São dias como o de hoje que anunciam os tormentos que a
estiagem, lá mais para a frente, há-de fazer cair sobre nós, mortais volúveis
que tão depressa lançamos anátemas ao frio como pedimos clemência aos céus, se
o calor vem em borbotões desabar por estas ruas. Os estados de espírito dos
homens são o verdadeiro objecto das ciências ocultas. São mistérios
indecifráveis e se usamos palavras como inconstância, volubilidade ou instabilidade
para os caracterizar, isso é mais uma manobra com que cobrimos a nossa
ignorância do que um acto de saber. A verdade, porém, é que o dia nasceu fadado
a ser soalheiro e as pessoas agitam-se na rua com ademanes primaveris. Uma ou
outra mulher passa mais leve na roupagem e um gato deita-se na relva a apanhar
banhos de sol. E eu vejo tudo isso como se fosse cego e nessa minha cegueira me
protegesse dos dias que hão-de vir ou mesmo daqueles que já se foram. Penso
nestas coisas sem sentido, enquanto abro a caixa do correio e encontro uma
carta que me há-de anunciar alguma conta a pagar. Tudo tem um preço nesta vida.
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019
domingo, 10 de fevereiro de 2019
Dissensões
Tenho de ir à farmácia, penso olhando para a rugosidade parda
da avenida, sob um céu indeciso, que não sabe se há-de ou não enviar uma
chuvada bíblica sobre a terra. Preciso de um daqueles medicamentos que fazem a
vez da vesícula. É o que dá andar por aí a perder órgãos, diz-me o anjo negro,
enquanto ri não sem uma ponta de escárnio. Não, responde com ar contrito o anjo
branco, é o que dá o pecado mortal da gula. Como os homens, também os anjos
nunca se põem de acordo seja sobre o que for, e eu, pobre mortal, não sei se a
culpa de tudo isto foi da fraca qualidade da vesícula que me coube ou se da
minha propensão para ceder às tentações. A verdade é que tenho mesmo de sair e
deixar-me de considerações teológicas. O domingo é o dia do Senhor e não dos
teólogos, acho eu, mas não tenho bem a certeza.
sábado, 9 de fevereiro de 2019
Cartões
As contas dos restaurantes, muitas vezes, vêm acompanhadas
com o cartão da casa. Não me faço rogado e fico com ele. Não porque vá
utilizá-lo para fazer uma marcação futura ou porque faça colecção de cartões.
Não sou dado a esse exercício de acumulação de coisas inúteis, que a tanta
gente fascina. Guardo-os para marcar livros e lá os vou depositando entre
folhas, onde ficam esquecidos e melancólicos. Quando abro um livro que há muito
tempo não abria e encontro um desses cartões, o mais certo é que não saiba
quando me veio parar às mãos, mas ali está como prova de que um dia prestei
atenção às palavras que aquele livro alberga. Foi isso o que aconteceu há pouco
quando peguei num velho livro de poemas do Eugénio de Andrade. Lá estava,
abandonado e solitário, um desses cartões. A noite cai e a iluminação pública segrega
uma luz triste e infeliz sobre as ruas. Olho cartão e ele nada me diz sobre
esse lugar onde um dia estive e que hoje não é mais do que um pedaço de cartão
que marca um poema que um dia achei que não deveria ser esquecido.
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019
Sem promessas
Sento-me na plateia e olho um palco coberto de vociferações.
Habitar o mundo é um ofício que exige uma infinita paciência. O Inverno vai a
meio, constato, mas há momentos que já trazem o odor melado da Primavera. Eu
sei, pois há muito que estou sentado no mesmo sítio, que se exulta com os
eflúvios desses dias em que a natureza há-de florescer, entre o orvalho das
manhãs e o zumbir dos insectos, para que os corações amoleçam e os instintos se
disfarcem no fervor de uma écloga. Por falar em pastores, o mau gosto é um lobo
que nunca deixa de rondar os rebanhos. O vento insiste, com as suas artes
rasteiras, em precipitar-se contra a minha janela. O vidro reluta e apenas
deixa entrar a cinza da tristeza que se desprende da paisagem. Ao longe, voam
dois corvos mas não os oiço crocitar. O fim-de-semana começa viscoso,
esburacado e, como eu, sem promessas para o dia de amanhã.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019
Palavras
As quintas-feiras são exercícios difíceis que só o cair da
noite apazigua. Trégua de curta duração, penso, enquanto subo vagarosamente o
viaduto e entro numa das mil rotundas com que a estética municipalista decidiu
decorar o pequeno país que nos cabe. Viver das palavras é um ofício estranho,
tão frágeis e impotentes elas são. Às vezes, fazem milagres, uma vida que muda,
alguém que escuta e descobre, na encruzilhada, o caminho a seguir, a sua
estrada de Damasco. A mais das vezes são inúteis. Mal proferidas, logo se
repartem em sílabas e estas, no momento seguinte, já são pó de
letras, que o vento, incauto é húmido, levará. A noite cerra-se com obstinação
e a escuridão toma conta de mim. O melhor seria viver calado, fazer do mundo
uma grande cartuxa. Ao menos poupava-me aos meus disparates.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019
Inflamações
As pessoas sofrem muito de inflamação. Inflamam-se por tudo
e por nada, como se disso dependesse o destino do mundo ou mesmo o delas. O
melhor seria darem longos passeios avenidas fora ou então contar carneiros para
ver se adormeciam. Já estou a ouvir as reacções. Queres um país de sonâmbulos.
Não é verdade, acho muito desagradável deparar-me a cada esquina com alguém que
caminha a dormir. Preferiria que repousasse na cama, num quarto fora dos olhares
curiosos. O sol já esteve mais inflamado hoje. O mundo é um sepulcro de
ilusões, constato enquanto me preparo para sair. Apropriado seria plantar
ciprestes e cultivar crisântemos, ou então tomar um anti-inflamatório.
terça-feira, 5 de fevereiro de 2019
Enganos
Cheguei àquela fase em que arrumo as coisas nos sítios mais
improváveis. Talvez o destino dos seres humanos seja esse, fomentar improbabilidades
até que eles próprios se tornem improváveis e sejam varridos para o
esquecimento. Eu sei que este pensamento é soturno, mas nem sempre o brilho do
sol vespertino é suficiente para ofuscar o fardo da sombra. Num dos apartamentos
contíguos, alguém está apostado em furar a parede. O barulho da broca fende o
silêncio e zune-me dentro da cabeça. O mundo nunca é como nós o queremos,
constato não sem que me aproxime de alguma heresia. E enquanto vou escrevendo
estas coisas reparo que, mais do que é hábito, estou a trocar as letras ao
formar palavras. Trocas e heresias é tudo o que tenho. Há quem venda certezas,
outros mercadejam indignações, a mim, que sou cada vez mais improvável,
restam-me enganos. Podia ser pior.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019
A mudez dos deuses
Outrora, os deuses falavam através das folhas dos carvalhos
batidas pelo vento suave vindo do mar. Lembrei-me disso ao olhar o sol
entristecido que desliza dos céus. Fevereiro nasceu vociferando grandes
chuvadas, mas já se arrependeu. Uma mãe apressada, ajoujada ao peso de uma mala,
conduz a filha praceta fora, entra para um prédio, fechando sem violência a
porta. Silêncio. A solidão do mundo desdobra-se sobre aquele lugar, onde dois
pombos poisam, para logo levantarem voo e perderem-se num telhado que não vejo.
A vida é sempre um exercício de mutilação. A cada instante, a faca de lâmina
afiada corta uma invisível fatia, para que a jactância humana seja reduzida ao
que é, a nada. O pior, penso, é a mudez dos deuses. Ou então sou eu que não sei
escutá-los quando murmuram no folhedo das árvores.
domingo, 3 de fevereiro de 2019
Economia de mercado
Envelhecer é cair na folhagem obscura de uma floresta sem
nome. Uma vez por outra sou assaltado por pensamentos destes, pensamentos em
que, como em certas filosofias, não se pensa nada, o que é um grande alívio.
Foi o que me aconteceu hoje, ao deslocar-me a uma aldeia onde, à beira da
estrada, os donos dos pomares vendem laranjas. Há dez anos, nunca pensaria
nisso, mas agora um patriotismo aldeão, atávico e despido de interesse, estende-me armadilhas
destas. O sol refulgia nas laranjas, os carros passavam mergulhados no domingo,
e a vendedora, vinda de um tempo onde nem como promessa eu seria pensado, cerzia
com cuidado o passado e o presente e oficiava, como sacerdotisa experiente e
pura, os velhos rituais da compra e da venda, dessa troca que abre caminhos por
dentro das mais obscuras e inomináveis florestas. E, enquanto regressava,
barafustando com a Antena 2 pelo programa que se lembrara de pôr no ar, só para
me irritar, constatei que não há nada como a economia de mercado.
sábado, 2 de fevereiro de 2019
Opinião
Mal abro o facebook,
este, desfrutando a intimidade que o uso confere, informa-me que está a pedir a
opinião a um pequeno grupo de pessoas. Imagine-se quem haveria de fazer parte
desse grupo restrito, uma verdadeira elite, a quem a opinião está a ser
solicitada. Eu. Fiquei lisonjeado. Até que enfim alguém reconhece a minha
natureza, pensei com os meus botões. O problema, ponderei, é que não tenho
opinião seja sobre o que for, muito menos sobre aquilo que o facebook há-de querer saber. Eu sei, eu
sei. Estou a mentir. Ter opiniões, tenho. Aliás, não me faltam opiniões sobre
tudo e sobre nada. O drama é que não consigo acreditar nas minhas opiniões.
Espantam-me sempre as pessoas que acreditam nas suas próprias opiniões. Como é
possível? Para mim, basta que uma opinião se apresente como minha para logo
deixar de acreditar nela. Resoluto, tomei a decisão de poupar o facebook às opiniões em que não acredito
e ao meu cepticismo contumaz. E assim abdico da glória de pertencer ao pequeno
grupo. Nunca deixarei de ser um átomo perdido na massa. Cada um é para o que
nasce.
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019
Fevereiro
Fevereiro chegou e não tenho, no bolso do casaco, nenhum
provérbio para o acolher. É sempre assim, quanto mais preciso de um ditado mais
ele se esconde de mim. O dia declina e a chuva na chuva anuncia a obscuridade.
O vento empurra ruídos incompreensíveis e os meus ouvidos, infelizes, recebem
esses prenúncios do inferno. Logo reparo que basta trocar o efe do inferno por
um vê para cair no inverno. Pouco cuidado têm os construtores lexicais ao
aproximarem palavras com temperaturas tão diferentes, meditei com desconsolo. Estamos
em Fevereiro e a rua parece um ribeiro, suspiro. Pelo menos rima.
quinta-feira, 31 de janeiro de 2019
Perfil
O LinkedIn – eu tenho, embora não saiba porquê, uma conta LinkedIn – informa-me, manso e solícito, que há pessoas que andam a ver o meu perfil. Presumo que deveria exultar com tamanha curiosidade. Não exulto e nem sequer creio que tenha perfil para ter um perfil, mas se o tiver, por certo, será horrível. Que interesse haverá em ver tal coisa? O pior é que é capaz de chover quando sair de casa e não me apetece levar guarda-chuva. Bom seria que pudesse enviar o perfil que me andam a espreitar encontrar-se com a gente que estará daqui a pouco à minha espera. Talvez ninguém desse pela diferença e eu ficaria sentado e apócrifo a meditar sobre a ilusão e a realidade, ou a iniquidade que se esconde sob a capa das coisas banais.
quarta-feira, 30 de janeiro de 2019
Espera
A tristeza desprende-se das nuvens em gotas ínfimas, paira
por instantes sobre a cidade e precipita-se, como um vício insensato, pelas
ruas. O que me salva é o vídeo do meu neto chegado através de uma daquelas
aplicações que teimam em aproximar a humanidade. Vejo-o esbracejar, quase
irado, e isso faz-me rir e dá-me ânimo. A arte da consolação não é esquiva nos
materiais que escolhe para distribuir a sua bênção. O vento sopra contra a janela, empurra a chuva e perante
os meus olhos desenham-se incontáveis universos de água, que logo se arrojam para
a arca negra da inexistência. Ninguém sabe o que fazer com a obscuridade do
dia. Uns esperam a luz, outros aguardam as trevas. Eu, pobre de mim, olho as
façanhas do rapaz e conto os dias que faltam para ele voltar cá a casa.
terça-feira, 29 de janeiro de 2019
Colírio
Presumia que se não era imune a constipações, era-o quase. Jactâncias
destas não perdem pela demora e o mundo, com a sua balança inexorável e o despropósito
de um adolescente, lá me pôs no devido lugar. Mal dei por mim estava a vir da
farmácia, armado com os colírios que, dentro do possível, me hão-de devolver à
normalidade. Não se pense que estou mal dos olhos. A palavra colírio fascina-me
desde que, há muitos anos, a vi pespegada na capa de um tratado político do
século XIV, de Álvaro Pais. Reza assim o título: Colírio da Fé contra as Heresias. Não interessa saber o que a fé e
as heresias têm a ver com a política, mas que a metáfora é poderosa, parece-me tão
claro quanto obscura é a tarde de hoje. Os sulcos da consciência são um dia invernoso.
Tenebrosos e imprevisíveis. Uma constipação em pleno século XXI transporta-me
para o século XIV, como se não tivesse mais nada que fazer ou em que pensar.
Janeiro há-de acabar e a minha razão talvez encontre maneira de se esquivar à
descortesia e aos agravos que sobre ela faço cair.
segunda-feira, 28 de janeiro de 2019
Perturbação
O mundo quer ser distraído mas nós temos que o perturbar,
diz Minetti, o velho actor que dá nome à peça de Thomas Bernhard. É nisto que
penso enquanto me imagino caminhar, rua fora, cumprimentando conhecidos aqui e
ali, observando o movimento dos cafés, a inconstância do trânsito. O céu tem
nuvens cinzentas e as árvores acomodam-se, imperturbáveis na sua verdura, se a
têm, e deixam os ramos oscilar ao vento, como se embalassem um filho há muito
desejado. Pobre Minetti, compadeço-me, enquanto um bando de adolescentes passa imerso
nos seus códigos voláteis, a arquitectar aventuras que nunca acontecerão, cegos
para a velhice que neles se aninha. Quantos candidatos a perturbadores do mundo
conheci? Uma ambulância passa vagarosa e oiço o correr de umas persianas. O mundo
nunca foi outra coisa senão perturbação, afirmo distraído, enquanto fecho a
porta da casa onde guardo as minhas opiniões sobre seja o que for.
domingo, 27 de janeiro de 2019
Romantismo dominical
O sol desmaiado desta manhã de domingo faz-me lembrar o
romantismo com as suas as almas puras torturadas por paixões impossíveis. Seria
esta a luz que iluminaria os sofrimentos do jovem Werther e de Charlotte ou de
Simão Botelho e Teresa de Albuquerque. Tudo isto, porém, é literatura e a
realidade, com as suas garras de diamante, não se compadece com as minhas tendências
para o desvario. O melhor mesmo é suportar o vento frio, essa lâmina afiada que
rasga o rosto, e a claridade avara com que o dia se desdobra para manifestar,
aos olhos incrédulos, os seus segredos de polichinelo. Duas mulheres passam por
mim. Uma leva um lenço à boca e tosse, a outra fala, mas nenhuma terá sido
iluminada por um sol desmaiado num domingo lacerado pelas chagas do romantismo,
penso, talvez com injustiça. Nunca sabemos os mistérios que habitam na memória
de quem se atravessa no nosso caminho. Elas, indiferentes aos meus pensamentos,
lá seguem a sua rota sem paixão, enquanto eu espero, como quem aguarda o
autocarro, que um deus venha e me salve da inutilidade com que decidi revestir
a vida. Começa a ficar tarde.
sábado, 26 de janeiro de 2019
Grilos
Saí de casa já a noite se tinha afastado há muito, mas o
frio que, com silencioso esmero, ela semeara entrou-me pelo corpo, fez de mim presa
e subjugou-me a um império obstinado. É possível que a realidade não seja assim
tão dramática. Delírios e dissonâncias cognitivas é o que mais por aí há, e eu,
com a idade, sou cada vez menos imune a coisas dessas. Passa por mim uma
mulher, segue-a um cão, e nenhum, reparo, tirita. A manhã resvala e, enquanto
caminho, penso no cantar dos ralos. Fiquei surpreso. Nunca na vida tinha
pensado em ralos. Em grilos, sim. Um dia deram-me uma gaiola com um grilo e o
imperativo de o alimentar com folhas de alface. Julgo que morreu e não me lembro
de o ter ouvido cantar, mas naquela altura ainda não sabia o que era um
imperativo. Hoje sei-o bem, mas por enquanto não tenho idade suficiente para voltar a
ter grilos numa gaiola.
sexta-feira, 25 de janeiro de 2019
Saber de si
Cada um sabe de si, leio num post de protesto acerca de uma minudência qualquer. E fico feliz
por haver gente que até de si sabe. Eu sei cada vez menos coisas e, de mim, a
ignorância nunca foi exígua. Talvez isso seja efeito da sexta-feira. Há dias da
semana que possuem estranhos poderes sobre o que as pessoas dizem: inclinam a
vontade, torcem o sentimento, amarfanham a palavra. Depois, desce do céu, tão
azul que ele há pouco estava, um manto de ilusões, que cai sobre os ombros e
destrava a prosápia. Ah se cada um soubesse de si, as árvores não perderiam as
folhas no inverno nem os pássaros se recolheriam mais ao sul. Se cada um
soubesse de si, o vento vacilante da tarde levaria para longe as escamas que
cobrem os olhos. O silêncio, então, viria como um deus dançar embriagado pelas
ruas deslavadas desta cidade.
quinta-feira, 24 de janeiro de 2019
Devaneio matinal
As noites são caminhos abertos na planície que nos levam
para a terra da transparência. Assim comecei a história, mas logo veio a manhã
e tantos imperativos trazia consigo que esqueci o que a noite me tinha ditado. Não é
a natureza que é uma floresta de símbolos, ponderei, mas o fluxo que o sono coa
para dentro da consciência. Árvores, ruas, um pregão ouvido há cinquenta anos, a
mão que brilhou diante dos olhos e incendiou o desejo de não mais a largar.
Depois, deixamos as palavras enraizarem, cuidamos delas, trazemos-lhe água e
elas florescem, para nos acariciarem, enquanto afundamos a cabeça na almofada e
esperamos que o mundo acabe ou um rio de pétalas desagúe por detrás dos
canaviais onde se esconde a infância. Ao menos tiveste uma infância, pensei,
enquanto lavava os dentes e espreitava não sem horror o rosto que despudorado o
espelho me devolvia.
quarta-feira, 23 de janeiro de 2019
Aguaceiro
De súbito, um aguaceiro cobre os vidros do carro, desfoca a
paisagem, torna imprecisos os contornos de quem passa. Logo o limpa-pára-brisas,
a ruminar vaivéns, devolve ordem ao mundo e figura aos peões. Que monotonia de
ritmo, pensei, enquanto olhava um renque de velhas moradias, daquelas que, com
o passar das estações, já mal suportam o peso da sombra. Mura-as paliçadas de
tijolo e cal e por detrás destas avistam-se laranjeiras e limoeiros,
exuberantes na cor dos frutos, que se escapam dos promontórios verdes das
ramadas. Esta terra não deveria ter nome, murmurei. Não havia ninguém para me
escutar e eu ri-me, a pensar no amargo das laranjas e no brilho baço dos
limões. Os dias já estão mais longos e a hora melancólica do crepúsculo chega
cada vez mais tarde. Se soubesse o que fazer de mim, tudo seria mais fácil.
Assim, perco-me em taxionomias insignificantes e contabilidades sem deve nem
haver.
terça-feira, 22 de janeiro de 2019
Desconsolo
Depois de almoço tive de ir ao banco, no centro histórico da
cidade. Sejamos piedosos e não poupemos a hipérbole. Ao entrar, lembrei-me do
tempo em que não havia ali pessoa que não conhecesse. Agora, constatei, não sem
incredulidade, que nenhum daqueles rostos me dizia alguma coisa. Tentava
situá-los aqui ou ali, mas só o silêncio respondia à minha interrogação. A
cidade é exígua, o tempo, porém, não vacila e arrasta na voragem tudo o que foi
comum. Saí desconsolado pelo peso da ignorância. Uma ameaça surda pairava sobre
a minha inquietação. Janeiro é um mês cruel e estende as suas garras até aos
confins da memória. Quando esta sangra, então ele afrouxa os tentáculos e
deixa-nos à porta de um jardim onde ninguém nos espera. Olho as ruas, as
pessoas que vão e vêm, os escombros da velha vila a céu aberto. A vida, pensei,
é uma árvore calcinada pelas tentações de Inverno. Que catarse poderá pacificar
as almas?, perguntei, ao avistar os ciprestes do cemitério. O carro trouxe-me
rapidamente para casa.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2019
Infrutuosidade
Um alarme dispara não sei bem onde. O som progride como um
insulto a quem escolheu o silêncio para esquecer a alegria do sol ou algum
dever que a vida, esse naufrágio entre dois esquecimentos, sempre traz no
aconchego da sua farta algibeira. Duas pessoas vão pelo passeio e o seu andar
lembra-me uma redondilha, e logo começo a escandir-lhes os passos, a
espreitar-lhe a prosódia, certo que também o mover dos corpos na rua obedece ao segredo de uma poética, que apenas a distracção nos faz ignorar. O melhor seria pensar
noutra coisa, reflicto, ser útil e dar à indiferença estes pensamentos que são
como flores feias e estéreis. O que vale é que o alarme se calou, e o dia mutilado
refaz a mão decepada e com ela acaricia a infrutuosidade de tudo o que penso.
domingo, 20 de janeiro de 2019
A porta do meio-dia
O vento ondula o arvoredo como se este fosse uma seara
arcaica trazida dos confins da terra. E eu aguardo o deslizar do dia, a espuma
das horas que se derrete ao sol, o rigor do esquecimento que a tudo há-de
trazer paz e purificação. Uma nuvem passa diante do sol e a luz entenebrece um
pouco, mas logo o vento leva a intrometida e deixa que os raios caiam como
punhais sobre os transeuntes. Estes vão em pequenos bandos, lembrando famílias
a caminho da igreja num domingo de há cinquenta anos. Com o florete das
palavras desenho na areia os frutos que me cabem, enquanto imagino o canto das
cigarras ou o sabor do vinho novo. Afasto-me das minhas paixões e cruzo o adro
da manhã para entrar, inútil e cego, pela porta do meio-dia.
sábado, 19 de janeiro de 2019
Anacrónico
Os pássaros que ainda há pouco tempo cantavam perto da minha
janela emudeceram. Eram pássaros tardios, sei-o bem, e há muito que deveriam
ter partido. O tempo fê-los perder a memória e confundiram a púrpura dos dias
com o fulgor do Verão. Também eu confundo os tempos e caminho pelo Inverno como
se ainda fosse Outono. Pensava em tudo isto, enquanto contemplava a mansidão da
luz batida pelas águas frias de Janeiro. Alturas há em que me assalta uma
estranha convicção: este não é o meu tempo. Sou, atavicamente, anacrónico.
Rio-me e pergunto se há outra coisa que possa fazer senão rir-me de mim mesmo.
Num poema de Eugénio Andrade encontro a afirmação o teu destino és tu. Não, o
meu destino não sou eu. Sou como os pássaros que emudeceram na minha janela ou
como a chuva que se calou tomada pelo peso da tarde. Se estivéssemos em Outubro
tudo seria perfeito, pensei, enquanto o meu destino galopa, incendiado e pueril, diante de mim.
sexta-feira, 18 de janeiro de 2019
Desculpa
Esta chuva impaciente e frágil veio mesmo a calhar. Que boa
desculpa encontrei para não ir dar a minha caminhada profiláctica. Assim, fico
por aqui a ruminar sobre o desvario do mundo, a meditar na água que cai e na
bem-aventurança que ela é para a agricultura. Há quem tenha alma de caminhante,
mas esse, por um qualquer motivo que desconheço, não é o meu caso. Prendo-me
então ao flanco do silêncio e enquanto leio aguardo o crepúsculo que me há-de
anunciar o aconchego furtivo da noite.
quinta-feira, 17 de janeiro de 2019
Notícia
Vai-se pela rua ou entra-se numa rede social e é-se colhido por uma notícia para a qual nunca há uma cesta preparada para a depositar. A terrível ceifeira, a desmemoriada que nunca esquece a vil ocupação, deslocou-se, fremente e impúdica, e cortou cerce onde não se esperava que cortasse. Faz-se, assim, em nós um grande silêncio. Contam-se os dias, os anos, os caminhos partilhados e as esperanças havidas e, por ordem inevitável do mundo, perdidas. Então uma espada de pez cai sobre o dia e tudo ensombrece, como se um exílio nos esperasse ou uma gaivota perdida apagasse o sol.
quarta-feira, 16 de janeiro de 2019
Rememorações
Por vezes, sou dado a rememorações, talvez com a esperança
da ressurreição de alguma coisa perdida ou de alguém que a morte, lúbrica e
pegajosa, raptou para não mais libertar. É um sinal inequívoco de que os anos,
muitos, passaram por mim e o passado pesa mais que o futuro. A culpa destes
pensamentos, pensei-o agora, é do dia. A cinza rumorosa da tarde, a espuma do
frio a entranhar-se nos ossos, os ramos despidos das árvores no limiar do
esquecimento, tudo isso conspira para que a memória cresça e se transforme numa
hipérbole que me esmaga, enquanto oiço o vozear de quem vai rua fora, envolto numa
capa de segredos que lhe dilaceram o coração. Hoje é quarta-feira e a minha
indústria é escassa para domar a melancolia furtiva, essa sombra vacilante suspensa
nas nuvens.
terça-feira, 15 de janeiro de 2019
Amor
Está um dia esquivo e a cidade respira rente à melancolia. O
rio, a ciciar pela chuva que há-de vir, desliza oscilante e de água escassa,
sem um barco que lhe abra as entranhas e lhe inscreva, momentânea, uma esteira
que lembre o ondulado tecido pelo passar dos grandes navios. Tudo nesta cidade
é minguado, menos o desvario com que a percorro para não me perder na aspereza
das ruas ou na solidão que sobre ela desce em borbotões da serra. São assim as
cidades de província e por isso são amadas. Também eu a amo pela sua escassez e
pelo jardim que agora cruzo e cai sobre os meus ombros como um grande
capote que protege o meu ser provinciano do grande rugido cosmopolita.
segunda-feira, 14 de janeiro de 2019
O tempo foge
Estava há pouco a ver os livros de um dos leilões que se
estão a tornar moda na internet, quando me deparei com uma obra em dois volumes, de um
autor russo cujo nome não é apenas impronunciável como inescrevível. A prosa
foi publicada pelas Edições Avante e tem o nome Para a Crítica da Ideologia
Burguesa. Ao vê-la, sorri. É perante coisas como esta que uma pessoa tem a
certeza que as pretensões humanas são limitadas, mesmo que o desejo seja
infinito. Apesar da crítica, e enquanto os críticos se afundavam no lodaçal do
não ser, a ideologia burguesa lá se foi aguentando, mesmo que haja quem lhe
rosne, lhe faça figas e a encha de manguitos, e de negros e irreversíveis
prognósticos. Não pense o leitor que eu tenha alegria – ou tristeza, diga-se –
nesta vitória da afrontada ideologia sobre a crítica e os críticos. Todas estas
coisas passam, como passam as borbulhas na adolescência, que tanto desespero
provocam e logo se vão. Também um dia a malfadada ideologia morrerá, velha e
abandonada, sem o conforto dos sacramentos, sem um crítico que lhe faça o
velório ou a acompanhe à última morada. E era aqui, para acabar com brio, que
deveria pôr uma citação de Virgílio sobre o tempo e a sua fugacidade, mas também
em mim o desejo é maior que as possibilidades. Vou dar uma volta, ver as vistas e apanhar sol.
domingo, 13 de janeiro de 2019
Paganismos de província
Contrariamente ao que é costume, hoje, domingo, tive de ir
fazer compras, coisa que me deixa num humor variável, umas vezes mau e outras
indiferente. E enquanto passeava pelos corredores de uma grande superfície,
visitando os múltiplos altares e parando em várias capelas, todos eles, altares
e capelas, dedicados a um santo necessário ao bem-estar, pensava que antigamente
os domingos estavam despojados destes cultos pagãos. A missa do meio-dia em S.
Pedro, depois almoço em família, e, se fosse o caso, uma ida ver o futebol ao
Almonda Parque, mais conhecido pelo quintal do Zé Maria. O mundo era mais
simples e eu mais ingénuo, mas talvez não tão idiota. Não havia grandes
superfícies e mesmo que a ida à missa se tivesse transformado, como era
recorrente na época, numa oportunidade para ver as raparigas, e nisso estava
toda a devoção pagã do rapazio, a verdade é que o objectivo desse pobre
paganismo provinciano era mais interessante do que observar coisas tão
cosmopolitas como as líchias vindas da China ou as papaias provenientes do
Brasil.
sábado, 12 de janeiro de 2019
Sábados
Os sábados contêm uma promessa que descubro sempre ser
falsa. Se os olho a partir dos dias da semana, eles parecem-me uma luz
bruxuleante ao fundo do túnel. E nesse luzir mortiço esconde-se, confesso, a
esperança da eternidade e a crença no paraíso. Sim, os sábados são pressentidos
como se não pertencessem ao tempo, com o seu passar rápido e inelutável, mas à
dimensão da intemporalidade. Depois, o sábado chega e mal dou por isso já o sol
se entrega nas mãos do crepúsculo, a temporalidade ri-se alacre das minhas
tristes divagações e o ritmo das coisas humanas, demasiado humanas, cobra o seu
soldo e traz a canga que me submete ao duro jugo da realidade. É o que faz cultivar
ilusões em vez de aprender a jardinar e a podar roseiras.
sexta-feira, 11 de janeiro de 2019
Sanidade
Quando caminho à noite, tenho o costume de dar várias voltas a uma certa praça. É um exercício ritual que tem por fim não pagar por algum
pecado mas poupar-me a ter de pensar por onde hei-de ir. Actualmente, devido ao
frio, dou os meus passeios à tarde e abstenho-me de andar às voltas no mesmo
lugar. Há coisas que se fazem à noite e que de dia são impossíveis. Há que
preservar a imagem, mesmo que fantasiosa, de que se possui uma certa sanidade
mental.
quinta-feira, 10 de janeiro de 2019
Hóspedes
Há dias comprei um livro, num leilão na internet, de
Heinrich Böll. Trata-se de uma obra publicada entre nós em 1972, pela velha
Arcádia. Tem capa dura e papel de boa gramagem. É composto por um conjunto de
contos e de um deles recebeu o título Os Hóspedes Inesperados. Foi um sentimento
de irmandade que me levou a adquiri-lo. Também eu, onde quer que vá, sou um
hóspede inesperado. O sítio não me espera e a minha presença é constrangedora. Isto
pensava eu quando atravessava a cidade para ir para um lugar onde todos me
esperavam, sem que a minha presença deixasse de ser constrangedora. O que me
vale, meditei, é o sol de Inverno. Brilha, aquece um pouco, mas evita excessos,
comportando-se com prudência e sabedoria.
terça-feira, 8 de janeiro de 2019
Sabedoria
Estes dias ensolarados e frios morrem sob um véu de tristeza
e melancolia, pensei ao olhar pela janela. O fulgor do sol começa definhar, a toldar-se
indeciso, e onde antes havia vibração insinua-se uma pequena névoa. Logo se
transforma em escura nuvem de pesar, que cobrirá as pessoas que passam
indiferentes e que, revestidas pela saúde do seu espírito, sabem que os dias
não morrem, nem são tristes e melancólicos, mas apenas dias que hão-de dar
lugar à noite, separados por crepúsculos. E eu, não sem ponta de inveja, olho-as
e maravilho-me com essa sabedoria e paz de espírito que nela se oculta.
segunda-feira, 7 de janeiro de 2019
Más leituras
Como Rosseau também eu tenho os meus devaneios de caminhante
solitário. Poderia meditar sobre o lixo que encontro, as pessoas que passam por
mim, a azáfama dos escapes a libertarem o ar puro que hei-de respirar. Poderia,
mas não foi o que fiz hoje. Isso deveu-se à impertinência de uma frase de
Jean-Jacques lida pouco antes de me dispor a sair para a rua: “Quando o meu
destino voltou a lançar-me na torrente do mundo, já aí não encontrei nada que
pudesse, por um momento que fosse, atrair o meu coração.” Era essa incapacidade
do mundo em atrair-me o coração que ocupava os meus pensamentos, enquanto as
pernas se deslocavam, mecânicas, para destino nenhum. O pior é que o mundo que
ia vendo, em vez de me tranquilizar com um desmentido, apenas confirmava aquilo
que tinha lido. Talvez não deva ler antes de ir caminhar.
domingo, 6 de janeiro de 2019
Bolo-rainha em dia de Reis
Hoje é dia de Reis. As pessoas aproveitam o sol, dão
passeios vagarosos pelas ruas, cumprimentam-se como se não se vissem há muito, vão
aos cafés e compram bolo-rei ou bolo-rainha, este uma introdução recente,
talvez em nome da igualdade de género. Foi tudo isso que vi, quando, também eu,
fiz o mesmo e, por opção cá de casa, deixei-me embalar por essa desejada igualdade.
Quando saía da pastelaria com a caixa do bolo nas mãos e os olhos a piscar por
causa do sol, meditei que estava deslocado. Hoje é dia de Reis e não de
Rainhas. É assim que se pervertem as tradições, constatei ancorado num conservadorismo trazido pela idade. Levados pelo prazer estético, esse exercício
de individualistas dados ao hedonismo, trocamos as frutas cristalizadas pelos
frutos secos, como se fosse um upgrade do software que nos há-de levar ao
paraíso gustativo. Que Baltasar, Belchior e Gaspar nos perdoem por os termos
trocado pela rainha de copas.
sábado, 5 de janeiro de 2019
Caminhadas
Há muito que não fazia uma caminhada. Hoje, porém, enfrentei
estradas e caminhos. A verdade é que o fiz não por amor ao dever de andar (que
Kant me perdoe) ou às paisagens que atravesso. Quando combinei a revelação que
esta manhã a balança me fez com o resultado, recebido ontem, de umas análises
de rotina, aliás com quase todos os valores no lugar certo, percebi que talvez
o médico não estivesse destituído de alguma razão ao receitar-me exercício
físico. E foi assim que me expus ao sol entristecido da tarde e me aventurei
por caminhos a que os escapes dos automóveis e camiões dão o seu inigualável
perfume. Fi-lo como quem toma um comprimido ou bebe umas gotas cujo amargor
nunca a água dilui ou dissipa. Quando cheguei a casa, prometi que amanhã
voltaria e que ainda me haveria de tornar um desportista a sério, daqueles que
treinam todos os dias, embora nunca joguem ao domingo.
sexta-feira, 4 de janeiro de 2019
Utilidades
A semana passou depressa, pensei ao chegar a casa. O pior é
a contradição entre o corpo e a realidade. Esta exige-me um respeito temeroso
pelo calendário, pela separação árdua e fria dos dias úteis dos outros,
enquanto aquele se rebela contra este jogo de distinções e anseia pela hora em
que todos os dias se possam tornar frutuosos, libertos da inutilidade dos dias
úteis.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2019
Diabruras
Atravessei pensativo a cidade mergulhada no frio matinal. As
pessoas passavam recompostas da chegada do novo ano, entrouxadas em sombras e
silêncio, cobertas pelo azul do céu. Enquanto fazia e desfazia curvas, circundava
rotundas e enfrentava semáforos, ia pensando no que ia fazer. Falar sobre
crenças que se devem justificar e nesse acto de justificar está toda a
justificação da razão. Enquanto discorria para mim mesmo, um pequeno demónio
lembrava-me que as crenças mais interessantes são como a rosa sem porquê. O meu
demónio é persistente e trabalha constantemente para a minha perdição. Ele lá
terá a sua justificação.
quarta-feira, 2 de janeiro de 2019
A cidade
A cidade é um jogo de memórias puxado pelo cabresto da
imaginação. Ali, onde se vê uma casa vazia, imagina-se quem lá viveu e fechou
as portas para que a vida se encerrasse, e nunca mais uma dor fosse o reverso
da alegria, ou a amargura cobrisse com o seu manto de púrpura os prazeres que a
vida engendrava. Um sol amarelo e resignado cobre o casario, tinta-o de uma luz
esquiva, tece-o de sombras e segredos e prepara-o para os temores da noite. A
memória enumera conhecidos que habitavam as ruas e que agora não habitam em
lugar nenhum. A cidade é uma sexta-feira santa sem um domingo de ressurreição
no calendário.
terça-feira, 1 de janeiro de 2019
Festividades
As festividades são exercícios difíceis, exigem recursos de
paciência cujo limite raramente se adivinha, trazem consigo promessas que nunca
cumprem. Agora que declinam e se resguardam na noite que dura um ano, para
depois voltarem com os seus cantos de sereia, o espírito torce os seus dedos
vazios e procura, nem sabe bem onde, a necessidade de todos estes folguedos e
júbilos. Que alma vazia habitará os nossos corpos para que do nascimento de uma criança e do
arrancar de folha de um calendário se faça motivo de tantas provações e
penitências?
segunda-feira, 31 de dezembro de 2018
O castelo
Ao fundo, sob o punhal do sol, o castelo reverbera. Há no
brilho da pedra uma tal indiferença que o olhar recua e dobra o joelho em busca
de piedade. Habituamo-nos às coisas e não escutamos a sua linguagem. São tantos
os anos que passaram por aquelas muralhas, que é desdém o que elas destilam
perante a nossa pobre azáfama com o fim de ano e o começo de outro. Para quê?,
parecem elas perguntar, enquanto se deixam embalar pelo vento leve que, como um
amante embevecido, as toca com cuidado. Na avenida, mesmo aqui em baixo, as
pessoas passam, cumprimentam-se, desejam-se bom ano, mas ninguém vê o riso
escarninho que se solta daquelas ameias que já viram de tudo. Rasgadas pela
lâmina solar, sangram passados remotos e ilusões perdidas. Tal como nós.
domingo, 30 de dezembro de 2018
Uma tarde
Passei a tarde, com as minhas netas, entre o Arripiado e
Constância. O sol invernoso erguia-se magnífico sobre o Tejo e tudo estava
tingido por uma serenidade que se inclinava para a melancolia. As águas corriam
suaves, um barco desprendia-se do cais para levar os visitantes ao castelo de
Almourol, os chorões, como súbditos perante o senhor, dobravam-se e tocavam com
os ramos no chão. Enquanto as crianças corriam, nada bulia e o espectro da
perfeição perfilava-se no horizonte, uma garantia de que Deus existe e a terra
pode ser um paraíso. Cheguei a Torres Novas já a noite caía. Então, as luzes de
Natal atingiram-me como os estilhaços de uma bomba e acordaram-me da
irrealidade onde o Tejo me tinha mergulhado. Contemplei-as, infeliz. Talvez
Deus não exista e, por certo, aqui não é o paraíso, pensei, enquanto entrava na
garagem.
sábado, 29 de dezembro de 2018
Manhã de sol
A manhã deslizou sem
sombras. Saio e o dia anuncia o Ano Novo, como se este fosse uma promessa.
Percorro a avenida. As pessoas trazem ainda no rosto o cansaço do Natal, esse
exercício de penitência disfarçado de alegria. Vou vazio e nenhuma ideia se fixa
na mente. Sou um espelho e reflicto aquilo que passa diante de mim. Um cão a
ganir, os carros em marcha lenta, gentes que entram ou saem dos cafés. Paro
diante de um e hesito em entrar. Vejo, ao fundo, alguém conhecido. Sigo
caminho. Não estou sociável e o sol, o sol de inverno, chama-me. Pertenço mais
ao reino vegetal do que ao social, pensei, não sem contentamento. Vou passeio
fora como se vegetasse, ou fosse um espelho, ou um grão de areia perdido à
beira do oceano. A cidade curva os ombros sob o peso da luz, uma criança corre
num relvado. A mãe olha de dentro do seu desvelo. E isso basta.
sexta-feira, 28 de dezembro de 2018
Culpa
As minhas netas, montadas nas bicicletas e de capacetes nas
cabeças, voltejavam sem parar no espaço público que separa os prédios da zona
onde vivo. Eu estava ali, especado, a apanhar o sol frio do fim da tarde, com o
duplo papel de polícia sinaleiro e segurança privado. E enquanto ia dando
indicações ao trânsito e vigiava os perigos que poderiam surgir, a minha
memória recordava os dias em que tinha a idade delas e ia para rua. Sem
sinaleiros nem serviços de segurança. Talvez uma mãe por outra assomasse
discreta à janela, mas a última coisa que queríamos era que nos orientassem os
passos ou vigiassem os projectos. A rua era um território livre de ameaças, a
não ser algum polícia que pudesse aparecer para nos levar a bola, como
exercício de autoridade e manifestação de despotismo. O azul do céu de inverno
era, naqueles dias, tão puro como o de hoje, mas as mentes dos adultos de então
eram, incomparavelmente, mais inocentes e límpidas do que as nossas. A culpa
que nos habita faz-nos temer sempre o pior.
quinta-feira, 27 de dezembro de 2018
Um passeio na manhã
Nas ruas, um manto de tristeza abate-se nas árvores
desfolhadas pela invernia, enovela-se nas faces de quem passa. Os carros gorgolejam
indiferentes, motores a rezar o responso, faróis como velas a iluminar um altar
sem Cristo nem santos. Os ciprestes anunciam o cemitério e a cinza do dia, tingida
pelos odores oleosos da morte, ergue-se sobre a cidade, rumoreja traições e
desditas, poisa nas casas escalavradas, roídas pelo tempo, suspensas no punhal
do abandono. Encolho os ombros, olho a desventura a porejar em portas que já
não se abrem, vejo a morte a pairar em paredes sulcadas de rugas. Nenhuma
maquilhagem as disfarçará. O tempo é um cavalo negro e corre à desfilada para
dentro do meu esquecimento.
domingo, 30 de setembro de 2018
Confissão
Numa conversa ficcionada, o psicanalista e escritor Irvin
Yalom faz dizer ao dr. Breuer, em resposta a uma pergunta do dr. Freud, que
teve “católicos como pacientes que, embora agnósticos, praticavam a confissão”.
E isso, a confissão, fez-me lembrar o crepúsculo que cai sobre a cidade, esse
momento que ainda buscamos uma réstia de luz antes que a noite chegue. Talvez a
prática da confissão – mesmo por agnósticos ou até por ateus – seja isso, uma
necessidade de agarrar a pouca luz que se tem, não deixar que a noite venha e
tudo se torne turvo, como as ruas que vejo, agora que o sol se pôs e todos os gatos
são pardos.
sábado, 29 de setembro de 2018
Memória
Por vezes, caminho dentro do meu esquecimento. Uma rua onde
não passo há décadas, pessoas que morreram até na minha memória, um dia de
tempestade quando era pequeno, o som que vinha do rádio em casa dos meus pais,
o vento que erguia turbilhões de poeira no pátio da escola. E assim que vou
desbravando essas estranhas avenidas esqueço-me do lugar onde estou, daquilo
que faço, de quem sou. Então oiço um cântico de alegria, mas logo a memória, com
a sua rudeza canalha, atira-me para o presente, empurrando-me para o fundo da
minha própria pele. Talvez sobreviva, penso e calo-me a olhar o horizonte.
sexta-feira, 28 de setembro de 2018
O castelo
Quando passei na avenida, o castelo espiava a vida cá em
baixo com uma indiferença feita de pedras e anos, um rosto sem ademanes nem
trejeitos, talvez com uma ou outra ruga de comiseração. Terá razão, pensei. Já
viu muitas coisas e há-de pensar que aquilo que nos ocupa e faz ferver de
indignação ou de entusiasmo não passa de poeira, e o pó logo há-de assentar sob
a copa dos castanheiros, sem que alguém se lembre dele. E isso deu-me uma
estranha alegria e a certeza da irrelevância daquilo que me invade os dias ou a
insignificância da minha própria existência. Não há como um velho castelo para
nos devolver à poeira da realidade. Ri-me, grato, e continuei o caminho.
quinta-feira, 27 de setembro de 2018
O dia que se esconde
Entardece. O dia, exausto e dorido, desliza pelos corpos e
procura a terra onde se esconderá no seio da noite. Foi isto que pensei,
enquanto olhava para um jacarandá em frente da janela e procurava, entre folhagem
e cápsulas secas, descobrir frutos ainda verdes. E enquanto o tempo escorria,
entregava-me a uma contagem silenciosa. Depois, esquecido da aritmética, saí de
onde estava, passei por gente arqueada pelo calor e entrei no carro. Vi um
cachorro de língua de fora, depois por um bando de escolares presos na
exuberância da adolescência, subi um viaduto e entreguei-me ao rally das rotundas. O pensamento sobre o
dia que se esconde na noite voltou-me e eu sorri com a inutilidade das coisas
que me ocupam o espírito. Pudesse eu ter grandes pensamentos, mas só os
pequenos nadas e as grandes inutilidade parecem encontrar casa em mim.
quarta-feira, 26 de setembro de 2018
Silêncio digital
Muito sofrida deve ser a vida de pessoas que, perante aquilo
que as desgosta, desatam de imediato a insultar meio mundo. Então nas redes
sociais a injúria está à distância de uns movimentos dos dedos. Uma contrariedade
na pequenina ideologia que habita aquelas cabeças e logo salta um chorrilho de
impropérios, uma mão cheia de ofensas, uma incapacidade de conter as emoções no
foro estrito da privacidade. Talvez a vida seja negra e uma necessidade de
gritar razões faça bem ao fígado, talvez. O mundo, porém, seria um lugar melhor
se esta gente calasse os dedos. O silêncio digital como caminho para uma vida
civilizada.
terça-feira, 25 de setembro de 2018
Europeu
Hoje de manhã, ao passar pela avenida, observei os
castanheiros. As folhas começam a amarelecer. Isso poderia ser um bom sinal,
mas não. Olhei para o céu e o sol brilhava raivoso, atiçado por algum deus
vindicativo. Lá anda o Outono disfarçado de Verão, pensei. Na sala de aula, as
temperaturas eram de tal modo elevadas que, desde o primeiro instante, perdi a
esperança de que alguma coisa conseguisse mover os neurónios de quem quer que
seja. Exultei, todavia, com o facto de termos um horário escolar como se
vivêssemos no centro da Europa. Não há nada como ser europeu, disse para comigo,
enquanto insistia em coisas tão interessantes como conceitos e proposições,
teses e argumentos. Os alunos abanavam-se, bebiam água e olhavam para mim com
um olhar de quem pede misericórdia. Resisti à manobra. Um europeu que se preza
não tem calor em Setembro.
segunda-feira, 24 de setembro de 2018
Palavras
Oiço vozes lá em baixo e, mais ao longe, ergue-se a gritaria
vinda de uma escola em tempo de intervalo. A inclemência do sol não chega para
tapar as bocas e reduzi-las à sombra do silêncio. Talvez seja esse o problema
da humanidade, a impossibilidade de manter a boca calada. Esse silêncio que
nunca chega aumentaria o valor das palavras, pois haveria um excesso de procura
para a escassez da oferta. Mas não, nunca conseguimos cerrar os dentes
devidamente. Com a produção sem freio que limite o desastre das vocalizações, nem
dadas queremos as palavras dos outros. Para ruído, e não pequeno, bastam as
nossas.
domingo, 23 de setembro de 2018
Começou o Outono
Ainda não me atrevi a pôr um pé fora de casa. O Outono, a
minha estação preferida, chegou rancoroso, pedras de sol na mão, facas afiadas
prontas a entrar pelas costas dos mais descuidados. Noutros tempos, pelo menos
aqueles que guardei na memória, a chegada do Outono, mesmo se havia sol e
calor, era acompanhada por um sentimento de despedida. Alguma coisa estava a
acabar. O que é tormentoso não é o calor, mas chegar ao dia de hoje e
pressentir que tudo vai continuar. Um sol inclemente, as temperaturas bem acima
dos 30 graus, os incêndios a crescer dentro das florestas, o cansaço dos corpos
batidos pelo desvario solar. Chego à janela e espreito a avenida. Os prédios amolecem, as paredes exsudam, as árvores ajoelham-se à procura de água fresca.
Depois, sento-me com um romance de Cormac McCarthy na mão. Olho a capa e vejo nela
uma paisagem de Outono. Atiro-o para cima da secretária e, como um cão exausto,
rosno: estou farto de provocações.
sábado, 22 de setembro de 2018
Uma justiça infalível
Há pouco tive de ir à farmácia. Manter a tensão arterial
dentro de valores aceitáveis é um exercício de minúcia e persistência, um
compromisso entre um ritual religioso e a fé na ciência, pensei ao dirigir-me
ao balcão. Uma rapariga de bata branca atendeu-me com bonomia, talvez com a condescendência
de quem ainda não tem idade perante aqueles cuja idade se mede pelo número de
medicamentos que toma. Também eu já pertenci ao grupo dos sem idade, disse para
comigo, e talvez houvesse em mim condescendência para aqueles que a tinham,
talvez. Na rua, ao caminhar sob a sombra que as árvores projectavam no passeio,
constatei que havia no mundo uma justiça infalível, enquanto me dirigia para
casa com o colírio que me há-de pôr em ordem as fantasias exaltadas do sangue.
sexta-feira, 21 de setembro de 2018
Depois de almoço
Podia desculpar-me com o calor afrontoso que persiste em
colonizar este sítio onde me cabe viver. Seria faltar à verdade. A realidade é
que as coisas que me interessam talvez
não me interessem assim tanto. Se num daqueles dias, como o de hoje, posso
sentar-me, depois de almoço, em frente ao computador para ver ou fazer alguma
coisa que me interesse, o certo é que, passados alguns minutos, adormeço. Não
se pense que é por falta de frugalidade na refeição, não é. As coisas começam a
desvanecer-se, os olhos a arder, as pálpebras a cerrarem-se. Então, a cabeça
descai, o queixo choca com o peito e ali fico até que a dor no pescoço se torna
insuportável e acorde, a praguejar com a idade, o mundo e a sua falta de
interesse. Só me falta ressonar, pensei há pouco. Uma voz vinda de outro lado,
como se me lesse o pensamento, tira-me as ilusões. Tens estado a ressonar. Não
ouvi nada, respondo não sem ponta de azedume.
quinta-feira, 20 de setembro de 2018
Exuberância
Oiço uma voz animada, dentro de
um grupo, no outro lado da rua. Não entendo o que diz, mas não lhe falta
entusiasmo. Os meus olhos saltam da sombra das árvores a crescer do chão para
os gestos de uma das mulheres. O homem, silencioso, parece atento. Talvez já
esteja habituado à exuberância e esteja a fingir que não está a li. Os carros parecem
vermes perdidos na crueza do alcatrão. Uma carrinha, vagarosa, pára e interpõe-se
entre mim e o grupo. Penso que vou perder alguma coisa essencial, mas logo a paisagem
fica desimpedida. Consigo perceber a tonalidade dramática da voz, mas não as
palavras. A outra mulher, por vezes interrompe, mas logo a sua voz morre
afogada no mar exaltado do discurso da primeira. A vida é assim, pensei. Cheia
de dramas e narrativas exuberantes para acrescentar dor aonde ela não existe. O
homem tira as mãos do bolso, diz qualquer coisa e afasta-se. A mulher cala-se,
enquanto as sombras saltam para dentro da minha escuridão. A cidade parece
imutável.
quarta-feira, 19 de setembro de 2018
Resignação
O calor desliza das paredes, ergue-se em direcção ao tecto e
cai sobre as cabeças com um estrondo feito de silêncios, cansaço e um triste
aborrecimento. Começaram as aulas e o país descansa. Os pais podem retomar as
suas vidas interrompidas por essa estranha intromissão que a presença dos filhos em
férias sempre provoca. Eu cumpro com zelo as minhas funções. Falo sobre
conceitos, problemas, teses e argumentos. Proponho exercícios e eles abanam-se,
suspiram, mexem-se nas cadeiras, torcem os dedos e olham-me resignados, como se
soubessem que estão perante uma inevitabilidade. Olho para a rua. Ao longe, a
pedra baça do castelo reverbera sob o chicote da luz solar. Quando a campainha estilhaçou
o silêncio, ao vê-los abatidos pelo calor e submetidos à canga das mochilas, pensei que a resignação é a pedra angular da escola neste pobre país.
terça-feira, 18 de setembro de 2018
Os loucos
Há lugares onde se enlouquece rapidamente ou então que
atraem os que, apesar de não o parecerem, são já loucos. Esses sítios, mais que
um céu nublado e escuro que ofusca a luz, são buracos negros que a tudo devoram.
Os que habitam ali, tenham enlouquecido depois de entrar ou chegado já loucos, trazem
no coração o desejo ardente de espalhar a sua loucura por todo o lado que está
sob o seu império. E como eles gostam de imperativos, como odeiam o que é
diferente, qualquer alternativa à mania que os consome, qualquer vislumbre de
sensatez. Num primeiro momento, ainda ocultam do público a doença, mas logo o
entusiasmo próprio dos maníacos cresce e se abate como uma guilhotina sobre
todos os que pensam. Decapitar, decapitar! Eis a palavra de ordem dos déspotas
da insanidade. E a loucura vai-se expandindo, toma por dentro as instituições,
as pessoas, a réstia de luz que bruxuleia ao longe. Os loucos, possuídos por um
demónio contumaz, não dormem e quanto mais enlouquecem os outros, mais ávido é
o seu desejo por mais e mais demência. Inesgotável é o apetite que os consome.
segunda-feira, 17 de setembro de 2018
De janelas abertas
Abri as janelas para que o ar da manhã refrescasse a casa.
Lá fora, as árvores pareciam petrificadas, sem que uma brisa lhes movesse as
folhas. Em vez de ar fresco, entrou uma mosca e a textura do dia com as suas
garras de luz e calor. Dois pombos voaram de um telhado para o outro, enquanto o
tilintar abrupto de garrafas anuncia que o despejo do vidrão da esquina. Agora,
algumas nuvens escondem o sol e em tudo isto não há glória nem grandeza, apenas
o ronronar monótono da vida sobre o alcatrão do tempo.
domingo, 16 de setembro de 2018
Tarde de domingo
A tarde corre sorrateira, enquanto as pessoas, submetidas ao
império do calor, ruminam vagarosamente o resto de domingo. Amanhã, a vida
espera-as com uma faca afiada, pronta para ser cravada nas costas dos mais incautos.
Não fará sangue, mas não faltarão dores em corações trespassados. Afasto estes
pensamentos, e concentro-me no medrar das sombras. Desprendem-se dos prédios,
das árvores, de qualquer paliçada que separe um território de outro. Algumas
pessoas passam. Vão vagarosas, como se estivessem a chegar de uma longa
jornada. Uma mulher ajeita o cabelo, um cão alça a perna junto ao tronco de uma
árvore e a vida desliza. Ao longe, o ronco de uma moto. Ténue, mas logo aumenta
dentro dos meus ouvidos, como se o grande desígnio fosse ensurdecer-me. A
cidade murmura irritadiça. Em segredo, o poente adolesce, anunciando
uma trégua passageira.
sexta-feira, 14 de setembro de 2018
Tiranias
O único bem que um ser humano dispõe é o tempo, essa duração
cujo segredo os deuses nunca revelam, ponderei ao sair de casa. A manhã estava
fresca e permitia que o cérebro se dedicasse a pensar, exercício que deveria
distinguir a nossa das outras espécies. Enquanto ia meditando, olhava para as
pessoas. Apressadas, quase corriam, como se temessem não a falta de tempo mas o
calor que, lá mais para o fim da manhã, haveria de irromper para esmagar o
cérebro e o coração de cada um. E enquanto deixava o carro deslizar, o
pensamento fluía como as águas de um rio, por vezes sobressaltava-se, outras
era tomado pela certeza. E assim caminhava, entre dúvidas e convicções, para a
foz, esse momento em que alguma coisa se revela. Não há maior tirania do que
dispor do tempo dos outros a seu bel-prazer, murmurei entre dentes. Pobre país
este em que o prazer maior está em roubar o tempo dos que não se podem
defender. No semáforo, um carro travou mal caiu o amarelo. Quase ia batendo e,
nessa preocupação, tudo se dissolveu. Talvez o pensamento não seja uma vantagem
competitiva, talvez não.
quarta-feira, 12 de setembro de 2018
O que aprender
Agora que o exercício pleno das minhas funções se aproxima,
pergunto-me, enquanto vou cidade fora sob a inclemência do calor, o que seria
mais importante ensinar. E aquilo que desliza pelo meu pensamento, enquanto a
vista percorre a avenida, é simples. A primeira coisa que os seres humanos deveriam
aprender seria não ter expectativas acerca de alguém ou de alguma coisa. A
segunda, a do exercício contínuo do esquecimento da própria possibilidade de se
esperar. Assim, ficariam livres para contar apenas com os seus parcos recursos.
Então, tudo o que lhes adviesse, sem que o esperassem, aceitá-lo-iam como uma
dádiva que se agradece e retribui. Cheguei, paro o carro e saio para o sol. A
escola verga-se sob a aspereza de um calor fugido dos infernos. E o que pensei
há momentos desvanece-se já, como se a verdade apenas pudesse viver no silêncio
do esquecimento.
domingo, 9 de setembro de 2018
Setembro
Fui há pouco à rua e o domingo pareceu-me soturno. Talvez
fosse eu que estivesse soturno, com a despedida das netas, depois de uma semana
animada pelo frenesim da sua presença. Setembro é um mês difícil, pensei. Há
nele sempre uma fonte de desilusão. Quando chega, o corpo saúda-o como um
salvador, mas também o corpo se precipita e vive equivocado. Há pessoas que sonham
outonos eternos, uma temperatura suave, as primeira chuvas, a queda das folhas,
uma melancolia aprazível que fosse uma entrada para o jardim do Éden. Este,
porém, está guardado por querubins de espada flamejante e Setembro é um
repositório de traições. Esconde, no seu íntimo, um punhal terrível que, na
primeira oportunidade, há-de cravar nas costas dos mais avisados. Encolho os
ombros e regresso a casa, pisando calmamente as pedras da calçada, enquanto
observo o recorte das sombras que os prédios projectam no meu caminho. Amanhã
será outro dia, murmurei para comigo. E a banalidade da frase reconciliou-me
com este domingo sem futuro.
sábado, 8 de setembro de 2018
Xadrez e sexo
Há pouco fiquei perplexo ao ler que em Tallinn, Estónia, é
proibido jogar Xadrez durante o sexo. Não pense o leitor que a minha
perplexidade se deve a um acesso de incredulidade que me tenha levado a duvidar
da notícia. Embora não a tenha ido confirmar, estou certo que não faz parte das
célebres fake news que tanto
atormentam certas personagens pouco dadas ao Xadrez. A perplexidade também não nasce de achar bizarros os legisladores
estonianos. Se na Escócia não é permitido conduzir vacas bêbado e em Portugal
não se pode urinar no Oceano Atlântico (o que acho muito bem), então também é plausível
que, numa parte do báltico, não se possa mover o peão enquanto a rainha está a
arfar. Tudo isto é natural e, para qualquer pessoa sensata, bastante óbvio.
O que me deixa perplexo é antes de tudo a magna questão de
saber se à relação entre fazer sexo e jogar Xadrez se aplica, ou não, a
propriedade da comutatividade. Portanto, a minha perplexidade é do âmbito das
matemáticas e não da inverosimilhança da notícia. Será que, neste caso, a ordem
dos factores também não altera o produto? Traduza-se: será a mesma coisa jogar
Xadrez enquanto se faz sexo e fazer sexo enquanto se joga Xadrez? No círculo
dos meus amigos e conhecidos, há quem defenda, e não são poucos, que neste caso
a ordem dos factores não altera o resultado. Tanto faz jogar Xadrez durante o
acto sexual como praticar sexo enquanto, calma e pensadamente, se disputa uma
partida. Se se estiver em Tallinn, o resultado é cometer um crime e,
eventualmente, ser punido pelo duro braço da lei.
Por mim, depois de muito meditar, inclinei-me para a
inexistência de comutatividade no presente caso. Uma coisa é jogar Xadrez
enquanto se faz sexo e outra, muito diferente, é fazer sexo enquanto se joga
Xadrez. Neste caso, não há prejuízo de terceiros. O adversário pode até
beneficiar do seu oponente estar centrado na vexata quaestio do orgasmo e não ser capaz de perceber que o peão
está a preparar-se para comer a Rainha. Eu sei que os peões não devem comer rainhas,
mas a vida é o que é, e a nobreza já não é o que era. Estou em crer que nem os
estonianos seriam capazes de achar isto um crime. Uma coisa bem diferente,
há-de o leitor convir, é estar, depois de passada a provação dos preliminares,
em pleno amplexo amoroso, entre gemidos, sussurros, gritos e murmúrios, com a
tensão a crescer, o desejo a transbordar, a sua parceira ou parceiro a entregar-se a um violento orgasmo e você, ao mover a torre para a casa h8, exclamar não sem uma ponta de cinismo: Xeque-mate! Só
pode dar cadeira.
sexta-feira, 7 de setembro de 2018
Ser estrangeiro
Quase no início do seu livro sobre Constantinopla, Théophile Gautier assevera que “para se viajar num
país é preciso ser-se estrangeiro: é a comparação das diferenças que produz as
observações”. Será também isso válido para as cidades? Como poderei observar a
cidade – o castelo, a praça 5 de Outubro, a avenida marginal, as águas do
Almonda, o velho casario – já que não sou estrangeiro? Talvez Gautier, quando publicou
o seu livro, não tivesse ainda idade suficiente para perceber uma outra coisa,
para compreender que “o passado é um país estrangeiro: lá, fazem as coisas de modo
diferente” (Leslie P. Hartley, Go-Between).
E é assim, por ser alguém mais do passado do que do presente, que me sinto
estrangeiro na minha própria cidade, caminho por ela e as observações nascem da
comparação entre essas duas pátrias que o tempo afasta irremediavelmente uma da
outra. A avenida, com os seus castanheiros e o jardim a bordejar o rio, já não
é a mesma avenida, nem a Praça que há pouco vi é a mesma praça que frequentei
há muitos anos. Vim desse passado, onde as coisas se faziam do modo diferente,
e por isso sou cada vez mais um estrangeiro. É só uma questão de tempo para que
qualquer um se torne estrangeiro na sua própria terra.
quinta-feira, 6 de setembro de 2018
As lentes Mercedes
Um oftalmologista desavisado decidiu
receitar-me óculos com lentes progressivas e assim substituir os três pares de
óculos que compunham a minha colecção. Uns para ler, outros para o computador e
outros ainda para ver ao longe. Ainda argumentei que, provavelmente, não me
iria dar bem com a progressividade – ou o progressismo – das lentes, mas ele
insistiu, perorou sobre as manobras que tinha de fazer para gerir tantos
óculos, e eu cedi. Vendo-me vencido acrescentou que tinham de ser umas lentes
de uma certa marca especial e não dessas que saem mais em conta. Deu uma
explicação técnica que me soou como se fosse chinês. Vendo o meu ar incrédulo
ou estúpido, disse-me: olhe, é como comparar um Mercedes com um Renault 5. Num
Renault 5 também vai a Lisboa, mas não é a mesma coisa. Pois não, assenti,
entre divertido e ingénuo, imaginando-me já a conduzir umas lentes topo de gama.
E lá comprei os óculos com lentes tipo Mercedes. O resultado nunca deixa de me
espantar. Se quero ler, deixo o Mercedes na garagem e vou num velho Renault 5, de
lentes riscadas e que só serve para ver ao pé. O pior, porém, não é isso. Há
pouco decidi ir de lentes Mercedes à rua e pensei que tinha enlouquecido. O que
era uma rua normal, agora parecia-me estar cheia de crateras. Ao avançar, via
um grande desnível, calibrava o pé para esse desnível, mas não havia cratera
nenhuma e o passo saía em falso. Por duas vezes ia caindo, enquanto tentava
andar sem espreitar para o chão. Ao fim de cinco minutos, decidi que o melhor
era pôr os óculos de lentes Mercedes de lado e andar mesmo a pé. A viagem é
mais segura e Torres Novas deixou de me parecer uma cidade da Síria após um
bombardeamento.
quarta-feira, 5 de setembro de 2018
As horas
Hoje, ao atravessar a cidade, senti-me perplexo, como se, de
um momento para o outro, me tivesse perdido em ruas que percorri vezes sem
conta. Quando, passados instantes, recuperei o sentido de orientação, não
deixei de me interrogar sobre a razão desta súbita incongruência. As coisas
aqui quase não mudam e quando o fazem é porque se tornam decrépitas. Deixa-se o
tempo marchar sorrateiro sobre as casas e estas, lentamente, começam a
desfazer-se, sem que ninguém dê por isso. Então, tudo se torna tão irreal que,
mesmo o mais sólido dos seres humanos, não resiste e se perde no poço fundo
daquilo que conhece, esse abismo onde a memória se esfarela e se entrega a
corrupção trazida pelas horas, essas deusas vingativas que não largam os homens
e as suas pequenas obras.
terça-feira, 4 de setembro de 2018
Visco
O dia está viscoso, concedi, ao sentir o ar da rua tocar-me
a pele. De imediato se formou uma associação. Esse visco que adere aos corpos é
uma armadilha para capturar que tipo de aves? Será que ainda se sabe que se
utilizava visco para apanhar pequenos pássaros, os quais, de pés colados à
mistela, se entregavam não sem resignação ao destino? Não é que eu o tenha
feito, pois nunca fui dado à ornitologia ou mesmo a qualquer interesse pelo
mundo dos animais, mas havia quem se entretivesse a capturar, com esse ardil de
passarinheiro, pequenas aves. O destino destas nunca o soube. Uma coisa sensata
a de evitar excesso de informação sobre coisas que não nos dizem respeito. E,
perdido nestes pensamento, fui-me encaminhando para uma superfície comercial,
uma daquelas que enxameiam a cidade, cruzando-me com gente desconhecida, o que
me levou à constatação de que são cada vez menos as pessoas que conheço. Entrei
por uma daquelas portas que, guiada por um olho inexorável nascido do cérebro
de um bisneto de Bentham, abrem automaticamente. Fui apanhado pelo visco.
Afinal, o pássaro a capturar era eu, pensei não sem resignada condescendência
para com o meu destino.
segunda-feira, 3 de setembro de 2018
A realidade
Cheguei à janela e pensei: um tempo de tréguas. Até as ruas
me pareceram mais belas sob a luz cinzenta da manhã. Os carros, de vidros abertos,
passavam lentos, como se os condutores não quisessem perder o fresco que caía. Os
peões moviam-se com uma rapidez inesperada, numa cadência que só a sensatez da
meteorologia permite. Um belo dia, disse para comigo. E voltei para aquilo que
me ocupa. Sentei-me, mas como muitas vezes acontece, os olhos fecharam-se e um
mundo tecido de imagens assalta-me antes mesmo que tenha a possibilidade de o
enxotar para longe. Vejo carros que já não existem, pessoas que morreram há
muito, a velha ponte do Raro ainda sem o infeliz acrescento que a atormenta. E
ali, no meio dela, lá vou eu, sem pressa. Sei que pararei na montra de uma loja
e ficarei a olhar a capa dos livros que, contra a ordem das coisas, ali estarão.
Uma camionete dos Claras passa, largando uma baforada de fumo negra. Tusso e o
cheiro desperta-me. A realidade, em cima da secretária, espera impaciente por
mim. Não há coisa mais irreal do que a realidade, rosnei.
domingo, 2 de setembro de 2018
Um progresso
Felizes são os domingos que esquecemos que o são. Surgem
como uma manhã fresca, absortos e anónimos, para declinarem na preguiça das
horas. A segunda-feira será ainda uma espécie de limbo até que, cansado de
benevolência, o deus abrirá as portas do inferno. Outrora, as pessoas
endomingavam-se. Iam à missa, as que iam, algumas ao futebol ou ao cinema. Era
um tempo severo e as possibilidades de distracção, parcas. Quem viveu esses
tempos, percorre as ruas da antiga vila e imagina que, naqueles dias, era
feliz. Talvez fosse, talvez não. Muitas vezes confundimos a felicidade com a
escassez de anos, ou imaginamos que uma bravata juvenil é um feito só possível
naqueles tempos heróicos, que não voltarão. A passagem dos anos favorece a
tendência para a mitologia, torna até o mais insípido dos homens num mestre
contista, mas a realidade, com o peso do calcário, não deixa de aflorar aos
nossos olhos e de recordar que uma ilusão, por amável que pareça, não deixa
de ser uma ilusão. Seja como for, o facto de os homens se endomingarem menos
não deixa de ser um progresso moral da humanidade.
sábado, 1 de setembro de 2018
Dias assim
Passa pouco do meio-dia e lá fora estão 36o. A
temperatura há-de trepar até aos 40o, vejo anunciado num dos sites
que se tornou, para mim, de leitura obrigatória, o da meteorologia. Setembro,
esse mês em que cheguei aturdido ao mundo, apresentou-se sem máscara nem
misericórdia. Faço figas, penso coisas impróprias, ergo barricadas dentro de
casa, reduzo a luz exterior e só deixo que o mundo entre através do som. É um
universo de rumores, o ronronar dos carros ao longe, algum grito extraviado na
rua, o latido fraco de um cão exausto. Fecho os olhos e vejo o vapor a
evolar-se do alcatrão das ruas. Hoje proíbo-me a visita às janelas e tenho de
inventar aquilo que vejo. Conto as horas para que chegue a noite. Dias assim
são como uma doença. Há que esperar que passem.
sexta-feira, 31 de agosto de 2018
Agosto declina
Agosto chega hoje ao seu último dia. Entrega-se sem acinte
nas mãos de Setembro, mas jura lutar até ao fim. Eu levo-o a sério e deixo-me
tomar por uma nostalgia do tempo frio. A meteorologia promete 38o, o
que denuncia a malévolo intenção que se esconde na beleza do sol matinal. A
cidade está em plena azáfama. Lá em baixo, cortam a relva dos canteiros com um
barulho irritante. A vida nunca é como a desejamos, pensei. Os olhos descaem
para o estranho livro que estou a ler, mas o barulho não desiste. Chego à
janela e vejo um homem de maquineta nas mãos, enquanto o sol toca ao de leve o
cume das árvores que se erguem como uma floresta portátil na escola em frente. A
cidade desliza nos dedos do sol ao som triunfante de um hino da modernidade. Um
concerto para corta relvas e banda magnética, imaginei.
domingo, 17 de junho de 2018
A natureza das coisas
A cidade reencontrou-se com a sua natureza. Um calor seco –
quase que escrevia ‘um calor sórdido’, mas contive-me – caiu sobre as casas e
as ruas, tornando tudo mais lento. Atravessei a antiga vila para uma visita
familiar, mas logo me recolhi em casa. Aproveitei a tarde para acabar de ler Por favor, não matem a cotovia, de
Harper Lee. Nunca tinha lido. Quando as histórias dos Finch se acabaram, pensei
que este era um livro que deveria ter lido há muito, naquele tempo em que as
férias eram exercícios intermináveis e os dias de calor inclinavam o espírito
para a leitura. Há obras que se devem ler ainda num período de certa inocência.
De preferência, em dias de calor, quando estamos encerrados em casa, presos ao
rumor silencioso de uma pequena cidade exausta e de ânimo esvaído pela
inclemência do sol.
domingo, 10 de junho de 2018
A província
Este tempo taciturno cobre a cidade com um espesso véu de
melancolia. Atravessei-a há pouco e pensei que tínhamos sofrido uma regressão
no tempo, pois a tristeza que desce dos céus esbate as cores e dá a tudo um ar
cansado e arcaico. Eu sei que é uma ilusão, pois se tivesse havido uma
regressão tudo seria mais brilhante e animado. Observo os castanheiros da
avenida, a sua floração, este ano, é menos exuberante, penso. Nos passeios, um
ou outro transeunte vai temeroso e apressado. A província é um exercício incansável
de nostalgia e ruínas, a memória sombria de um mundo que acabou há muito.
sexta-feira, 8 de junho de 2018
Precariedade
É tudo tão precário, penso ao saber da morte de alguém que
conhecia. Tento prender o tempo com as mãos, mas ele escorre-me entre os dedos.
Um súbito raio de sol ilumina o casario, há paredes a cintilar, mas as brechas
já fazem o seu caminho, marcham hirtas segundo o calendário da ruína. Se passo
no centro antigo da cidade, o desconsolo inunda-me o olhar. Logo a razão me
aquieta. Também as cidades estão sob o império do tempo. O coração protesta,
mas a tirania que rege a vida é mais inflexível do que aquilo que supomos. Uma
nuvem interpôs-se entre o sol e os meus olhos. Onde havia cintilação há agora
uma cinza suave, secreta, precária. Oiço vozes e elas são já um passado que não
retornará, presas na ruína dos seus próprios sons, destroços de um desejo que o
tempo calará.
Um triste dia
Atravessei a cidade envolto no manto de tristeza que se desprende destes dias de Junho. E tudo me pareceu belo, quase perfeito. As pessoas iam e vinham, os carros trotavam vagarosos pela avenida, o castelo erguido contra o tempo. Oiço alguém a lamentar-se da invernia primaveril, mas vejo-lhe no rosto o prazer deste tempo sem calor, de luz turva, de água leve que desce, hesitante como uma virgem, sobre a terra. O rio, esse velho espelho esfarrapado pelo tempo, devolveu-me a música melancólica que me rumorejava no espírito e eu respirei fundo, certo que também a beleza dessa hora se desvaneceria sem deixar uma sombra, um vestígio no vidro da história.
sábado, 2 de junho de 2018
Junho
Junho chegou e nem dei por Maio se ter ido. Foi sem uma
palavra, envolto em festividades, simulacros de um paraíso que se perdeu para
sempre. Os dias passam por mim, vão rápidos, presunçosos, cheios de eternidade.
Sinto a minha lentidão como uma sombra devorada pelo rancor do tempo. Nas ruas,
os transeuntes apressam-se, a festa aguarda-os no bulício da tarde. Esperam no
calor da multidão mitigar o frio que lhes habita a alma. Se alguém me
interpela, eu calo-me. Não por indelicadeza, mas por não ter nada para dizer.
Um pássaro canta na minha janela. Abro-a, o pássaro voa e o silêncio cai sobre
mim.
sábado, 7 de abril de 2018
Presunção
Não cozinhar pode ser uma virtude, mesmo num tempo em que o
saber fazer alcance elevada cotação no mercado em que todos vivemos. Foi o que
me ocorreu quando entrei num takeaway
e me vi rodeado de gente que me fazia passar pela ilusão de ser novo. E
enquanto as empregadas, com zelo e bonomia, iam despachando encomendas e
satisfazendo caprichos, eu sentia que os que me rodeavam, caso tiver sorte, são
o meu futuro. Quando saí para a ira ventosa da rua, ri-me com a minha
presunção. Não, não são o meu futuro. São o meu presente. Fechei a porta do
carro, pu-lo a trabalhar e o rádio devolveu-me uma oratória de Händel, O
Messias, precisamente. Bem preciso de quem me salve, pensei ao desfazer uma
curva em direcção a casa. A chuva caía lúgubre e hesitante. Mais logo, talvez o
sol rompa a muralha das nuvens. O melhor mesmo, para não cair em metáforas
mortas, seria não pensar, pensei.
sexta-feira, 6 de abril de 2018
Elegia
Estava a ver a chuva e a pensar na cadência de um poema. O
segredo da poesia estará em fazer que o poema encarne o ritmo da língua. Então
ele descerá sobre o espírito como a chuva sobre a terra, umas vezes leve e brando;
outras, exaltado ou melancólico. Hoje, a chuva é uma elegia, cai triste,
dolente, dolorosa, e as pessoas olham-na com compaixão e deixam escapar do rosto
o desejo que ela parta. A cidade arrasta-se no cansaço de uma Primavera ainda
inclinada para o mistério do Inverno. Ah se o ritmo do dia fosse outonal, ainda
seria possível crer no paraíso, segredei a mim mesmo, enquanto voltava costas
ao mundo.
quinta-feira, 5 de abril de 2018
Fidelidade
Ontem, ao passar pela Lagoa de Óbidos, lembrei-me das dores que
atormentaram Agamémnon, ao partir para guerra, tão ansioso do sangue dos
troianos e do prazer da vingança. A certa altura, vi umas velas de windsurf
empurradas sem furor pela brisa vinda do mar, enquanto alguns guerreiros, com a
sabedoria dos juncos, se equilibravam sobre as pranchas. Há muito que não via
gente a praticar windsurf, pensei com tristeza ao olhar o descolorido daquelas
velas. Depois, deu-se um curto-circuito e perguntei-me o que sucederia se o
vento desaparecesse e uma acalmia sem fim caísse sobre a lagoa. Haveria uma
Ifigénia para sacrificar por um Agamémnon exaltado? O carro rolava devagar e
dócil como as asas de uma borboleta ao sol da manhã. Ao perder o bando de
velejadores de vista, logo me esqueci de Ifigénia, de Agamémnon e do cruel
destino que foi o deles. A fidelidade é um exercício difícil, dissertei ao
recordar-me há pouco de tudo isso. O melhor será pensar noutra coisa.
quarta-feira, 4 de abril de 2018
Salvação
Ao fundo, os olhos param nas dunas de Salir. Depois rodam,
rodam e encontram a entrada da baía. O mar, para além do pórtico, está exaltado,
mas tudo na praia permanece tranquilo. Por vezes, vou a S. Martinho do Porto,
nos dias em que suspeito haver por lá pouca gente, e deixo-me cercar pela
lentidão com que as pessoas passeiam pela marginal. Olho as águas paradas, o
balançar quase imperceptível dos barcos, e deixo que o sol caia sobre mim. Ali,
enquanto caminho, posso quase conceber uma teoria da perfeição ou descobrir que
toda a virtude reside na imobilidade. Um pai e uma mãe, com duas crianças e um
cão, talvez alemães, passam por mim. O cão ladra, mas a família segue em
silêncio, ele sorumbático e ela espinafrada, como diria a minha neta mais nova.
E eu silencio-me dentro do silêncio deles. Espero um milagre qualquer, mas ele
não chega. Nunca sei qual é o caminho da salvação.
terça-feira, 3 de abril de 2018
Dias assim
Há dias assim. Ouve-se uma música, Sérgio Godinho e Ivan
Lins, uma nostalgia inútil desce sobre nós e lembra um tempo vivido, dias que
não voltarão e que não são mais que breves traços mnésicos de coisas encerradas
no cofre-forte do passado. A canção acabou e uma espécie de libertação abriu-se
no peito. O sol triste ainda não se livrou, para meu contentamento, da semana
santa. A vida decorre sem mácula ou perturbação, as pessoas passam apressadas
pela avenida, outras ficam em casa temerosas do tempo. Um casal vai devagar de
mão dada, enquanto dois pombos tracejam o céu mesmo em frente dos meus olhos.
Não sei que nome hei-de dar a dias assim. Cada vez sei menos coisas,
felizmente.
segunda-feira, 2 de abril de 2018
Abril
O dia convida a não sair de casa. Resisto à tentação e
submeto-me à necessidade de fazer parte do mundo. A cidade ainda não acordou do
longo fim-de-semana. Carros passam vagarosos, alguns param. Intermitente, o
símbolo de uma farmácia insiste em inundar-nos os olhos de verde, a esperança
nascida de uma química misteriosa, um milagre em cada receita. Uma mulher de
calças e sapatos altos encarnados sobe com dificuldade os seis degraus que a
hão-de levar a um dos bancos. Sigo-a com o olhar. Empurra a porta, depois de
passar o cartão, e é devorada pelo templo dos nossos dias. No rumor da rua não
soa qualquer requiem, a morte é uma banalidade que dispensa a música. Basta
entrar pela porta certa. Sigo pelo passeio. As árvores estão despidas e ameaça
chover. Abril é sempre um árduo exercício.
domingo, 1 de abril de 2018
Na rua
Oiço crianças a gritar. Estão lá em baixo, correm e gritam
como se fossem crianças a correr e a gritar. Nunca deixo de me espantar por
ainda existirem crianças a correr e a gritar nas ruas. A vida é tão asséptica
que o que era normal tornou-se excepção, acontecimento. O sol parece sofrer de
anemia, e assim não se ouve nenhuma mãe a ordenar que ponham o chapéu. Talvez
as mães já não se importem com chapéus e se ocupem de outra coisa sentadas à
mesa do café. Novos gritos. Espreito pela janela mas não vejo as crianças,
estarão do outro lado. Num canteiro relvado há um círculo de madeira no centro,
o que ficou de uma palmeira cortada rente ao chão. Uma nuvem mais forte passa
diante do sol e parece Sexta-feira de Paixão e não Domingo de Páscoa. O dia
levita e inclina-se sobre a cidade. Vai devorá-la, desconsolado, até que a
noite chegue e o liberte deste seu pesar. Gritaram, mas não percebi o quê. E tudo
se enrodilhou na ratoeira do silêncio.
sábado, 31 de março de 2018
Leituras
Não leio em cafés ou na praia. Por vezes, tento mas sou de
imediato derrotado. Ainda pensei pegar no livro e ir sentar-me no café ao lado
de casa. Espreitei pela janela e desisti. Um excesso de humanidade alegre e
ruidosa, presa às suas ilusões e ao vazio que nos coube em sorte. Perderia
outra vez. Sento-me à secretária e começo a ler O Fim dos Tempos Modernos. Hoje em dia, desconfio, ninguém lê
Romano Guardini. O livro foi publicado em 1950 com o título Das Ende der Neuzeit. Leio a tradução
francesa de 1953, tudo anterior ao meu nascimento, pensei. Não admira que já
ninguém saiba sequer quem foi Guardini. Inclino-me para o livro, mas as
metamorfoses do sol perturbam-me a leitura. Brilha e logo se esconde atrás de
alguma nuvem, como se quisesse jogar às escondidas comigo ou cantar aleluias. Não
quero. Fico a olhar ao longe, o hospital parece uma alma penada, tragado pelo
bolor. Os cedros do pequeno bosque da escola em frente crescem vigorosos. Pena
que não existam também ciprestes, concluí e peguei no livro.
sexta-feira, 30 de março de 2018
Dia da paixão
Tive de ir fazer algumas compras. As pessoas embrulham-se
nos afazeres que a necessidade impõe, gratas pelo feriado, indiferentes à razão
que lhes permite estarem ali. Vejo gente conhecida há décadas, troco ironias e
amabilidades, desejamo-nos boa Páscoa, submetidos ao império do hábito, e cada
um segue o seu caminho. Chego à rua e o sol hesita entre esconder-se e brilhar,
deixo-me levar pela a aragem e penso que não há metáfora que nos permita
descrever aquilo que vemos nem metonímia que autorize um mortal a explicar a
realidade. Os carros passam e nesta constatação está todo o meu saber e toda a
minha cegueira. O dia desliza lentamente para dentro da cruz de um Cristo
abandonado na prateleira do supermercado.
quinta-feira, 29 de março de 2018
Livros
Fui comprar livros em papel, já não o fazia há algum tempo,
rendido que estou, e há muito, às vantagens dos e-Readers. Não vou argumentar sobre questões de fé. Comprei dois
livros da Agustina Bessa-Luís editados pela Relógio d’Água e três de poesia.
Omito os autores. Saio com os livros num saco de plástico e deixo-me embalar
pelo sol de Março, enquanto as pessoas passam apressadas em direcção ao grande
fim-de-semana. Alguém me cumprimenta, trata-me pelo nome. Retribuo, mas não sei
o nome da pessoa. Mascaro o esforço com um sorriso e desejamo-nos boa Páscoa.
Um final feliz, pensei, não sabendo se me esqueci do nome ou se nunca o soube.
É melhor não me preocupar. Sinto o sol a entranhar-se na pele, as sombras a
crescer para tarde. Estou de passagem, ouvi-me dizer. Encolhi os ombros. Chega
de banalidades. Tenho alguém à minha espera e apresso o passo ao atravessar a
rua.
quarta-feira, 28 de março de 2018
Tempo
As horas deslizam sorrateiras e cravam-se na garganta para
nos sangrarem. Imagino então o sangue a deslizar, a empapar a roupa, enquanto
olho para a rua e vejo um gato à beira do passeio. Hesita longamente e, depois,
dá uma rápida corrida para o outro lado da avenida, enquanto um carro trava e
eu vejo tudo isso, imaginando o sangue a pingar no soalho, os minutos a passar
mais apressados que o gato. Se fosse possível libertarmo-nos do punhal do
tempo, medito sem esperança, tudo teria sentido. Um carro passa apressado,
buzina, e eu perco de vista o gato. É sempre assim, nunca deixamos de perder de
vista aquilo que é mais importante. Talvez chova mais logo, penso ao olhar o
céu cinzento.
terça-feira, 27 de março de 2018
Sol quaresmal
Hoje está um sol de Quaresma, pensei ao sair de casa. Um sol
quaresmal, mas que coisa será essa? É um sol que brilha sem exuberância, que se
derrama sobre os prédios com uma leve tristeza, que toca os espíritos fazendo
lembrar umas vezes a solidão e outras a promessa de um grande acontecimento. A
cidade não sai diminuída com este sol. Estacionei o carro ao lado da Igreja de
S. Pedro. No pequeno percurso que tive de fazer a pé, tudo estava menos
deprimente do que é habitual. Graças ao sol. Eu sei que estamos em tempo de
ressurreição e que não devemos projectá-la na realidade, mas temos de ser
compassivos. Sempre se pode imaginar que a velha vila, aquela que foi
exuberante, há-de ressuscitar ou voltar numa manhã de nevoeiro. Não
ressuscitará nem voltará, claro. As casas estão cansadas, as pessoas exaustas e
o mundo tem mais que fazer do que satisfazer os desejos de quem, tocado pelo
sol, se deixa arrastar pela melancolia que cobre as horas. Não haverá nenhum
grande acontecimento. E isso pode não ser mau.
segunda-feira, 26 de março de 2018
Sono
Se estou exausto, um dos meus sítios preferidos para
adormecer é em frente ao computador. Chego, sento-me, ligo-o e olho para ali
como se estivesse a ver alguma coisa. Não estou. Então, o sono vem sobre mim, a
cabeça descai, o queixo choca com o peito. É provável que ressone. Se me babo
ou não, isso é coisa a que pouparei o leitor. E a máquina, assim enjeitada, ali
fica a trabalhar, com um zelo inexcedível e uma lógica perturbante. Se sonho,
não sei. Sou um deficiente onírico, pois raramente me lembro de sonhar. Este
pensamento alucinado tranquilizou-me. Seria muito desagradável sonhar uma
coisa que entrasse em conflito com o que se passa no monitor. Quando acordo,
dói-me o pescoço, mas não nos dói sempre alguma coisa? Umas vezes, um dedo,
outras, o nariz, ou a alma ou alguma memória desabrida. Não foi para que nos
doesse sempre alguma coisa que nascemos com o pecado original?
domingo, 25 de março de 2018
A glória do dia
Talvez
por lhe ter sido roubada uma hora, sinto este domingo quase como uma promessa.
Eu sei que não se deve viver de promessas, mas nem a passagem pela avenida
marginal, onde, hesitante, a feira de velharias atrai curiosos enfadados, nem a
romagem ao sítio onde se arrasta moribunda a feira de Março conseguiram deitar
cinza e luto sobre o meu ânimo. É verdade que as pessoas passeiam com o mesmo
ar desolado que ostentam nos outros domingos. Um homem caminha apressado,
enquanto, em desespero, tenta com um pente pôr ordem no cabelo. Um pai solitário
arrasta os filhos em direcção ao carrossel. Um anúncio de farturas mistura-se
com a música estridente de todas as feiras destes país. Nada disso, porém, entenebrece o dia e a sua
glória. A segunda-feira será menos dolorosa, creio.
sábado, 24 de março de 2018
Visita de estudo
Passei o dia em visita guiada a Tomar. Quase me tornei templário,
e isso só não aconteceu porque não havia quem me armasse cavaleiro. Assuntos de
cavalaria são coisas sérias e obedecem a regras estritas, e eu não sou de
infringir regras, e não ostento títulos no currículo que não me tenham sido
autenticamente outorgados. O tempo estava borrascoso, uma frialdade das
antigas, uma chuva fria e impertinente, ventos desabridos, como se Éolo quisesse
tirar vingança e abrisse a caixa para punir algum dos viajantes, talvez a mim.
Antes a caixa de Éolo do que a de Pandora, pensei e fiquei mais tranquilo. Entre
claustros e igrejas, lá almocei numa taverna antiqua, onde também não descobri
qualquer cavaleiro dotado com poderes suficientes para me fazer entrar na Ordem.
Inconformado por não me ter sido dado o merecido acesso à Idade Média, exausto
de góticos e manuelinos, lá vim para casa, onde, no conforto do lar, posso
imaginar-me cavaleiro da Ordem do Templo, enquanto escrevo isto e oiço jazz. O
que devia mesmo era ouvir canto gregoriano, disse de mim para mim. Talvez me
fosse mais fácil ser monge beneditino do que cavaleiro de Cristo. Amanhã será
outro dia, espero.
sexta-feira, 23 de março de 2018
Castelos
Agora dou comigo a consultar, com mais frequência, a
informação meteorológica. Estava olhar, de uma das janelas aqui de casa, para
as muralhas do castelo. O céu cinzento escuro agradou-me. Pensei que este tempo
é o verdadeiro tempo de Quaresma e vim ao computador para saber como estará o
humor de S. Pedro na próxima semana. Parece que vai estar melhor do que devia,
constatei não sem um trejeito de desagrado. O melhor é esquecer-me do tempo e voltar
a olhar o velho castelo, agora que ele está limpo e asseado. Para dizer a
verdade, gosto imenso de castelos e por isso sinto-me tocado por uma enorme piedade
quando os vejo assim tão edulcorados, tão mortos, tão prontos para o postal
turístico que ninguém há-de comprar.
quinta-feira, 22 de março de 2018
Anoitecer
Arrefeceu. Ao início da tarde parecia que a Primavera tinha
triunfado, mas com o declinar do dia uma súbita saudade do Inverno tomou conta
das ruas. As pessoas encolhem-se um pouco como se isso servisse de esconjuro
contra o frio e seguem os seus caminhos, como se nelas houvesse um propósito,
uma causa final que as movesse e desse sentido à vida. Parei no passeio e
deixei-me ficar a olhar o que se passa na avenida. As árvores ainda estão
despidas, noto. A iluminação pública já invadiu a atmosfera e a noite, tecida
de tafetá escuro, prepara-se para, gloriosa, cair sobre o dia moribundo. O
melhor será ir para casa, pensei, enquanto alguém me acenava ao fundo e, de
imediato, desaparecia devorado pela pobre penúria da escuridão. Uns
adolescentes passam do outro lado rua como se tivessem toda a eternidade pela
frente, riem alto e assustam um gato que, desconfiado, se esconde debaixo de um
carro estacionado. É noite.
quarta-feira, 21 de março de 2018
Estultícia
Há pouco, quando passei pela avenida marginal a caminho de
casa, perguntei-me, agora que a Primavera se instalou segundo a ordem do
calendário, quanto tempo faltará para essas horas de grande ilusão que são os
dias dos castanheiros em flor. A palavra ilusão desencadeou em mim uma associação
de ideias e fez-me retornar aos primeiros anos em que exerci, vindo da
faculdade, a minha profissão. A ilusão, que eu não sabia que o era, residia em pensar
que o ser professor me iria dar tempo para fazer longas e demoradas leituras.
Nos primeiros anos – seriam os verdes anos profissionais – a ilusão não se
desfez e eu ia partilhando com os meus alunos aquilo que ia descobrindo. Anos
mais tarde descobri que isso era como o florescimento dos castanheiros na
avenida. A ilusão de um instante. A partir de certa altura, ao fim de não sei
quantas reformas, um professor quase está proibido de fazer leituras, pois as
horas da semana são escassas para tudo o que tem de fazer na escola, para além
de ensinar alunos. A forma como a vida escolar se foi organizando, durante a
minha vida profissional – pensei, ao fazer a rotunda onde desagua o viaduto de
Rio Frio –, parece ter como desígnio a estupidificação dos professores. Quando
as árvores florescem a ilusão é magnífica, mas quando a flor cai a realidade
mostra as trevas densas que nela habitam. Deveria ter lido Kafka com muito mais
atenção. Ele bem me avisou, mas a minha estultícia foi mais forte.
terça-feira, 20 de março de 2018
Equinócio
Consta que ocorreu o equinócio da Primavera. Vi que o
acontecimento se deu pelas 16 horas e 15 minutos, segundo informação do
Observatório Astronómico de Lisboa. Não dei por nada, mas fiquei mais
descansado. As coisas ainda não estão de tal modo que equinócios e solstícios –
duas belíssimas palavras, diga-se – se tornem acontecimentos incertos. Quando
saí do lugar onde me suportam para que eu possa ter um modo de vida, a cidade
não me acolheu primaveril. Limitou-se a deslizar com indiferença pelo tempo,
sem esperança nem desespero. E assim também eu passei por ela, sem a olhar nos
olhos nem lhe escutar a respiração, para me vir aqui sentar e escrever coisas
sem nexo, as únicas que nesta vida valem a pena ser escritas.
segunda-feira, 19 de março de 2018
Dia do Pai
Há catorze anos ainda vivemos os dois – o meu pai e eu -
este dia, mas ambos sabíamos que seria, muito provavelmente, o último Dia do
Pai que partilharíamos. Fingimos que o não sabíamos e continuámos a nossa
conversa. Era uma conversa como se tivéssemos a vida toda à frente. Em finais
de Setembro, tudo ficou consumado, o que sabíamos que iria acontecer aconteceu.
Mas aconteceu também outra coisa, a conversa não acabou. Ela continuou dentro
de mim e, um dia, espero que continue nos meus filhos, pois trata-se de uma
conversa infinita, aquela que liga um pai e um filho. E mesmo no momento em que
escrevo isto a conversa continua, flui rapidamente. Eu sei tudo o que ele diria
e ele sabe tudo o que tenho a dizer. Este mútuo conhecimento não anula a
surpresa das nossas palavras, pelo contrário. É esse mútuo conhecimento que
permite a contínua surpresa duma conversa sem fim.
domingo, 18 de março de 2018
Os difíceis domingos
Um casal discutia tão alto que não tive maneira de não saber
a dolorosa questão que o animava. Ânimo e entusiasmo parecia não faltar a ambos. Na
verdade, trivialidades que fazem da vida um drama sem fim ou que trazem à luz tragédias
recalcadas, que aproveitam o trivial para simbolizar o terrível. Como não tinha
à mão um comando a que pudesse recorrer para desligar o som, deixei-me arrastar
para a memória de algumas cenas de filmes de Bergman, onde as pessoas dizem
umas às outras coisas terríveis sem levantar a voz. Até para se dizer o
terrível há boas e más maneiras. Não sei se os domingos são mais propícios para
o desarranjo da felicidade conjugal. A perspectiva de mais vinte e quatro horas
partilhadas momento a momento, depois das de sábado, talvez tenha um peso na
propensão para o conflito. Amanhã, com as horas ocupadas pela profissão, tudo
se tornará mais sensato. Penso, muitas vezes, que por detrás dessas felicidades
que se arvoram publicamente há patologias tais que a única maneira de conviver
com elas é criar um grande cenário de vida beata, cheio de corações, sorrisos
abertos e fins felizes. Depois, chega a hora em que a boca já não consegue
mimar o sorriso e a beatitude mostra o inferno. Talvez a ausência de chuva e de
vento tenha serenado os espíritos ou talvez se tivessem cansado. Agora, o
silêncio desliza num raio de luz e incendeia-se sobre pequena mata de cedros
que avisto. É domingo.
sábado, 17 de março de 2018
Regresso a Ítaca
Muitas vezes, quando vou visitar a minha mãe, aproveito por
passar por dentro da cidade. Faço-o como se tratasse de um regresso a casa. Não
encontro nessa viagem de retorno os escolhos que Ulisses encontrou, no regresso
de Tróia, para chegar a Ítaca. Por aqui não há ciclopes de um só olho nem se
escuta o canto das sereias. Tudo se passa como sempre se passou, apenas o tempo
cobriu cada coisa com o seu manto de poeira e não há quem esteja disponível
para limpar o pó. Os conhecidos estão cada vez mais enrugados e os novos,
quando se avistam, são escassos e parecem já envelhecidos, contaminados por uma
nostalgia de não se sabe bem de quê. Talvez este tempo de Quaresma obrigue a um
jejum de novidade e a antiga vila se prepara assim para o grande luto que
antecede o domingo de Páscoa. Ao passar pela velha ponte do Raro espreito o rio.
Corre exuberante. O castelo, sonolento, abre a boca das muralhas e boceja. A
certa altura, na rua da Fábrica, corto à direita. O carro desliza devagar e eu
espero ver-me ali, um pouco mais à frente, nos meus dez anos a jogar futebol em
plena rua. Paro o carro e só há silêncio. Cheguei, mas eu não estou lá.
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