sábado, 8 de maio de 2021

Da vida das máquinas

Há coisas que não compreendo. O meu leitor de CD, na verdade um leitor de DVD adaptado a uma versão apenas musical, decidiu ler o disco que acabei de lá colocar. Fi-lo apenas para confirmar que ele estava definitivamente avariado, pois das últimas vezes recusou-se a trabalhar. Desconfio que passou a ter opinião musical e finge-se morto quando não gosta da música que escolho. Hoje não protestou com os estudos para piano de György Ligeti. Imagino que nós, os seres humanos, temos uma relação distorcida com os objectos mecânicos que produzimos. Pensamo-los como uma espécie de criados que estão aí para o nosso serviço. Um erro. Eles protestam, avariam-se, recusam-se a trabalhar. Tudo isto para chamar a nossa atenção, com a esperança vã de alterar o modo de nos relacionarmos com eles. São entidades sensíveis que escondem os seus afectos sob um aparato mecânico. Os sábados de província são propícios para este tipo de reflexões. Como não se passa nada, nós, os provincianos, começamos a enlouquecer, é um processo lento, embora inexorável. O primeiro passo é falar sozinho, mas quando se chega ao momento em que se descobre uma vida afectiva nas máquinas, então a coisa está já avançada. Quando o disco se calar, levanto-me e saio. Na rua disfarçarei a degradação mental, o que não é mau. Mesmo os mais luminosos sábados nunca deixam de conter neles uma sombra.

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