domingo, 3 de novembro de 2019

Um rio brando e sem água

A solidão cresce como uma sombra, mas não há coisa que provoque mais deleite, quando pelo Verão o sol se abate sem piedade sobre o corpo, do que uma sombra. Ao acabar esta frase o CD que estava ouvir calou-se e eu pensei que o pathos que nela se manifesta não é meu mas da música que me envolvia. Agora que o silêncio voltou com o seu império de mundos possíveis, a frase perdeu o sentido e eu já sou outro, sem ter deixado de ser quem era, sem chegar a ser alguma coisa. Os pássaros que esvoaçam diante da minha janela ignoram a sua fragilidade. Voam e poisam sobre os muros das varandas. Os homens pelo contrário sabem alguma coisa e julgam-se frágeis por possuírem a ciência de que vão morrer. Puro engano, a fragilidade está nesse constante mudar, nesse deixar de ser contínuo, nesse nunca chegar a ser. A morte livra-nos de tudo isso, menos das anáforas que caiem sobre o texto com a altivez de uma prótese. O domingo corre triste, um rio brando e sem água. Ao longe, não se passa nada e, por isso, nada tenho para contar. Volto ao CD e à música que desenha uma casa de solidão no campo raso da alma. É domingo.

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