terça-feira, 27 de outubro de 2020

Os dias decrescem

Como um fósforo que mal se acende e logo o vento apaga, o dia amanheceu iluminado por um fogo descido do céu. Olhei-o surpreso, ainda mal refeito daquele momento de estupor que cai sobre mim ao acordar, mas de imediato as nuvens em tropel tomaram conta do firmamento, cobrindo a terra com uma mantilha de cinza. Outubro, esse mês de amenidades e prenúncios, caminha para o fim, enquanto os dias se estreitam e as noites erguem asas cada vez maiores. Vejo vultos na rua, gente com afazeres, alunos esquecidos das aulas, homens em trânsito entre negócios, mulheres que trazem na cara a faca da decepção, gente a quem a idade quebrou o vigor. Um cão corre à desfilada, no passeio do lado de lá. As torres do castelo, as duas que ainda avisto, contemplam com desdém a cidade. Hoje evitei as notícias logo pela manhã. Talvez tivesse deixado de crer que a leitura diária do jornal é a oração matinal do homem moderno. A frase de Hegel fascinou-me em tempos, mas o deus que ali se cultua, descobri-o, é perverso, vingativo, e o seu odor não é o do incenso, mas o do enxofre. Olho a avenida, os carros passam, uns adolescentes trocam palavras agudas, enquanto eu penso que a cidade onde vivo é uma aldeia que bem merecia ser elevada a vila. Tem um castelo e um rio, um jardim público, uma praça grande que serve de brasão. O que mais precisará?

4 comentários:

  1. Respostas
    1. A parte final é uma ironia. Na verdade, trata-se mesmo de uma cidade e não de uma aldeia. A seguir a 74 houve uma febre no país e não sei quantas vilas passaram a cidade, mas talvez enquanto vilas tivessem uma outra dignidade que não têm como cidades.

      HV

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  2. Sintra não quis ser cidade.
    Ponte de Lima também não.
    Belmonte passou a Aldeia Histórica.
    Este país é uma confusão.
    Entretanto, aqui na Beira já vai estando frio à noite: que bom!

    Boa noite, HV.
    🌾🍁
    Maria

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    1. Cascais também continuou como vila. Estas passagens a cidade devem-se ao entusiasmo dos amigos da terra, seita que existe em todo o lado, com a conivência dos políticos eleitos e que não querem perder simpatias. Terriolas passam a cidade, mas continuam todos com a mesma mentalidade paroquial.

      Um boa noite, Maria

      HV

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