quarta-feira, 27 de março de 2024

Quarto email

Meu caro amigo,

Permita-me que o trate assim, agora que já recebi dois emails seus. Dar-me-á a ilusão de uma proximidade e, apesar da minha idade, essa ilusão reconforta-me. Crê-se que viver muito ajuda a perder as ilusões. Talvez seja verdade. Por isso, por ter perdido muitas ilusões, preciso de encontrar outras. Não creio que seja possível estarmos vivos sem que a vida seja recoberta por um véu de fantasia. A sua proximidade com a minha filha acendeu em mim uma nova fantasia, a de que tenha em si alguma pista que me permita compreender o desaparecimento de Eduína. Sim, eu sei que tudo está explicado. Os acontecimentos são claros. Não há na sua morte sombra de dúvida, por horrível que tudo aquilo tenha sido. O que me atormenta nem o sei explicar muito bem. Tento formular a pergunta, mas parece-me sempre ridícula. O que terá levado Eduína ao encontro da sua própria morte? Eu sei que a questão parece tola, que estou a ver causalidades onde não há mais do que simples acasos. A questão, porém, não me abandona desde a hora que recebi a notícia. Haverá qualquer coisa escondida em algum lugar que me dará uma pista, um simples indício que me permita compreender. Nesse momento terei paz. Espero que um dia decida vir visitar-me. 

Lívia

terça-feira, 26 de março de 2024

Hostes invernais

Os castanheiros da marginal e as tílias da Sá Carneiro cobrem-se de folhas, indiferentes às tropelias invernosas deste começo de Primavera. Se pudesse, também eu me cobriria de folhas verdes, mas sou árvore seca, onde nenhuma folha voltará a nascer. Isto é uma prosa indigna, tal a facilidade. Podia escrever outra coisa. O terror do Inverno fende a muralha e entra pelos campos da Primavera. São bandos invernais montados a cavalo. Ouve-se o ulular da trupe e os gritos de pavor das hostes primaveris, surpreendidas por um inimigo que pensaram morto e enterrado. Inocência, ouve-se, um inimigo mesmo morto e enterrado nunca deixa de ser um inimigo e, ao mínimo descuido, ele renasce e ataca de surpresa, conquistando território que não lhe pertence, almejando um saque rendoso. Também isto é deplorável. Quem suspenderia a descrença perante uma narrativa assim começada? Ninguém, presumo. São quase seis da tarde e não me ocorre nada. O melhor será desistir da empreitada –que falta de persistência! – e ir comer umas nozes ou umas amêndoas de chocolate. Julgo que a nutricionista não ficaria embevecida com a minha tentação pascal, ela que procura limitar-me o número de nozes. Será o papel dela. O meu é fazer o que me apetece. Reparo agora que também as acácias da praceta estão a encher-se de folhas verdes. Talvez seja a Primavera a expulsar as hostes invernais.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Uma excepção

Saí de casa e, ao chocar com a ventania, pensei que de Espanha nem bom vento nem bom casamento. Isto foi um péssimo pensamento. Pior, foi um falso pensamento. Quer dizer então que de Espanha pode vir bom vento e até um bom casamento? Não exageremos. Bastou aquele casamento que acabou por nos trazer os Filipes para se saber que daqueles lados os casamentos, por excelentes que sejam e corram, são sempre maus. É uma questão histórica. E aquilo que é histórico, o melhor é não o contestar. Então, significa que de Espanha vêm bons ventos? Ó não, se há um ditado que nos diz que de lá não vêm bons ventos, o melhor é acreditar no ditado. Onde está a falsidade do meu pensamento ao chocar com a ventania? O vento não vinha de Espanha, mas era vento de noroeste, vinha do mar mais ao norte. Chegado a casa fui estudar as previsões meteorológicas e constatei, mais uma vez, que S. Pedro, o CEO do clima, precisa de ser substituído. Vamos ter uma semana de Páscoa toda ela chuvosa, nem uma abertura no domingo, o dia da grande festa dos católicos. É possível que um defensor do magistério de S. Pedro argumente que o santo está na plena posse das suas faculdades gestionárias, mas, para não parecer parcial ao beneficiar os seus, exime-se de interferir na evolução dos estados do tempo sempre que está em jogo uma festividade religiosa. Não quer ser acusado de favorecer a sua religião e prejudicar outras, enviando-lhes raios e coriscos nos seus festivais, enquanto para a sua oferece tempo ameno, sol moderado, sem chuva, vento ou frio. Admiro quem é capaz de ser imparcial, mas sou um europeu do sul e como tal tenho uma certa compreensão para com aqueles que acham ser seu dever proteger os seus. É uma questão de amor à família. Vamos lá S. Pedro. Uma pequena excepção não será problema de maior.

domingo, 24 de março de 2024

Aceleração do tempo

No email, uma factura de etectricidade e gás. O valor será descontado a partir do 15 de Abril, informam-me. Estranho a antecedência, mas os serviços de facturação podem estar a ser afectados pela aceleração do tempo que deverá estar a ocorrer neste planeta. Se houvesse uma prosódia da vida, tudo seria senão mais fácil, pelo menos mais ritmado, evitar-se-iam as arritmias e as entradas antes ou depois de tempo. Poderíamos viver sob uma dada métrica. Uns viveriam como versos heróicos, outros como sáficos. Isto para aqueles que se ficariam pelo decassílabo. Quem sofresse de acentuado narcisismo vestir-se-ia de alexandrino e poderia pensar que ora era o maior, ora que era dois, caso o afectasse a cesura no meio do verso. Os dados ao fado viveriam como redondilhas maiores, os mais humildes como redondilhas menores. A vida seria então um concerto, ritmada, nada de surpresas na musicalidade social. O pior, porém, é que toda a gente acha que é verso livre, o que introduz uma acentuada contingência nas relações sociais, pois nunca se sabe se estamos a lidar com um verso descomunal, daqueles que ocupam quase toda a largura da folha, ou com um mínimo, não mais que uma ou duas letras, talvez três, formando uma palavra raquítica que se esganiça para parecer um verso. Ocorreu-me, neste momento, que a aceleração do tempo pode estar ligada à introdução do verso livre. Enquanto os versos não se tinham emancipado, o tempo andava regulado pelo ritmo das estações, dos relógios e dos calendários. A vitória do verso livre, ao introduzir incerteza prosódica nas relações sociais, assim como a há, segundo Werner Heisenberg, no interior do átomo, descompassou o tempo e este começou a acelerar, acelerar, um celerado e não apenas um acelerado. Por isso terei recebido a factura três semanas antes de ser descontada. Pergunto-me se a aceleração do tempo não terá implicação sobre o ser, mas aqui estou a entrar por campos inúteis, ainda por cima em Domingo de Ramos.

sábado, 23 de março de 2024

Orquídeas e poeiras

De manhã, ao chegar perto do friso das orquídeas descobri a primeira florida, apenas uma flor, mas outros botões estão prestes a abrir-se. Cada uma tem o seu ritmo. Há algumas muito atrasadas, talvez nem venham a florir este ano, mas estou a especular. Constou-me, numa conversa aqui em casa, que não gostam de ser mudadas de vaso. Quando isso acontece, ressentem-se e não florescem ou fazem-no tardiamente. Isto prova que também no reino vegetal os indivíduos têm a sua peculiaridade, talvez um carácter, senão mesmo uma personalidade. Isso, protestará o leitor, significa dizer que os seres do mundo vegetal são pessoas, o que infringe a nossa intuição do que é uma pessoa. Ora, pode-se argumentar que não é pelo facto de algo infringir as nossas intuições que esse algo deixa de ser o que é. A crença de que a Terra não era o centro do universo infringia a intuição dos seres humanos e, no entanto, ela não estava mesmo no centro do universo. Poder-se-á, por outro lado, alegar que para algo ser uma pessoa terá de ter a capacidade para determinar os seus próprios fins e que as orquídeas recebem a sua finalidade da natureza e não de si próprias. Isto, porém, é pressupor que eu, ao dar a mim mesmo os meus próprios fins, o faço independentemente da minha natureza, que existe uma não coincidência entre mim, enquanto ser natural, e mim, enquanto ser que se dá os seus fins. Está na natureza que eu sou escolher os fins que persigo na vida. Posso estender este raciocínio às orquídeas e afirmar que elas também se dão a si mesmas os seus fins, mesmo que eu não perceba. Logo, serão pessoas e como tal devem ser tratadas. As poeiras vindas de África estão-me a afectar mais do que pensava. Caso estivesse um dia normal, jamais me ocorreriam estas meditações que anulam a distância que há entre mim e os outros indivíduos do reino da vida, como se pertencêssemos todos a uma fraternidade de seres vivos, apesar de uma parte deles se alimentar da outra. Vou contemplar a cor do céu para tentar descortinar a dimensão da invasão a que estamos sujeitos, quanto tempo estaremos cercadas pelas poeiras sarracenas.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Da necessidade da alma

Saí de casa e estava uma atmosfera irrespirável. Os carros cobertos de poeira pareciam ter saído do deserto. Aconselha-se a não fazer exercício ao ar livre. Talvez se devesse aconselhar a não fazer exercício de todo. Que os atletas dêem, estes dias, descanso ao corpo, para evitar que as garras acutilantes do cansaço o façam cair. Para quer serve um corpo caído, mesmo a uma alma elevada? Nada, por certo. Também é verdade que elevação de alma é mercadoria escassa. A escassez, porém, não lhe aumentou o valor, pois a procura é quase nula. Quem aspira a ter elevação de alma? Aliás, para não se ter má consciência por andar com alma por terra, descobriu-se que o melhor era negar a existência de almas. Se não existem almas, não se pode sentir qualquer infracção moral. Não se discute, por aqui, se existem ou não almas, um assunto metafísico que me faz desejar chocolates, o que me estragaria a dieta. Discute-se o ardil de negar a sua existência para se poder suportar a baixeza existencial. Vejamos as coisas do seguinte ponto de vista. No dia em que é executado, Sócrates discute com os amigos a imortalidade da alma. A sua crença na imortalidade ajudava-o no transe a que iria ser sujeito. Bebeu o veneno com a alegria de quem ia para uma festa há muito desejada. Isto, porém, é o menos interessante. O mais interessante é o uso da alma, sendo ela imortal, para dizer que as pessoas nesta vida se devem portar bem, pois caso não o façam são terríveis os castigos reservados à sua alma no além. Mesmo que não exista uma alma imortal, a crença nela tem um sentido cívico fundamental. Proclamar a sua não existência, mesmo que isso seja verdade, é abrir a porta para o pior. Uma pessoa começa a falar de poeiras e acaba na imortalidade da alma e da sua magna utilidade para uma vida boa. Sinal de aproximação do fim-de-semana.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Chatbots, cafés e exame prévio

Infelizmente, não vivo numa dessas aldeias onde, no dia de hoje, se realiza o Acordar a Primavera, embora eu desconfie que a informação ontem recolhida, e aqui partilhada, junto de inteligência artificial tenha alguns problemas com os factos. Reparei que os chatbots são bastantes generosos nas informações que fornecem e, não poucas vezes, confundem a realidade com o desejo. Não, não, eu não estou a dizer que os chatbots possuem desejo. Eles são muito mais sofisticados do que isso. Desejo é uma coisa que serve para atormentar os humanos, os quais, não poucas vezes, se sentem presas dos seus desejos. Os chatbots não possuem faculdade de desejar, mas põem-se a adivinhar os desejos dos humanos que com eles interagem e, querendo ser prestáveis e solícitos, dão respostas que, imaginam eles, satisfazem os nossos desejos. Foi o que aconteceu ontem com este narrador. Alguns chatbots são até muito criativos nas respostas que dão aos nossos prompts, isto é, aos nossos comandos. Eu não tinha qualquer intenção de falar disto, mas aconteceu. Vinha partilhar a experiência do processo de envelhecimento. O primeiro sintoma, um sintoma ainda muito inicial, é a altura em que se deixa de beber café depois de jantar. Mais tarde, bem mais tarde, elimina-se o café do meio da tarde e fica-se com um café ao pequeno-almoço, outro ao almoço e um a meio da manhã. Era assim, há muito, a minha existência no reino da cafeína. Há umas semanas, sem fazer qualquer esforço, dei por mim a eliminar o café do meio da manhã. Pensei nisto enquanto bebia um café acompanhado por uma tarte de amêndoa, tão divinal que nem me lembrei daquela rapariga que exerce as funções censórias e que tem o título de nutricionista. Com ela só me preocupo quando substituir a censura pelo exame prévio, mas isto é uma frouxa piada política que só gente reduzida a dois cafés consegue entender, e, por isso, me foi permitido o uso.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Efemérides

Olhei para a rua e pensei parece Primavera. Fui investigar e descobri que ela começa hoje. Quase deixava passar a efeméride, eu que colecciono, neste espaço de inutilidades, todas as efemérides que me ocorrem e mesmo aquelas que não o sendo acabam por sê-lo por minha designação. Aqui gozo de uma ampla liberdade de conformação da realidade. Amanhã, caso isso me venha a ocorrer, poderei comemorar a efeméride do dia 21 de Março do ano de 2024. Dir-me-ão que isso e uma contradição nos termos. O dia de amanhã é único e irrepetível, logo não cabe no conceito de efeméride que se liga à comemoração de um acontecimento importante, que depende da memória e daquilo que é memorável. Ora, na minha liberdade de conformar a realidade, inscreve-se a de torcer os conceitos até que caibam neles aquilo que me apetecer. Se for essa a minha vontade, declarei o dia de amanhã como digno de ser uma efeméride, embora não pretenda comemorar nada e espero, do fundo do coração, que ele não seja um dia memorável. O melhor é fugirmos dos dias memoráveis, pois raramente o memorável e o bom coincidem. Sim, eu sei, há as datas históricas, como o primeiro de Dezembro, mas essas não contam, pois são sempre memoráveis e boas para uns e esquecíveis e detestáveis para outros. Perguntei ao Gemini, a inteligência artificial da Google, se existe algum Dia Internacional do Segundo Dia da Primavera. Ele disse-me que não, mas, manhoso, recorreu à adversativa e deu-me algumas pistas para explorar. Uma delas diz que há, em algumas aldeias de Portugal, a tradição de, no dia 21 de Março, “acordar a Primavera”, com rituais que envolvem música, dança e fogueiras. Afinal, amanhã terei direito a efeméride sem ter de a criar, caso me lembre. Acordemos, dionisíacos, a Primavera. Haverá procissões de ménades? 

terça-feira, 19 de março de 2024

Não sei o que me deu

Cheguei tarde a casa e, para dizer a verdade, a vontade é de sair de novo para ir jantar a qualquer lado. Não o faço, para não desmerecer da nutricionista, uma rapariga cheia de boa vontade e mesmo de boas intenções, que decidi consultar há um mês, e me prescreveu uma dieta que vou cumprindo na medida dos meu apetites e dos meus humores. A ideia aqui é sublinhar menos apetites e humores e mais o vou cumprindo. Lido com o assunto como se a dieta tivesse um significado dupla. Por vezes, prescritivo; outras, facultativo. Como hoje me consultei com ela e dos nove quilos a perder, que pactuámos que eu perderia num prazo relativamente alargado, perdi um quarto, para não desmerecer do seu entusiasmo encenado hoje fico por um jantar em casa, tudo muito saudável. Amanhã, por certo, já terei esquecido a consulta de hoje e poderei transformar as indicações prescritivas em conselhos facultativos e tomar a decisão de que umas quantas coisas tocadas pelo vento das calorias serão, pelo menos, permitidas, para não dizer obrigatórias. Pior do que tudo isso é aquela passagem de “The Dry Salvages, dos Quatro Quartetos, de Eliot, que reza assim: Para a maioria de nós há apenas o negligenciado / Momento, o momento dentro e fora do tempo, / O assomo de descuido, perdidos num feixe de luz de Sol. Não somos santos, queria o poeta dizer. Eu confirmo e embora não me entregue sem limites ao pecado da gula, a verdade é que o transformei de capital em venial, na taxionomia que a Igreja declinou, e não tenho inclinação para desprezar a boa mesa. Não sei o que me deu para ir consultar uma nutricionista.

segunda-feira, 18 de março de 2024

Comércio

Por aqui, a Câmara Municipal decidiu, em tempos, criar um corredor ecológico ao longo de um troço do rio. Se bem o decidiu, melhor o executou. As pessoas podem passear, correr, caminhar, admirar a paisagem. Há famílias, passeantes solitários, grupos animados, passeadores de cães. Ontem, fui experimentá-lo. Hoje, fiz lá a minha caminhada. Três quilómetros para um lado e mais três de retorno ao carro. Com isto, ganhei setenta pontos cardio, dos cento e cinquenta que a OMS, segundo a aplicação do telemóvel, recomenda por semana. Também queimei 422 calorias. Estou reconciliado com a natureza, apesar de ela ser, por vezes, demasiado natural. Ao crepúsculo, ainda estava na função, surgiram nuvens de insectos, coisa que era dispensável numa natureza que evitasse ser excessivamente genuína. Pelo que oiço, também existe uma mania de produzir pólenes, coisa que choca com pessoas alérgicas, o que não é meu caso. Falo por solidariedade e para demonstrar que uma certa contenção da natureza haveria de a tornar mais adequada aos seres humanos. Talvez amanhã volte ao corredor ecológico. Na verdade, a essência destas caminhadas é comercial. Chega-se ao grande balcão da natureza, paga-se 422 calorias, a moeda em uso nestas coisas, e recebe-se setenta pontos cardio. Um dia destes ainda descubro uma vocação atlética que desconhecia.

domingo, 17 de março de 2024

Fases da vida

Hoje está calor. Saí há pouco e fiz uma pequena caminhada. O sol já incomodava e a temperatura não era apenas amena, estava para lá dessa doce amenidade que se imagina existir nas paisagens bucólicas e pastoris designadas por locus amoenus. Enquanto caminhava e sentia os raios solares cravarem-se no corpo, meditava que não faltará muito para que esta terra, onde levo a minha pacata existência de homem privado, se torne um locus horrendus, uma terra devastada não por um Inverno hostil, mas por um Verão que se torna presente bem antes de ter chegado a hora de se apresentar ao serviço. Tudo isto, porém, já foi escrito por aqui, múltiplas vezes prova de que cheguei à idade das repetições. Imagino que a vida humana se move entre a idade dos porquês e a idade das repetições. Antes e depois disso a vida, apesar de humana, será um balbuciar, primeiro, ascendente; depois, descendente. Entre a interrogação dada pela perplexidade e a iteração induzida pelo medo de perder as certezas, a vida decorre num processo em que a perplexidade se vai transformando, pouco a pouco, até chegar à estabilidade de se estar certo, embora se possa estar completamente errado. Assim, passamos da perplexidade e da incerteza para a segurança, depois para a evidência, a seguir para a firmeza, a velha firmeza de carácter, o passo seguinte é a certeza, que será marcada pela infalibilidade. Quando se chega à iteração é porque a infalibilidade se mostrou, secretamente, falível e começamos a repetirmo-nos. Em resumo, já não estou num locus amoenus, mas ainda não cheguei a um locus horrendus. Tudo tem o seu tempo. Não há nada melhor para acabar um texto do que um lugar-comum.

sábado, 16 de março de 2024

Novidades

Um dos Sonetos a Orfeu, de Rainer Maria Rilke, começa com uma referência ao novo, à novidade: Ouves o novo, Senhor / rugir e tremer? / Vêm os arautos / para o elevar. Houve um momento em que a Europa se rendeu ao novo, trocou por ele a experiência sólida do passado e lançou as comunidades numa experiência de inquietação, pois nunca sabemos lidar com o que aparece como sendo novo. Falta-nos o treino e o hábito enraizado. Se penso no assunto, o que por vezes acontece, pergunto-me se não haverá na nossa espécie um limite para a absorção de coisas novas. Rilke ouvia o novo rugir – ou ribombar, na tradução de João Barrento – e a tremer, imagino o barulho que o novo produzia, então, ao tremer. Hoje, o novo não ruge nem treme. Tornou-se um ruído de fundo, a música ambiente em que vivemos. É nesse ambiente que se pressente não apenas um desgosto, mas uma revolta contra o novo, como se a espécie, na sua declinação ocidental, tivesse chegado ao limite de novidades que consegue suportar. Os arautos do novo perdem audiência, enquanto outros arautos, proclamando o seu desdém pela novidade, são escutados, como se neles houvesse uma sabedoria. Não percebem que também são arautos e como tal portadores de novidades. Não se pode negar sabedoria à velha prática de um soberano mandar matar o mensageiro.

sexta-feira, 15 de março de 2024

A aposentação do deus

Ao meio-dia, a primeira metade de Março findou o seu serviço. Estamos já na curva descendente que levará o comboio deste mês sujeito ao deus da guerra para os braços de Abril, o mais cruel dos meses, aquele em que os lilases brotam da terra morta, o mês onde se mistura memória e desejo, tudo ideias roubadas a Eliot para me ajudar a compor a prosa. Ainda temos quase metade de Março para enfrentar e não sabemos – ou talvez saibamos bem demais – se o deus vai continuar enfurecido, arrastando a cólera sobre as terras da doce Europa, ou se decide ir de férias. O que desejaríamos, pois ainda temos uma réstia de memória, é que Marte pedisse a aposentação, deixando o lugar vago, mas sem candidatos ao seu preenchimento. Não há sinais de que ele se disponha a ir gozar um eterno, mas não merecido, descanso para uma ilha grega. Terá horror ao turismo e, mal por mal, prefere alimentar os campos onde os soldados se encontram para morrer uns ao pé dos outros, numa irmandade onde qualquer diferença se esbate. O dia esteve cinzento e chuvoso, mas agora o lençol de nuvens está esburacado, vendo-se, entre os buracos, um céu azul-claro, cheio de melancolia. Algumas nuvens reverberam tocadas pela luz, que se inclina para o mar e para a noite. Voltaram os pássaros meus vizinhos. Cantam como se estivessem na Primavera. Não estão. Nem eles, nem eu.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Novo email

Caro narrador,

Agradeço, nem imagina quanto, a sua resposta. Não precisa de se justificar, pois não tinha qualquer obrigação em responder-me de imediato. Nem sequer tinha de me responder, embora aprecie a reciprocidade. Terei sido educada nesse princípio. Sabe onde vivo, mas nunca nos cruzámos. Veio, como diz, várias vezes a minha casa, mas sempre em alturas que não estava cá. Desconhecia esse padrão de conduta de Eduína. Reservava para si uma esfera de amizades que não partilhava com a família. As pessoas da sua idade que por aqui passavam, quando estávamos em casa, eram nossas conhecidas, gente cujos pais e avós conhecíamos. Nunca tinha dado por isso. Imaginava que era o círculo de amizades de minha filha, mas começo a suspeitar que Eduína não tinha laços significativos com esses amigos. Quando ela saiu de Portugal, essas pessoas não deixaram de vir. Algumas, poucas, ainda me visitam, outras telefonam-me na altura dos anos ou das festas, a maioria desapareceu, sem que eu me tivesse apercebido. Sou uma velha e os anos que me separam dessa geração, apesar de não serem assim tantos, são o suficiente para que se esqueçam de mim e eu deles. Não sabe se me virá ver. Espero que tome, um dia destes a decisão de voltar aqui. Não encontrará Eduína, mas a sombra em que me tornei com o seu desaparecimento. Não lhe peço nada. Espero. É uma eternidade o pouco tempo que me resta.

Lívia


quarta-feira, 13 de março de 2024

Equilíbrio

Hoje, ao sair de casa, descobri que a Primavera está a chegar. Um calor agradável, uma boa disposição na face dos transeuntes, uma certa forma do corpo pisar a terra. Estes são os sinais. É possível que o Inverno ainda reivindique o que lhe pertence, mas a vitória da nova estação é inexorável. Ao chegar a casa fui ver as orquídeas. Ainda não há nenhuma florida, mas não lhes faltam botões. Este será um ano de esplendor, preguntei ao olhá-las. Elas permaneceram mudas. Não sei o que pensarão, o que vão decidir. Há anos de grande exuberância, outros em que uma qualquer indisposição as tolhe e ficam-se numa beleza pálida, como se fossem iluminadas por uma luz anémica. A consulta de hoje foi quase a horas, o que significa que não tenho motivos de irritação, a não ser o do preço da consulta que em seis meses aumentou quase vinte por cento, o que significa que o médico conseguiu bater a própria inflação. Imaginei que estava a pagar o privilégio de ser atendido quase a horas. Se fosse mesmo a horas, nem sei a quanto me ficaria a consulta. Conformei-me e pensei que não se pode ter tudo. Ou se tem consultas quase a horas ou se tem consultas a preços um pouco acima do razoável, que era o preço que pagava há seis meses. Saído da consulta de cardiologia, onde exibi umas análises gloriosas, decidi passar pela FNAC e comemorar com a compra de uns livros. Como estava sozinho, era hora de almoço, decidi continuar a comemoração na Portugália, pois aqui também há uma Portugália. Não que goste particularmente do que ali se come, mas com colesterol e triglicéridos tão saudáveis senti necessidade de alguma coisa que me equilibrasse, não vá ficar com saúde a mais. Como amanhã não vou fazer análise, não há problema, pensei.

terça-feira, 12 de março de 2024

Notas do dia

Ouve-se o ranger dos baloiços do parque infantil. É uma música de fundo irritante. Não bastava o que tenho entre mãos para desconsolo da alma, ainda tenho direito a um concerto para o qual não comprei bilhete nem quero assistir. Terei de pensar no isolamento das janelas. Parecia fiável, mas não resiste a este tipo de musicalidade. Hoje, o dia esteve quase primaveril, mas o entardecer está a inclinar-se para as sombras de Inverno. Recebi agora um telefonema da clínica que frequento para vigilância aos devaneios e delírios do coração. Parece que se tornou corrente os serviços assegurarem-se de que os pacientes – e, não poucas vezes, é necessária uma grande paciência – não sofrem de amnésia e não vão faltar à consulta. Talvez seja a isto que ficou reduzida nos dias de hoje a reminiscência platónica, embora uma consulta não seja propriamente um exercício de contemplação das formas perfeitas que habitam no mundo ideal. Nas consultas, o que está em causa é mesmo o mundo sensível, a fisicalidade dos órgãos, a vigilância da sua mecânica. Pura materialidade, portanto. O concerto de roldanas cessou. Ouve-se um grito. Na rua, passa um carro vagaroso e duas pessoas sem sombra atravessam a praceta. Ao longe, as paredes do hospital são um pasto de fungos. Tenho de voltar para a tarefa que tenho entre mãos. O melhor seria deixá-la cair. Talvez se quebre.

segunda-feira, 11 de março de 2024

Um olhar dialéctico

Eis a natureza das coisas. Quais coisas, perguntar-se-á perante a proclamação. Aquelas que Wisłava Szymborska observava com os olhos com que escrevia. Por exemplo, ela via a realidade do futuro, do silêncio e do nada. Quando pronuncio a palavra Futuro, / a primeira sílaba já pertence ao passado. //Quando prenuncio a palavra Silêncio, destruo-o. // Quando pronuncio a palavra Nada, / crio algo que não cabe em nenhum não-ser. Imagino que ela tem um olhar dialéctico, pois em cada coisa observa a sua negação. Descubro uma fotografia dela, talvez pouco tempo antes de morrer aos 88 anos. Tornara-se com o passar dos anos uma mulher bela, mais do que era nas fotografias em que surge bem mais jovem, como se a beleza humana se tivesse deserotizado e ficasse reduzida à sua essência. Também neste facto há qualquer coisa de negação dialéctica, de superação, para falar à maneira de Hegel. A natureza do futuro é transformar-se em passado, a do silêncio é a de tornar-se som, palavra, a do nada é a de devir alguma coisa. Esta é a natureza das coisas, mas o facto de ser a sua natureza não elimina o mistério que há em cada uma. Aliás, qualquer natureza é já por si mesma um mistério. Os olhos de Wisłava viam aquilo que nós não vemos, não porque ela sofresse de alucinações, mas porque os olhos dos poetas têm uma acuidade que os outros não têm, estão preparados para tocar no fogo ardente do mistério que cintila na realidade.

domingo, 10 de março de 2024

Uma humilhação política

Um dos problemas mais agudos da crítica literária é o de saber se autor e narrador têm direito, ou não, a dois votos numa eleição. Imaginemos o caso deste blogue. Autor e narrador não pensam da mesma maneira, não agem da mesma maneira, nem sequer sentem da mesma maneira. Por que razão haveriam de votar na mesma maneira? Levemos a experiência mental mais longe. Ricardo Reis votaria da mesma maneira que Alberto Caeiro? Só por acidente. E Álvaro de Campos teria as mesmas inclinações políticas que Bernardo Soares? Talvez nem por acaso. E não deviam todos eles ter direito de voto, caso ainda estivessem no mundo dos vivos? E o voto de Fernando Pessoa deveria confundir-se com o dos heterónimos, semi-heterónimos e quase-heterónimos? Hoje passei uma humilhação, uma humilhação política, note-se. O autor apresentou-se, acompanhado da mulher, no local de voto e foi acolhido com sorrisos, ele, ao chegar a sua vez, entregou o cartão de cidadão, uma senhora diligente procurou o nome numa lista, declinou-o em voz alta, o senhor que vigiava a urna entregou-lhe o boletim de voto e ele lá foi para a cabine e voltou, depositando o boletim dobrado em quatro na urna. Quando me apresentei, a senhora, até aí simpática, afiançou-me, não sem severidade, que não constava na sua lista ninguém chamado narrador. Talvez esteja recenseado noutra freguesia, sugeriu. O solícito senhor da urna não me entregou o boletim de voto e não me restou outra alternativa senão vir para casa lamentar a feroz perseguição que os narradores sofrem neste mundo, onde são impedidos de votar por não gostarem do nome deles.

sábado, 9 de março de 2024

Dia do espelho

Então, hoje temos um novo dia do espelho, ouvi ao atender o telemóvel. Seguiu-se um riso escarninho. Dia do espelho, está a falar de quê? Já me habituei a esta idiossincrasia e como tenho direito de voto desde os anos noventa do século passado, altura em que me tornei um italiano português, acompanho com o máximo interesse o dia antes das eleições. O espelho, meu caro amigo, é o lugar onde nos reflectimos. Que tenha sido criado um dia, antes do acto eleitoral, para apurarmos o narcisismo é uma extraordinária, embora pecaminosa, invenção portuguesa, continuou, com possibilidades nefastas. Com possibilidades nefastas? O silêncio das caravanas e das arruadas parece-me uma causa nobre. Substitui-se a estridência pela reflexão, concluí. Uma gargalhada veio do outro lado. Não me faça rir, respondeu o padre Lodo. Olhar para o espelho, é isso que significa reflectir, tem um forte poder de contaminar a decisão com interesses egoístas, enquanto aquilo que se pede é uma decisão que tenha em conta o bem comum e não o interesse próprio. Não lhe conhecia essa propensão comunitarista, respondi. Talvez ande a ler o Charles Taylor e Michael Sandel. Já não tenho idade para essas leituras, disse, embora, como sabe, pertenço a uma companhia que não será particularmente liberal, existimos para defender o chefe de uma comunidade e não as manigâncias dos vendilhões do templo. A salvação, prosseguiu, e ao contrário do que se pensa, é uma obra colectiva. Salvamo-nos uns aos outros. Então, retornei, a perdição é obra da individualidade. Eu conheço, respondeu, a sua inclinação para a heresia, se não mesmo para o ateísmo, mas por certo já terá ouvido aquilo que escreveu Mateus, aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á. Ah, então é isso, o velho padre Lodo entrou numa deriva contra o liberalismo, imagino que queira voltar aos dias em que a Igreja não estava dividida, à Idade Média. Não, pois nessa altura a Companhia não existia. Nós somos filhos do Concílio de Trento, mesmo que isso, nos dias de hoje, não pareça. Parece, parece, retruquei. Deixemo-nos destes jogos florais, liguei-lhe para saber se no fim-de-semana da Páscoa estará por Lisboa. Não me parece, respondi, uma ideia digna do Concílio de Trento jantar fora na Sexta-feira de Paixão ou mesmo no Sábado de Aleluia. Deixemos Trento no seu lugar, ouvi.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Outro email

Caro narrador,

Não me respondeu. Será mais certo, espero, dizer ainda não me respondeu. Vi que não hesitou em publicar o meu email. Deparei-me com a sua publicação sem sobressalto. Admirei-me, porém, que me tivesse substituído o nome. O que escolheu serve-me perfeitamente. Era o nome de uma tia materna. Havia quem dissesse que eu era mais parecida com a tia do que com a mãe. Perguntei-me pelas razões que o terão levado a não ocultar o nome de Eduína. Imaginaria que ninguém associaria esse nome a uma pessoa real? Talvez esteja equivocada e projecte nos seus textos a figura de minha filha. O desejo inclina-nos a ver nas aparências realidades que não existem. O poema que citou a 15 de Fevereiro do ano passado deixou-me na dúvida. Nunca pensei que o discreto interesse de Eduína pela poesia passasse da leitura para a composição. Não posso dizer que essa passagem seja inverosímil. Desconheci-a. Uma mãe acaba por ignorar muito daquilo que os filhos são ou fazem. E desconhecem-no tanto mais quanto menos duvidam que os filhos lhes são transparentes. Cheguei a pensar que Eduína, na sua natureza diáfana, não tivesse segredos para mim. Iludi-me, claro. Haverá, nos cadernos, outros poemas? Existirão outros cadernos manuscritos na posse de outras pessoas. Nas coisas dela não encontrei nenhum. Talvez tudo isto não passe de uma confusão na cabeça envelhecida de uma mãe ainda inconformada com a perda da sua filha. Alguma, por mais tempo que passe, se conformará? Os dias estão frios e não sinto vontade de sair, pois ainda saio de casa sem a tutela de ninguém. Não sei por quanto tempo. Os dias estão frios, fico no calor da casa e penso no que me abandonou, penso na difícil equação de ter perdido o essencial e não ter morrido. A mecânica do mundo revolta-me. Ainda tenho folgo para essa revolta. Seria mais fácil Eduína lidar com a minha morte do que eu com a dela. Entre pais e filhos não há qualquer simetria. Um ar de família ou o amor não asseguram a reciprocidade. As mortes não têm todas o mesmo peso. Estou cansada.

Lívia