto do rebanho e a pulsão da massa conduzem as pessoas, a mim incluído.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Autenticidade

No Público de hoje há uma entrevista ao poeta Manuel de Freitas. A certa altura ele diz É possível que o Quim Barreiros seja tão autêntico como o Morton Feldman. A autenticidade é fundamental, em suma, mas tudo depende do modo como se declara esteticamente. A autenticidade é fundamental para quê, pergunto-me de imediato. O vocábulo autenticidade encerra em si referências a três dimensões semânticas. Uma primeira está ligada ao direito, aquilo que está conforme à lei e, ainda, aquilo, uma obra, que pertence ao autor a quem é atribuída. Uma segunda dimensão é de natureza epistémica e diz respeito ao problema da verdade. Na terceira dimensão, fala a voz da moral, a autenticidade como sinceridade. A autenticidade é, então, uma categoria filosófica ligada ao direito, ao conhecimento e à moral, mas será ela uma categoria artística? Para Lev Tolstoi, a sinceridade é fundamental na obra de arte, mas ele já tinha dobrado a sua concepção estética à moral. Imagina-se muitas vezes que certas obras de arte trazem consigo os elementos que permitirão reconhecer uma certa autenticidade a que chamaríamos artística. Se nos perguntamos o que será essa autenticidade, apenas nos deparamos com categorias de autenticidade que acabam por se acomodar ou no direito, ou na epistemologia ou na moral. É plausível pensar que a arte está para além – ou para aquém – da querela entre a autenticidade e a inautenticidade e, sendo assim, a autenticidade nada terá que ver com a arte. Podemos mesmo dar um passo em frente e dizer que toda a obra de arte é-o na medida em que se emancipa da sua autenticidade. Na raiz da palavra autenticidade está autêntico. Este deriva do latino authenticus. Por seu turno, o vocábulo latino traduz o grego antigo αὐθεντικός (authentikós, original, genuíno, principal), que, por sua vez deriva αὐθέντης (authéntēs, o que age por sua própria autoridade, o que realiza, governante). Todas estas acepções têm a sua origem αὐτός (autóssi-mesmo). O que é surpreendente na obra de arte é que ela se liberta do seu autor. A Guernica, de Picasso, ou Os Maias, de Eça de Queirós, estão para além do si-mesmo que é apresentado como seu autor, são mundos que, após terem sido criados, são abandonados aos que deles se aproximam. A criação desses mundos é uma fabricação, o exercício de uma indústria onde impera o artifício. O que marca a obra de arte é sua artificialidade, a sua pura ficcionalidade, tudo categorias em conflito com a autenticidade.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Apaziguamento

Ingénuo – e ingenuidade com esta idade não é ingenuidade, mas burrice – tinha eu pensado que no dia 26 terminavam as natalidades deste ano. Não tomei em consideração a possibilidade de existirem efeitos colaterais. Estes, porém, vieram inexoráveis e atingiram toda a família. Sessões de vómitos, febres, diarreias, dores no corpo. Como bons seres humanos, logo arranjámos maneira de acusar umas ostras do almoço de Dia de Natal. Foram incriminadas com o delito de intoxicação alimentar. Pobres ostras, o mais certo é estarem inocentes. Depois, foi considerada a possibilidade de uma virose genérica, sem designação. Aqui havia um contratempo. Não se identificava o criminoso e a queixa era apresentada contra incertos. Valeu a opinião de um farmacêutico desconhecido e ocasional e de um médico amigo, este via telefone. O mais certo é ser gripe A. Foi o que deram as natalidades deste ano, gripe A. Agora, vou repousar, eu que ainda não fiz outra coisa senão descansar, pois, seja qual for o agente patogénico, tem o extraordinário poder de enviar o paciente para a imobilidade. Imóvel, o corpo parece mais apaziguado. É disso que preciso, apaziguamento.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Uma tradição

Ainda não acabaram as minhas natalidades. Respiro fundo, encho-me de coragem e preparo-me para a última etapa. É uma etapa e não uma provação. Por norma, são momentos agradáveis e acolhedores, mas já cheguei àquela altura em que estar em casa é estar no melhor dos mundos possíveis. Aliás, o Natal para mim não é uma provação, mas uma altura de que gosto, embora fique cada vez mais cansado do exercício. Recebi uma fotografia com o meu neto vestido com um pólo do clube de que a família é adepta há várias gerações. Foi uma foto para ver como ficava e para enviar ao avô que teve a ideia de lhe oferecer a vestimenta. É preciso notar, todavia, que o avô está para o clube como muitos católicos estão para Igreja. É um não praticante. Gosta quando o clube ganha, mas se perde ou empata, não encontra motivos de tristeza. Não consegue entender a metafísica do esférico, acha a ética da coisa deplorável e a estética do jogo, em muitos casos, ainda é pior que a ética. Em suma, raramente vê um jogo de futebol. Quanto ao desporto, o rugby há muito que ocupou o lugar do futebol e nem mesmo a esse jogo presta grande atenção. Na adolescência, porém, era vidrado, no sentido que no Brasil se atribui a esse vocábulo, para além do futebol, pela Fórmula 1. Adepto incondicional de Jackie Stewart, o escocês voador. Não havia grande prémio que não assistisse na televisão. Quando a Fórmula 1 chegou a Portugal, ao autódromo do Estoril, já o interesse pelo fenómeno dos carros à volta de uma pista se tinha ido embora e nunca cheguei a assistir a uma corrida ao vivo. Ainda me recordo do nome dos pilotos daqueles tempos, então, uns heróis, mas dos actuais não faço ideia de quem sejam, para além daqueles que ocupam os cabeçalhos das notícias dos jornais que leio. Apesar de tudo, achei que a camisola ficava bem ao meu neto. Um dia destes, faço um sacrifício e levo-o a ver um jogo. Ele veste o pólo e o avô põe um cachecol que um dia comprou ao passar, inadvertidamente, depois de uma ida ao cinema, por uma celebração de um campeonato ganho pelo tal clube que conquistou o coração familiar há várias gerações. Uma tradição.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Natalidades

A Consoada já pode ser riscada do calendário natalício deste ano. Segue-se, mais logo, o almoço de Natal, sempre tardio, depois uma espécie de lanche e jantar, num só, e a coisa só acaba com um almoço de dia 26. Tudo isto em diferentes locais. Famílias modernas, digamos assim. Em resumo quase um por cento dos dias de um ano são gastos com as natalidades, isto sem contar, com a procura e compra de presentes. O Papa, li nem sei bem onde, apela para que não se faça do Natal uma festa do consumismo. Eis um pedido pouco caridoso. Imaginemos que todos os que vivem numa cultura com base no cristianismo se tornavam frugais no Natal, que restringiam os consumos e viviam a efeméride com o espírito de pobreza do presépio e não com a presunção de que são reis magos vindos do Oriente. Quantas falências essa atitude implicaria? Quantas pessoas lançadas no desemprego? A Terra, caso tivesse consciência e linguagem, ficaria grata, mas se as tem nós não damos por elas. Por isso, dispensamos a gratidão do planeta e cuidamos de comprar coisas, as mais das vezes inúteis para os compradores e ainda mais para aqueles que vão ser contemplados com elas, mas que têm um forte significado económico. Estou a desviar-me do assunto e a economia é uma área em que a minha ignorância é inexcedível. Por vezes, penso que é uma disciplina com fortes afinidades com a astrologia, pois as previsões económicas são tão incertas quanto as astrológicas, apesar dos robustos modelos matemáticos que os economistas usam para que todos pensem que são cientistas e não astrólogos. O melhor é não continuar com esta catilinária contra a tribo dos economistas, pois hoje é dia de Natal e há que fazer parte dos homens de boa vontade. Talvez o Papa precise de um aconselhamento económico, mesmo dado por astrólogos do mercado, para compreender que entre o espírito e o consumismo não há uma incompatibilidade, pois o espírito dos nossos dias é o espírito de consumo. Até que tudo fique consumado. Vou preparar-me para enfrentar as natalidades que ainda me faltam.

domingo, 24 de dezembro de 2023

Consoada

Chegámos ao dia cuja noite é a noite de consoada. Pasmo não poucas vezes com a quantidade de palavras que uso e cujo sentido efectivo desconheço. Consoada é uma delas. Claro que sei o que é a noite de consoada. Esse saber, porém, diz pouco, é uma ciência que não passa de um minúsculo ilhéu no mar semântico da palavra consoada. Perante a ignorância, decido investigar. Na origem está o verbo consoar. Contudo, esse verbo, como muitos dos verbos que usamos, é equívoco, transportando mais que um sentido e tendo mais que uma origem. Em resumo, são dois verbos. No primeiro, consoar significa soar conjuntamente, mas também rimar. Estamos na área semântica do som. Deriva do latino consonāre, que significa ressoar juntamente. Ora a consoada não é um concerto coral, onde as vozes dos consoados se juntam e em uníssono ressoam. Embora, seja uma possibilidade interessante. Existe uma segunda dimensão semântica de consoar. Caso seja a versão intransitiva, então significa celebrar a consoada. Se, porém, for a versão transitiva, significará comer por consoada. Na sua origem, encontra-se um verbo latino, cōnsōlor, cujo infinitivo é cōnsōlārī e nos remete para a ideia de reconfortar. Contudo, podemos continuar a escavar no léxico e, de imediato, encontramos na raiz de cōnsōlor o verbo, também latino, sōlor. Que nos dirá ele? Fala-nos em aliviar, ajudar, socorrer. A consoada, então, será um exercício em que nos socorremos, ajudamos ou aliviamos uns aos outros, e isso reconforta-nos. Podemos ainda ir um pouco mais longe e tentar descobrir de onde vem sōlor. Aqui, as minhas fontes (o Wiktionnaire) perdem alguma precisão e apenas oferecem uma conjectura. E como todas as conjecturas, esta está sujeita a refutações. É provável que sōlor derive de sollus. Este será uma variante arcaica de solus, cujo significado era todo ou inteiro. Consta mesmo que sollus é o vocábulo latino mais antigo para significar o todo, o inteiro. Então, a consoada será aquela refeição conjunta em que nos tornamos numa totalidade, onde subsistirá a ideia de comunidade familiar, e ainda nos tornamos inteiros, onde restauramos a nossa inteireza, a nossa completude. E isso reconforta-nos, torna-nos mais fortes. Talvez aqui possamos juntar os dois verbos consoar, aquele que fala em ressoar conjuntamente e aquele onde restauramos a nossa inteireza em comunidade familiar. Essa restauração do todo é como uma canção, que cantamos completos na totalidade a que pertencemos. Não há nada melhor de que nos entregarmos à ociosidade da especulação. Curiosamente, na história evangélica do cristianismo, não é no momento que antecede o nascimento do Menino que se celebra a refeição reconfortante, mas no tempo que antecede a morte desse Menino, agora homem, na última ceia, que é, na verdade, uma ceia de consolação que prepara a morte, mas também o novo nascimento, o restabelecimento da inteireza perdida pela desatenção de Adão e Eva. Uma boa Consoada.

sábado, 23 de dezembro de 2023

Uma aventura em Campo de Ourique

Já chegou a noite. A maior aventura que me aconteceu hoje foi almoçar um cozido à portuguesa em Campo de Ourique. Desesperados, com a hora de almoço bem atrasada, cinco pessoas esfomeadas, encontram uma mesa, num restaurante ao acaso, sem marcação. Um milagre para um sábado, e que sábado, por aquelas paragens. Depressa percebi a inteligência daquela escolha. Era possível compor o cozido, excluindo umas coisas e reforçando outras. Por exemplo, excluir o frango ou o nabo e a cenoura. Isto de fazer compras a um sábado, véspera da véspera do dia de Natal, não lembra ao demónio, mas foi o que aconteceu. Não se tratava de presentes, mas de bebidas e comidas, com uma visita a uma grande superfície. Aproveitei, o estar ali pelo Jardim da Parada e fui à Ler, a livraria do bairro, sítio que, sempre que posso, visito, com pouco proveito para a minha conta bancária. Dos presentes que decidi oferecer-me consta os Poemas 1934-1961 de Pedro Homem de Mello. Nem tudo o que escreveu é bom, mas é um poeta que continua a merecer uma leitura atenta. O poema “Bailado” começa com a seguinte quadra: Quebrada pela cintura / Abre em dois frutos o peito. E o seu calcanhar procura / A ponta do pé direito. E não resisto a continuar, com mais duas quadras: O vento dá-lhe na cara, /Escondida pelo lenço. / E o luar, que a decepara, / Deixa-lhe o busto suspenso… // Os olhos, como hei-de vê-los, / Se os desejos, menos vãos, / Morrem só porque os cabelos / Nos deixam sombras nas mãos? E para o poema aqui jazer completo, fica a quadra final: Indizível, mas perfeito / Indício de formusura! / Abre em dois frutos o peito, / Quebrada pela cintura. Fez a Assírio & Alvim muito bem trazer de volta a poesia de Homem de Mello. Faltará um segundo volume, com a obra que vai de 1964 a 1979. O poeta morreu em 1984. Reparei, na livraria, que estão a ser republicados autores que estavam semi-esquecidos. Por exemplo, Fernando Namora, Alves Redol ou Augusto Abelaira. Carlos de Oliveira continua a ter leitores, bem como José Cardoso Pires ou Agustina Bessa-Luís. Além da obra poética de Homem de Mello, aventurei-me a comprar um romance de Jaime Nogueira Pinto, Os Passageiros da Sombra, e ainda A Justiça de Yerney, do esloveno Ivan Cankar e um livro de contos de Barnard Malamud, com um título de um realismo atroz, Primeiro os Idiotas. Para memória futuro, os livros foram comprados antes do cozido. O resultado de tudo isto foi voltar para o meu recanto na pequena província onde arrasto os meus dias, presos à pequenez de todas as coisas pequenas, as quais têm exactamente a mesma dimensão que as grandes, o que muda são os olhos que as observam.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Ignorâncias e indefinições

Comecei a minha viagem de Inverno. Os primeiros rituais foram idênticos aos das outras estações. Extrair os comprimidos das respectivas embalagens para os colocar na mesa do pequeno-almoço. Tomo-os a meio da refeição, não todos de uma vez, pois são quatro, mas segundo uma ordem que me parece imutável. Primeiro um, depois outro e por fim os dois em falta, sempre na mesma ordem. As razões desta ordenação desconheço-as, mas existirão, tal como posso confirmar, aceitando o velho Baruch Espinosa como autoridade credível. Numa carta a Schuller, a carta LVIII, o filósofo holandês escrevia o seguinte: E esta é aquela liberdade humana que todos se vangloriam de possuir e que consiste apenas no facto de que os homens têm consciência dos seus desejos, mas ignoram as causas que os determinam. Assim, o bebé crê desejar livremente o leite, o garoto zangado a vingança e a criança medrosa a fuga. Ora, eu que não sou bebé, nem garoto, tão pouco criança, creio haver uma causa a determinar a ordem pelas quais tomo a medicação. Por vezes, ao engolir aquelas coisas, especulo sobre as causas. Serão mecânicas? Serão psicológicas? Serão fisiológicas? Serão sobrenaturais? E a cada pergunta sinto, com embaraço, a minha desilusão por não conseguir descobrir que potência está a guiar o meu ritual e o meu destino. Já pensei que fossem causas estéticas, mas ao olhar para cada um dos comprimidos não consigo sentir qualquer emoção estética e afastei a hipótese por implausível. Por vezes, caio na tentação de ver naquela ordenação apenas o resultado de uma escolha livre, de um projecto que me vai constituir, que me conduzirá da existência à minha essência. Existe, todavia, um óbice. Ter-se tornado um hábito ritualizado, quase uma tradição pessoal. Se é um hábito, então não é uma acção livre, mas determinada, mesmo que, por hipótese especulativa e pouco credível, no primeiro momento tivesse sido um acto de liberdade. Penso, uma vez por outra, em alterar a ordem da tomada dos comprimidos, mas o hábito é uma segunda natureza e eu sigo a natureza, mesmo que seja apenas uma segunda natureza. Não fora a existência de coisas como os blogues, como poderia o mundo ter acesso à sabedoria que me consome e que o ilumina. Eu sei que não será fraca a objecção que dirá que o mundo está nas trevas mais negras e que a minha luz ilumina tanto como uma lâmpada fundida. É preciso fé, respondo, pois só a fé permite ver a luz onde ela não existe e mesmo onde existe. A luz é uma coisa muita estranha, não fosse onda e corpúsculo, como se sofresse de uma incapacidade inata de se definir enquanto género. Chegou o Inverno.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Sem proficiência

Há dias tão brancos que nenhuma aventura os enriquece. São duas da tarde e apesar de ter demandado várias paragens, nem gigantes nem monstros, tão pouco canto de sereias. Ontem, porém, tive uma aventura extraordinária. Depois de pôr gasolina, fui dar ar aos pneus, que andavam com falta dele, precisavam de um ventilador. Aí descobri que a idade vai rasurando as poucas faculdades com que uma pessoa é dotada à nascença. Num dos pneus, o ar não queria entrar. A maquineta dava erro, uma e outra vez. As pernas doíam-me de estar acocorado e a máquina a dar erro, o ar a recusar-se a penetrar pela câmara que lhe estava destinada e um novo utente da maquineta à espera. Até que se condoeu de mim e me foi explicar, exemplificando, o problema. Era eu que não estava a usar a violência necessária para cingir o terminal da bomba de ar à válvula do pneu. Agradeci e pensei que as coisas começam a complicar-se. Uma vida inteira a pôr ar nos pneus e agora preciso que me expliquem como se faz. É verdade que ontem a minha mente estava ocupada com diversos assuntos que não vêm ao caso, mas isso não deveria impedir que fosse proficiente a encher os pneus do carro. Se chego a esta altura e perco a proficiência numa tarefa tão rotineira como essa, um mero amplexo entre um terminal e uma válvula, o que se seguirá? Talvez exista uma desculpa. O terminal, apesar da designação masculina, tem uma configuração fêmea, devendo ser penetrado pela válvula, independentemente da denominação feminina que lhe cabe. Haverá aqui uma confusão de género, um assunto que é melhor não abordar, mas que pode ter gerado em mim uma confusão tal que já não soubesse o que, naquele caso, era macho e o que era fêmea. Uma outra explicação, talvez melhor, será a minha falta de habilidade para coisas técnicas, mesmo as mais simples. Esta, porém, ainda que melhor, não me convence. Está um bonito dia de Inverno, apesar de estarmos no Outono. Por umas horas.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Traduções

Tenho diante dos olhos uma tradução de poemas de Rainer Marie Rilke. O mais certo é a poesia ser intraduzível. Não se trata de transpor sentidos, mas sons e ritmos. Imaginemos uma música universal. Ela é o rumor da Terra ou o murmúrio das esferas celestes. Os poetas captam essas ondas sonoras e a poesia nasce na fronteira que separa essa música e a fala. Então, a poesia é o exercício de uma dupla contaminação, a da música que contagia a fala numa certa língua e a da fala de uma certa língua que infecta a música primordial. Em cada poema entramos no domínio de uma patologia, de uma paixão. Ora, nem a doença que sofro nem a paixão que vivo são transmissíveis a terceiros. São propriedades minhas, propriedades intransferíveis. É esse o problema da tradução de poemas. Por certo, pode haver versões de poemas, mas são sempre outra coisa, na melhor das situações outros poemas, como bem compreendeu Vasco Graça Moura ou Herberto Helder. Em nenhum caso, porém, um não poeta deve pôr-se a traduzir poesia, pois aquilo que sai não é uma tradução e tão pouco um novo poema. E com esta diatribe contra os tradutores não poéticos de poesia chego a esta hora. Ainda é de dia, mas por pouco tempo. Espera-me uma caminhada para acumular passos e pontos cardio. Primeiro, porém, vou assaltar o bolo rainha que vi lá para dentro e depois enfrento o vento norte, com a esperança de queimar calorias.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Uma teologia da estucha

Entre o Natal e o Ano Novo está por cá? Por cá, o padre Lodo, o meu velho amigo Lodovico Settembrini, queria dizer por Lisboa. Respondi que não estaria. Tenho em agenda uma viagem com as netas, que me afastará da capital. Algum acontecimento especial, perguntei. Está cá o Hans, referia-se a Hans Castorp, e a mulher. Como já terei contado por aqui, Hans Castorp foi discípulo do padre Lodo, embora nunca tenha sabido em que condições ocorreu esse discipulato. Mais tarde casou com Emilia Bazán. Melhor, Emilia Pardo Bazán. Nunca deixou fenecer a amizade com o padre Lodo e, não poucas vezes, o visita em Lisboa. Por norma, isso dá direito a um almoço ou jantar grupal, no qual o velho jesuíta conjuga diferentes amizades e as junta numa atmosfera amena, onde uma conversa cordial não esconde diferentes visões do mundo, muitas delas pouco concordantes com o espírito da Companhia de Jesus. Há mesmo entre os membros do grupo alguns representantes do velho jacobinismo anti-jesuítico, mas que não resistiram à afabilidade do padre italiano. As divergências, porém, nunca ultrapassam a benevolência de pequenos chistes, que fazem sorrir. Terei de ver se eles ainda estarão cá depois da passagem de ano, essa estucha. Estucha, sublinhei eu com ar interrogativo. Sim, estucha, estopada, uma chatice, aquela coisa das passas e da meia-noite. Ninguém o obriga ao ritual das passas, de facto, uma coisa insuportável, mas estucha, nunca lhe tinha ouvido tal palavra. Foi uma confessada que me a ensinou. Chega ao confessionário e todos os pecados que debita acabam com a expressão uma estucha. Parece-me uma pecadora enfadada, respondi. Talvez, talvez o pecado leve à perda dos homens mergulhando-os no aborrecimento, acrescentou. O melhor, depois do spleen baudelairiano e da nausée sartriana, seria elaborar uma teologia da chatice ou, melhor, da estucha. Ele riu-se e ficámos de falar daqui a dias.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Taxionomias pilosas

Comecei esta noite a ler Não Sou Stiller, um romance do suíço Max Frisch. Parece-me ter feito uma grande descoberta. O mais apropriado, por certo, não seria enfatizar a descoberta agora realizda, mas reconhecer com humildade socrática a minha enorme ignorância. Escrevi suíço e fiquei a pensar nas suíças, aquela porção de barba que certos homens deixam crescer nas partes laterais do rosto, também chamadas patilhas. De onde virá a designação? Das mulheres dos suíços? Um enigma. Ainda procurei, lendo em diagonal, no Signum SalomonisA Figa – A Barba em Portugal, de José Leite de Vasconcelos. Ora, Leite de Vasconcelos entrega-se a uma informada e exaustiva taxionomia das suíças, mas não tem clara a razão que conduziu a que se chamassem suíças às suíças, não às mulheres naturais da Suíça, mas às vulgares patilhas, nome vindo daquele sítio de onde não vem nem bom vento nem bom casamento. Para quem esteja interessado em meditar os velhos usos pátrios da pilosidade facial, deixo o Sumário do Capítulo III, do livro supracitado: Formas naturais e artificiais • Barba medrada e seus nomes • Barba aparada • Nomenclatura da barba, segundo as partes do rosto que esta ocupa • Uso de formas de barba, já avulsas, já combinadas entre si • O que é projecto • Explicações etimológicas. Eu, como narrador glabro, não irei reflectir na metafísica da suíça, do bigode, da pêra e da mosca. Retenho o cavanhaque, não pela estética da pilosidade, mas por me lembrar o cognac. Quando me sentei aqui, não tinha qualquer intenção de falar de pêlos faciais, mas, faltando-me um espírito científico, deixei-me, como uma criança, arrastar pela associação de ideias, uma associação por contiguidade, para ser mais preciso. Nunca imaginei que o célebre Leite de Vasconcelos, nas suas investigações etnolinguísticas, se tivesse interessado por tal tema, mas o mundo é feito de surpresas, e eu sou um mestre em lugares-comuns.

domingo, 17 de dezembro de 2023

Motos e camelos

Sentei-me para escrever este texto e oiço um barulho na rua. Um desfile de motards passava pela Sá Carneiro. A maior parte vinha vestida de Pai Natal. Consta que faz parte da agenda cultural dos amantes das duas rodas esta celebração natalícia, ainda antes de Natal. Uma coisa fica provada. Existe evolução ao cimo deste pobre planeta. Houvesse, naqueles dias em que o Menino Jesus nasceu, o desenvolvimento tecnológico de hoje e os Reis Magos teriam chegado muito mais cedo. Em vez de camelos, vinham em potentes motos, isto para o caso de dispensarem os aviões e gostarem do ar a bater no rosto, e o dia de Reis poderia ser ainda antes do dia de Natal, como acontece com estes motards. Em vez de virem prestar tributo ao menino nascido, vinham partilhar as incertezas do parto, a expectativa que fosse um rapaz e que eles não se tivessem enganado ao seguir a estrela, que também andaria mais acelerada. Tenho, porém, de estar agradecido ao atraso tecnológico daqueles dias. Quando era criança, mas já estava submetido ao jugo da escolaridade, as férias de Natal iam até ao dia de Reis. Só a sete de Janeiro recomeçavam as aulas. Tudo acontecia sem pressa, com a lentidão de um camelo a atravessar o deserto. Olhando para trás, constato que havia alguma sabedoria naquele calendário escolar. Pelo menos, aprendi a ler, escrever e contar, sem ter que passar o dia inteiro na escola e ainda recebia o prémio de férias dilatadas, onde fantasiava a libertação dos deveres escolares. Talvez a solução para os problemas do ensino em Portugal, caso existam, seja a de substituir carros e motociclos por camelos, cavalos, mulas, machos e, acima de tudo, burros.  Essa lentidão recuperada permitirá aos corações e aos cérebros abrir-se à sapiência, sem as pressas ruidosas dos tempos modernos. Hoje acordei com a veia conservadora a latejar e dobro o meu espírito a essa sombra da tradição. Amanhã, terei tempo para ser moderno e trocar o camelo pelo automóvel, já que motos nunca me seduziram.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Trocas

Tem o número 000834 da biblioteca de um centro paroquial. Olhei para o número e pensei que seria grande a esperança de quem começou a catalogar os livros. Chegar às centenas de milhares seria um feito. O mais plausível é que quem carimbou aqueles algarismos, pois trata-se de um número carimbado, não tivesse meditado o suficiente nem em quantidades, nem em livros e muito menos em quantidades de livros. O destino dessa biblioteca paroquial foi o fim e os livros apareceram à venda. No site onde o comprei, havia informação de que estavam a esvaziar a sala onde se encontrava a biblioteca, pois era precisa para outras coisas. De facto, o espaço é pouco e talvez os livros sejam coisas que se dêem mal no espaço pertença de uma paróquia. O livro é composto por duas peças de teatro – A Muralha da China e Biedermann e os Incendiários – da autoria de Max Frisch. Há muito que não leio teatro. Não estou a dizer a verdade. Há uns meses li uma peça de Shakespeare, mas já não me lembro qual. Uma das portas que me permitiu entrar na literatura foi, todavia, o teatro. Sófocles e Sartre. O que li, então, exerceu forte influência sobre o meu pobre espírito de rapaz provinciano, mas não foi suficiente para me tornar um fiel leitor de peças teatrais. Recebi o livro há pouco, pois o centro paroquial é daqui perto e combinei ir lá buscar o livro. Pareceu-me uma paróquia muito dinâmica, mas imagino que pouco inclinada à leitura. Eu troquei o dinamismo pela leitura e não fiquei a ganhar, aposto.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Sextar

Estou dividido, embora a divisão seja superficial. Imagino que tenha sido no Brasil que a sexta-feira gerou o verbo sextar. Chegado a sexta-feira, alguém grita sextou! Não deixa de me divertir essa capacidade de reinventar o português que existe no Brasil. Por outro lado, não me ocorreria chegar a esta hora e gritar sextou! Em primeiro lugar, porque é desagradável andar a gritar por aí. Depois, porque temos obrigação de economizar nos pontos de exclamação. Por fim, porque há qualquer coisa de infantil na expressão. Como é hábito, a expressão começa a penetrar no léxico dos portugueses, que terão menos poder de imaginação para reinventar a língua e são mais sisudos do que os brasileiros. A conjugação destes dois factores faz com que, para sorrirmos, importemos a pilhéria do outro lado do oceano, tal como importámos o Carnaval, para que as raparigas despidas tremam de frio, enquanto expõem o corpo e fingem dançar o samba. Seja como for, chegámos ao crepúsculo desta sexta-feira, num momento em que o azul do céu se torna cinzento, para, depois, devir negro. Antes de chegar a casa, passei por um supermercado para comprar umas coisas que consta fazerem falta em casa. Acrescentei a isso duas garrafas de vinho, que não estando em falta, sempre animam o coração. Tinha já tudo acomodado quando descubro que deixara a carteira no carro. Ocorreu-me então que na pandemia se tinha desenvolvido o hábito de pagar por MBWay. Foi o que me salvou de ter de abandonar as compras e ir ao carro em busca do santo graal. Esta foi, felizmente, a coisa mais extraordinária que me aconteceu até agora, e assim espero que se mantenha. Não há nada pior do que as coisas extraordinárias. Às ordinárias sabemos como enfrentá-las, às extraordinárias, o fôlego já não é o que era. Estou a fazer horas para ir caminhar. Deixo que o fluxo do trânsito abrande, para não ter de respirar a fumarada que sai dos carros.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Especulações

Alguém diz Sem dúvida, o futuro será sombrio. Eu oiço o que é dito. Melhor, eu não oiço o que é dito, mas vejo o que está escrito. Talvez a pessoa que escreveu tal coisa não a diga. Imagino que nunca ninguém terá pensado nessa possível dissonância entre dizer e escrever. Imaginemos uma pessoa que, ao falar, diz certas coisas, mas que ao escrever se recusa a transpor por escrito as suas crenças orais. Quando escreve afirma coisas diferentes ou mesmo contraditórias. Todos tentamos unificar o ser que somos ao falar e aquele que somos ao escrever, mas será que somos o mesmo quando falamos e quando escrevemos? Imagine-se um académico. Quando faz uma conferência defende um certo ponto de vista sobre um dado assunto. Quando, porém, escreve um ensaio sobre esse mesmo assunto, propõe coisas radicalmente diferentes. A especulação desviou-me do tema que aqui me trazia. Como poderá alguém não ter dúvidas sobre a natureza sombria do futuro? O futuro, digo eu, não será sombrio, nem luminoso, nem negro. O futuro não existe, nunca existiu e nunca existirá, enquanto o tempo for aquilo que é. Eu nunca estarei no futuro, nem nunca estive no passado. Estive sempre no presente e, enquanto este se move, eu desloco-me com ele, que nunca me deixa abandoná-lo, e eu, por mais que tente, nunca consigo fugir-lhe. O resto são memórias e expectativas, mas nem uma coisa nem outra são tempo. Estas duas insanas especulações resultam de ter tido, malditas memórias, uns dias atribulados, preenchidos com tarefas que não contribuirão para a gesta que me há-de elevar à glória. Agora, essa casa de onde nunca saio, vejo um rosto feminino. Dos olhos abertos, deslizam duas lágrimas. A gravidade, todavia, é mais forte numa face do que na outra. Uma lágrima desliza mais rapidamente e aproxima-se já dos lábios. A outra parece parada sob a pálpebra. Eu fico a contemplar, numa revista, aquela estranha exposta numa fotografia a preto e branco. De súbito, encontrei nela uma inquietante semelhança com Eduína. Talvez os olhos abertos, talvez os lábios desejáveis, talvez a expressão de perplexidade, talvez o corte de cabelo. Se existisse passado, eu poderia dizer fui visitado pelo passado, mas não existe e eu não o digo.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Uma realidade disfuncional

Nem sei por onde começar. Há qualquer coisa que de disfuncional na realidade. Por exemplo, e começo por aí, o despudor com que ela se recusava, há pouco, a cumprir a previsão meteorológica. Para aqui, o site dava sol, ligeiramente encoberto por alguma nuvem passageira. Enquanto bebia café, consultava a previsão e via chover. Como pode a realidade, enganar-se deste modo, perguntava-me, não sem perplexidade. Demorou tempo até ela perceber o que lhe estava prescrito e deixar que o Sol brilhasse, apesar de algumas nuvens inconvenientes. Pior do que isso é o enigma do número 1949. Recebi há pouco um livro, Não Sou Stiller, um romance do escritor suíço Max Frisch. Um livro comprado num alfarrabista online. A tradução portuguesa, da saudosa Arcádia Editora, é da escritora Fernanda Botelho, e foi publicada em 1958. Ora, e aqui está o enigma, no canto superior direito das terceira e quinta páginas aparece um nome, um apelido grafado em maiúsculas, e debaixo dele o número 1949. Não faz sentido ser a referência ao ano da compra, pois a edição portuguesa só apareceu nove anos depois. Também não faz sentido que seja o ano de nascimento do comprador, pois é implausível que alguém de nove anos tivesse comprado aquele livro. Também não é referência ao ano da publicação original da obra, pois esta é de 1954. Folheio o livro à procura de pistas, mas não encontro nada. A única nota digna de atenção encontra-se no facto da página 181 estar dobrado no canto inferior direito, formando a dobra um triângulo rectângulo escaleno. Esta informação é interessante. O proprietário, eventualmente parou a leitura nessa página, não chegando a metade das 450 que compõem a obra. Um primeiro traço emerge, era pouco persistente. Também é claro que, apesar disso, procurava distinguir-se, pois a norma para dobrar as páginas é usar um canto superior e não inferior. Isso é confirmado pela forma como escreveu o apelido, todo em maiúsculas. Se fosse amante da harmonia e da proporção teria dobrado a folha em forma de triângulo equilátero, mas não. Repugnar-lhe-ia o princípio da igualdade e optou pela total diferenciação e o desequilíbrio. Certamente, alguém que gostaria de se armar em importante, dirá um espírito mais impiedoso que o meu. Com tudo o que se sabe do proprietário, ainda nada sei do número 1949. Como se vê a realidade não apenas é disfuncional, como resiste a que a compreendamos. Derrotado, desdobro a página e fecho o livro. Coloco-o na pilha de livros a ler e vou apanhar Sol.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Melancolia cantabile

Já não tenho idade para estas coisas, pensei. Logo, porém, me arrependi do pensamento, pois é agora que começo a ter idade para frequentar com assiduidade consultórios médicos e enfrentar a estranha forma como os médicos lidam com o tempo, bem como com a sua inultrapassável incapacidade para perceberem a palavra pontualidade. Setenta e cinco minutos após a hora marcada entrei para consulta. É evidente que poderia ser pior. Cento e cinquenta minutos seria bem mais desagradável. Depois, fui recebido com um pedido de desculpas. O problema é que estes pedidos de desculpa são meramente protocolares, fazem parte do business as usual. Passada essa provação, o meu dia foi assediado pela chuva e pelo cinzento que deslizou do céu e se incrustou por ruas e avenidas, tingindo o casario de uma melancolia quase cantabile. Ao passear pela rua, pensei no húmus. Que excelente húmus dariam estas folhas mortas que inundam os espaços da cidade. Não faço ideia a razão que me trouxe a esta constatação agrícola, logo eu que não tenho qualquer inclinação para a vida no campo. Elevo o pensamento aos céus e, em ânsia, peço uma noite sem chuva, que me permita caminhar. Preciso de coleccionar pontos cardio e de evitar comparações melindrosas entre o peso que tenho e aquele que deveria ter. Disfarço bem a discrepância, mas que ela existe, existe. Vou jantar. Talvez o melhor é fazer jejum, mas não estamos na Quaresma. E mesmo nesta já ninguém jejua.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Uma questão de adequação

Distraí-me e entalei um dedo no quebra-nozes. Foi o segundo incidente no espaço de minutos. O primeiro foi a recusa do dito quebra-nozes em quebrar uma noz. Aliás, um fruto pequeno, quase miserável, mas de casca resistente. Teve de ser subjugada à martelada, não com um martelo. Usei o próprio quebra-nozes, agora em função de martelo. Talvez o instrumento se tenha sentido humilhado pelo uso contra-natura e, vendo-me distraído, abocanhou-me um dedo. Faz parte da ingenuidade dos seres humanos despir os objectos materiais de vontade. Não me parece plausível a ideia de lhes negar um querer, pois eles querem muitas vezes aquilo que nós não queremos e submetem-nos ao querer deles. Imaginemos um carro que se recusa a trabalhar, enquanto nós, os seus proprietários zelosos, estamos cheios de pressa para um compromisso inadiável ou para o encontro da nossa vida. Isto não é um querer? Claro que a inocência humana designa por avaria aquilo que é um acto da vontade e, para mais se iludir, julga o caso como um acidente mecânico ou electrónico, ou qualquer outra coisa que desculpe a maldade do dispositivo. Não consigo compreender o alvoroço que anda aí por causa de podermos vir a ser dominados pela inteligência artificial ou por robôs. Se já somos dominados pelas máquinas a que não atribuímos nem inteligência nem vontade, o que poderemos esperar de dispositivos a quem demos inteligência e mesmo vontade? Retornando ao caso do quebra-nozes, tenho de considerar que foi benévolo comigo, apesar da maldade que lhe vejo no rosto. O dedo não sofreu grande coisa, mas imagino que foi um aviso. Da próxima vez que quiser martelar uma noz renitente vou buscar um martelo. É uma questão de adequação entre o objecto e a finalidade.

domingo, 10 de dezembro de 2023

Na aldeia

Depois de uma viagem ao mundo colonial trazido por Joaquim Paço d’Arcos, entretenho agora as insónias com uma viagem por Madona, de Natália Correia, uma visita – pelo menos de início – ao mundo alternativo da parisiense rive gauche, no pós-segunda guerra mundial, onde, supostamente, Sartre oficiava um culto a não se sabe bem o quê, e no qual alguns portugueses se tingiam de modernidade, que haveria de ser usada na pátria para encontrar distinção e sublinhar a boçalidade daqueles que o acaso ou as possibilidades não conduziram à capital francesa. Não será improvável, tendo em conta o que já li no romance, cerca de um quarto, que tudo acabe em querelas domésticas, passadas na província, num mundo onde ninguém ouviu falar de Sartre e da rive gauche, nem de náuseas, ou sequer do velho spleen baudelairiano, bem anterior à náusea existencial. Em novo, por certo, eu terei cultuado esses heróis de outras gerações que viveram esses anos de perdição. Hoje, porém, dou graças por a vida ter-me poupado a esses destemperos e a ilusões que só poderiam lembrar ao génio maligno do senhor René Descartes. Apesar de velho, nasci demasiado tarde para poder imaginar sequer a minha pessoa a deambular pelas caves, onde o jazz se europeizava. Sento-me, em silêncio, e vejo correr o rio da minha aldeia, que não é aldeia, mas uma cidade que parece uma aldeia. E nisso está toda a minha felicidade, enquanto leio os poemas de Alberto Caeiro e vejo neles toda a verdade deste mundo, mesmo que seja apenas a verdade desta hora de domingo em que escrevo isto.

sábado, 9 de dezembro de 2023

O que me vale

Caminhar na capital não é das coisas mais suaves. Subir e descer, descer e subir. Enquanto se desce, as coisas não estão mal, mas tudo tem um preço e a cada descida corresponde uma subida. Talvez não seja muito sensato fazer pontos cardio num sítio como este, a não ser que se vá para a margem do rio, onde tudo é mais plano, o que não estava nas minhas intenções. Para recuperar as calorias perdidas, perdi-me num restaurante perto do Museu Nacional de Arte Antiga, onde são oferecidos – isto é um eufemismo, claro – pratos dos sítios por onde os portugueses andaram. Escolhi uma visita ao Brasil e não me arrependi. Depois, retornei à caminhada. Chegado a casa, em vez de ir ao cinema, como tinha pensado, sentei-me e fiquei a ver um jogo de rugby da Taça dos Campeões. Não me perguntem quais eram as equipas. Uma era irlandesa, a outra inglesa. O jogo foi interessante, apesar de ter adormecido uns minutos depois do intervalo. Contudo, adormecer diante de ecrãs e monitores tornou-se uma das minhas especialidades. A gesta de que sou o protagonista está cheia de grandes actos libertadores do mundo. É nessa categoria que se devem colocar os adormecimentos diante da televisão ou do computador, onde o meu ser ensonado vence o obstáculo do estado de vigília. O Outono declina a olhos vistos, o solstício de Inverno está a uma distância de menos de duas semanas. Não tarda é noite de Natal e um novo ano perfila-se já bem dentro do horizonte. Hoje é daqueles dias, que não são poucos, em que nada tenho para dizer. Vale-me o ser capaz de inventar qualquer coisa em cima da hora.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Agora

Neste momento, onde me encontro, tenho um único livro em papel à mão. Não é um livro recomendável, nem o é o seu autor. O livro compila um discurso de 4 de Janeiro de 1849 e a troca de correspondência entre o autor e o Conde de Montalembert. No início do discurso, depois do protocolar Meus Senhores e de mais umas quantas frases, referindo-se a um discurso anterior que seria o epílogo de um outro epílogo, e este era o epílogo de todos os equívocos que foram inventados durante os últimos três séculos e que trazem inquietadas quase todas as sociedades humanas de hoje. Este tipo de crença é extraordinário, pois supõe que antes destes três últimos séculos não se tinham inventado de maneira sistemática equívocos, além de supor que as sociedades anteriores teriam menos razões de inquietação. Tudo isto faz parte do combate político no congresso espanhol de então, coisa que não me interessa. Todavia há uma prova da incapacidade humana para olhar o passado, imaginando-o um tempo superior ao presente, mesmo que o presente já tenha três séculos. Todas as inquietações que eu vivo, mesmo sendo apenas um narrador, isto é, uma figura literária, todas as inquietações que eu vivo, repito, são presentes, pois não nos foi dada a capacidade de viver as inquietações de um passado onde não existíamos. A este tipo de crenças chamam-se involucionistas. Crêem, consciente ou inconscientemente, que o início da vida do homem na Terra foi esplendoroso, vivia-se na idade do ouro, e que a partir desse momento tudo se foi degradando, foi involuindo. Tanto aqueles que vêem no passado a sua casa, como os que a vêem no futuro, têm um problema com a sua própria existência, pois esta apenas se dá no presente. A idade do ouro ou a idade de ferro apenas existem no presente, pois não há outro tempo que possamos habitar. Ninguém vive no passado ou no futuro, vive no agora. O resto são suposições fundadas na memória ficcional e na expectativa também ela ficcional. E agora é de noite.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Ensaio sobre a noite

Há muito que não via anoitecer na capital, não numa dessas capitais do tremoço, da castanha pilada, do rabanete ou do chouriço, as quais abundam por esse país, onde não há lugarejo que não seja capital de alguma coisa, mas na capital verdadeira, aquela que foi capital de um império e agora é a de um país que, na ponta mais ocidental da Europa, parece precipitar-se para o oceano. O problema do anoitecer numa capital é que os prédios se interpõem entre o observador e o céu de onde cai a noite. Uma pessoa é surpreendida. Na província, numa província plenamente provinciana, o cair da noite oferece-se ao olhar contemplativo daquele que a espera. Não entra furtiva pela casa dentro, como um ladrão que viesse roubar a luz dos nossos olhos, mas como um convidado que se faz anunciar atempadamente, dando-nos tempo para o esperar e lhe dar as boas-vindas. Isto significa que a mesma noite não é idêntica no seu ser moral. Nas grandes cidades, ela não passa de uma entidade delituosa, enquanto na província é um anjo benfazejo. Onde estou, existem três cães. São cães citadinos, daqueles que são passeados à trela pelas ruas. Mantemos uma relação de justa distância, eles no seu território e eu no meu. Eles esboçam para mim um pedido de amizade, mas apenas lhes prometo que não seremos inimigos. O pior é que ressonam, talvez julguem que a noite é toda ela para dormir, eles que nunca pensaram sobre a noite, nem sabem distinguir a capital da província.