Hoje retomei as caminhadas. É evidente que dizer retomei significa mais a expressão de um desejo do que a expressão de uma verdade. O facto de o ter feito hoje não significa que o continue a fazer nos próximos tempos. Estava um vento norte frio, irritado e irritante. Aproveitei essa deambulação para deixar o pensamento com rédea solta. Assim, ia pensando ora nisto, ora naquilo, ora naqueloutro. Esta é a melhor forma de não pensar nada. Pelo menos para pessoas como eu que não se entregam à meditação, a qual, dizem, tem o condão de nos conduzir ao não pensamento. Não pensamento não é a mesma coisa que pensar em nada. Neste último caso, o pensamento tem por objecto o nada e sobre este há muita coisa para pensar. Consideremos, a título de exemplo, a obra de Jean-Paul Sartre, O Ser e o Nada. Dedica quase oitenta páginas, na tradução portuguesa, ao problema do Nada. Se alguém pensar que sobre o nada nada há a pensar, então equivoca-se. Portanto, parece-me uma conclusão lógica, não pensar e pensar em nada são coisas muito diferentes. Quantas vezes uma pessoa é apanhada a pensar em nada. Estamos muito absortos e alguém pergunta: estás a pensar em quê? Em nada, respondemos. Portanto, pensar em nada é ter aqueles pensamentos que não queremos partilhar com terceiros. Depois de ler o que escrevi até aqui, começo a desconfiar que fazer caminhadas não dá grande saúde mental. As minhas netas puseram-se a ouvir uma música própria de adolescentes. Aposto que se lhes perguntasse: o que estão as meninas a ouvir? Logo me responderiam: nada, avô. Se se pode ouvir nada, então também se pode pensar nada. O meu neto, soube-o agora, está com COVID. Para não se sentir só, também o pai, a mãe, uma tia avó e a bisavó foram apanhados pelo vírus. Este parece resolvido em baptizar todos na sua congregação viral. A noite caiu e a sexta-feira está quase acabada, quase feita em nada.
sexta-feira, 4 de março de 2022
quinta-feira, 3 de março de 2022
Volubilidade
Está um verdadeiro dia de Março. Cumpre à risca o ditado popular: Março, marçagão, manhã de Inverno, tarde de Verão. Quando, manhã cedo, espreitei para a rua, chovia. Agora, está sol. É um sol deslavado, anémico, com um brilho sem glória. Talvez a culpa seja do vento. Parece irritado. Devem ter acordado Éolo demasiado cedo, agora há que aturá-lo. Venta e bufa pelos quatro cantos. Hoje já fui fazer uma visita. Nunca é fácil visitar quem nos trouxe ao mundo e, ao chegarmos perto, perguntarem-nos quem somos. Quais serão as memórias que desaparecerão em último lugar? As dos filhos? Outras, mais arcaicas? Nestas circunstâncias sinto-me sempre na pele do Romeiro, do Frei Luís de Sousa. Sou ninguém, na verdade. Ainda há dias escrevi que os pinheiros, cedros e ciprestes da escola aqui ao lado estavam petrificados. Hirtos, incapazes de se inclinarem, estátuas vegetais erguidas aos céus. Agora, porém, o vento fá-los rodopiar. Inclinam-se para um lado e para o outro, como se fossem pêndulos invertidos, enquanto, expulso o sol, a chuva os fustiga, não sem violência. Voltemos à sabedoria popular, já que não tenho outra mais à mão: Março, marçagão, manhã de Inverno, tarde de rainha, noite corte que nem foicinha. Não faço a ideia do que isto quer significar, mas se o encontrei no Ciberdúvidas, então há-de querer dizer alguma coisa. A chuva já parou e o sol torna-se a rir, mas apenas um pequeno sorriso escarninho. Tenho de ir lembrar as minhas netas que chegou a hora de fazerem um intervalo no estudo. Embora tenha algumas dúvidas que estejam a estudar, mas há que fingir que assim é. Os pais do meu neto foram apanhados pelo COVID, temo que também ele o tenha sido. Voltou a chover. Que volubilidade.
quarta-feira, 2 de março de 2022
Destino
Na antiguidade clássica greco-latina, dava-se uma especial atenção ao fado ou destino. Este era percebido como uma espécie de conspiração da ordem cósmica que, nos trazia, aquilo que desde sempre e necessariamente nos estava destinado. Não haverá quem não sinta, em certas circunstâncias, ser vítima desse destino. Ao vermos nas televisões e nas redes sociais aquilo que se passa na Ucrânia facilmente somos tentados a ver naquele acto incompreensível essa mão de um destino metafísico terrível. A ideia de destino nasce de uma impotência que atinge o homem e não de qualquer programação dos deuses ou da mecânica da natureza. Essa impotência – uma impotência radical – é a incapacidade de se desfazer o que foi feito, de voltar atrás e fazer outra coisa. Há uma imutabilidade nos factos. O que aconteceu não pode ser desfeito, embora, muitas vezes, pudesse não ter acontecido. É essa impotência de desfazer o feito que gera em nós uma ideia de fado ou de destino. Se o acontecido é necessariamente imutável, então as causas que lhe deram origem eram necessariamente aquelas. Isto é uma óptima justificação para qualquer tirano. A sua tirania não é responsabilidade própria, mas de um fio tecido por alguma entidade metafísica. Acho que estou a ficar perturbado. Em vez de me estar a preparar para uma daquelas videoconferências que têm a extrema utilidade de não servirem para nada, ponho-me a divagar sobre o destino e a maldade dos déspotas, infringindo inclusive a proibição do autor de tocar em assunto que tenham qualquer aroma político. Dento de mim, porém, há uma voz que sopra, num estranho vernáculo, que um tirano não é propriamente uma entidade política, mas a encarnação do destino para assediar os homens. A praceta aqui em baixo está já envolta na sombra da tarde. No parque infantil, um casal acompanha as aventuras da filha. Os carros passam langorosos na avenida, como se os seus condutores fossem eternos. As minhas netas acabaram de chegar para passar uns dias de férias. A videoconferência vai começar. O mundo está quase salvo.
terça-feira, 1 de março de 2022
Irritações
Constato que a guerra na Ucrânia libertou os portugueses da COVID-19. Depois de dois anos em que qualquer coisa relacionada com a pandemia era esticada até à exaustão, de um momento para o outro, os mortos por COVID-19, que continuam a ser muitos, passaram a nota de rodapé. O sofrimento – dos outros, claro – é sempre excitante, e aquilo que a comunicação social procura é um Viagra para as audiências. Não quero dizer que no meio de tudo isto não exista trabalho jornalístico de grande mérito. Há e muito, mas também uma exploração infernal das emoções que excede em muito o papel da informação. Parece que iniciei Março irritado com o mundo. É uma aparência falsa. O mundo é mundo, isto é, um lugar onde o mal encontra sempre lugar para se manifestar. Também permite algum bem. Mal ou bem mundanos já não têm poder de irritação sobre mim. Coisas mais triviais, porém, podem irritar-me. Por exemplo, ir a dois supermercados e já a caminho de casa ter a súbita revelação que ainda falta uma coisa indispensável, o que obrigará a pisar uma terceira superfície. Isso irrita-me, até porque poderia ter havido uma lista de compras. Esperava com ardor uma terça-feira de Carnaval com chuva, mas o destino quis que fosse cheia de sol. Agora tenho um artigo para escrever, uma súbita encomenda de dois mil e quinhentos caracteres, sem espaços. Sempre me há-de ocorrer alguma coisa sobre os males que afligem o mundo. O que me apetecia, porém, era outra coisa. Ler com tranquilidade um livro que tenho diante de mim, Libertad, Gracia y Destino, de Romano Guardini, mas parece que o destino não me destinou a graça de ter a liberdade de o fazer. De facto, podia começar melhor este mês em que o Inverno se há tornar em Primavera.
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022
Fevereiro triste
Este Fevereiro fina-se sem brilho nem glória. Não nos livrou da peste e trouxe-nos, ao terminar, a malfadada guerra. Há meses em que não se pode confiar, mas isso só sabemos quando eles se põem a caminho. Estamos em pleno Carnaval, mas máscaras só vejo as cirúrgicas ou outras do género. Não é que a pandemia ainda ocupe as preocupações das pessoas. Estão cansadas do vírus e prontificam-se a fazer com ele negociações para um cessar-fogo e, caso seja possível, umas tréguas definitivas. Hoje, como na maior pare dos dias, só me ocorrem trivialidades. Nem as minhas deambulações pela cidade me deram motivo de acções gloriosas, cuja gesta possa vir aqui contar. Resta-me anunciar que no friso das orquídeas, expandido, entretanto, duas já floriram. Uma tem flores amarela, as da outra são fúcsia. Esta última afirmação é muito duvidosa, mas não me ocorre nada melhor, a minha paleta vocabular de cores é lamentavelmente exígua. Olho pela janela do escritório. O pequeno bosque da escola ao lado parece petrificado. Pinheiros, cedros e ciprestes não bolem. Presume que o vento tenha ido soprar para outro lado. Um casal de meia idade atravessa a praceta. Ele vai à frente, ela atrás, cada um mergulhado no seu mundo, no cansaço do outro, na melancolia que é a vida. A expressão meia idade é espantosa. Supõe que exista uma idade inteira e que, ao partir-se esta ao meio, se fica na meia idade. Tenho tentado ler aquele livro de Alberta Pimenta com letras absurdamente pequenas. Gostaria mesmo muito de o conseguir ler, mas não podemos ter na vida tudo o queremos, ou desejamos, ou gostamos, ou. Pior que isso é este Fevereiro sem chuva, encharcado de pandemia e guerra.
domingo, 27 de fevereiro de 2022
Lupa de leitura
Em Lisboa, um amigo insistiu, por motivos que não vêm ao caso, em emprestar-me um livro, esgotado há muito, de Alberto Pimenta, A magia que tira os pecados do mundo. Percorri as páginas e perguntei-lhe se achava que eu ia ler aquilo. De certeza, respondeu. Abri o livro e coloquei-o à frente dos olhos dele. Achas que consigo ver esta letra? Pois é, se tivesse sido editado com letra normal, o tamanho do livro disparava assim como o preço, e ninguém o comprava. Tudo bem, mas não consigo ler uma letra tão pequena. Compras uma lupa de leitura e lês. Eu ri-me e lá trouxe o livro, que jaz sossegado no lado esquerdo da minha secretária. Duvido que compre a lupa de leitura. Logo, a probabilidade de ler o livro é muito menor do que a de não o ler. Muitos livros li com este tamanho de caracteres, mas tratavam-se dos célebres livros das colecções 6 Balas, Cow-Boy, Gatilho e Fúria de Bravos. Estas pérolas literárias foram uma das minhas iniciações à literatura. Uma pessoa começa a ler as aventuras do Pinóquio, passa pelo 6 Balas, dá um salto à Enid Blyton, embrenha-se no Sherlock Holmes e, não tarda, está a ler Camus, Sófocles, Dostoievski, Thomas Mann, Broch e sei lá mais o quê. Voltando à dimensão da letra. Uma coisa é ter nove, dez ou onze anos, outra é já ter entrado na classe dos sexagenários. Lembrei-me, agora mesmo, que a minha mãe há uns anos insistiu em que eu aceitasse uma das lupas de leitura dela, o que fiz para a não contrariar. Experimentei-a no livro. De facto, os caracteres tornam-se legíveis, mas ao fim de duas páginas hei-de ficar com o braço cansado. Estou convencido de que o próprio autor, com a idade que tem, não consegue ler o seu livro. Por que razão haveria eu de o ler? Parece que estamos no Carnaval. Hoje é domingo gordo. Já era tempo de ele fazer dieta. O Carnaval, assim como o circo, é uma coisa que nunca deixa de me encher de uma certa tristeza, uma pena metafísica pelos pobres foliões. Mais valia que tentassem ler um livro com letra mínima, nem que tivessem de comprar uma lupa de leitura.
sábado, 26 de fevereiro de 2022
Um mau conselheiro
Levantei-me tarde. Estava cansado, pois o dia de ontem teve alguma turbulência, excessiva para o meu actual modo de vida. Pelas 18 horas, lá estive na Cinemateca, a fazer parte do painel de apresentadores do livro do qual sou um dos autores. A coisa foi dramática, não porque tenha havido algum drama, mas porque os textos tinham todos mais de uma dúzia de anos e os autores envelheceram juntamente com os textos. Havia quem tivesse ultrapassado os oitenta anos, quem se aproximasse, quem excedesse os sessenta. Apenas um autor - um jovem autor - deveria aproximar-se dos cinquenta. O espaço, diga-se, é excelente. A apresentação ao ar livre soube bem, apesar de para o fim ter ficado um pouco de frio. Aquilo que eu disse não interessará a ninguém, embora tenha sido óptimo para mim, pois livrei-me de vez daquele assunto que, volta e meia, me assediava. Depois, um jovem casal veio ter comigo. Estudam na mesma faculdade em que estudei e no mesmo curso. Perguntaram-me o que era preciso fazer para ingressarem na carreira de onde anseio sair. Respondi-lhe: não pensem nisso, aproveitem o vosso curso, estudem e divirtam-se, depois terão tempo para pensar nessas coisas. Acho que nunca fui muito bom a dar conselhos.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022
Irritações escatológicas
O Anticristo tem muitas faces. Surge aos olhos dos incautos sempre como uma novidade, mas nunca deixa de ser o mesmo trampolineiro cruel. Ao escutar isto, respondi: nunca o ouvi falar desse modo, o que se passa consigo, padre Lodo? Não sabe o que se passa? Não ouve notícias? Parece-me que não preciso de mais explicações. Sim, eu sei o que se passa, mas nunca o padre Lodo usou esse tipo de linguagem. Muitas vezes, pensei que era um padre demasiado racional, pouco interessado nessa linguagem vinda dos recantos obscuros da teologia. Ele riu-se e eu imaginei-o a fazer uma careta ao telemóvel. Depois, continuou: não bastava a pandemia, agora uma guerra. E quando se trata de guerra sabemos quando e onde começa, mas nunca sabemos quando acaba nem se nos vem bater à porta ou não. Estou com medo, prosseguiu, não por mim, que tenho idade suficiente para ir prestar contas ao Altíssimo, mas por toda esta gente. Sim, o Cristo só tem uma face, mas o Anticristo tem muitas. Perguntei-lhe se não andava demasiado embrenhado na literatura escatológica. O diabo é que ando, retrucou. Padre, acalme-se, disse-lhe eu. No fim-de-semana, encontramo-nos em Lisboa, juntamos o grupo e vamos jantar. Haveremos de resolver os males do mundo. Neste instante, ouvi a sua voz quase irritada: quantas vezes lhe preciso de explicar que os males do mundo não têm solução. Se assim é, ripostei, o que não tem solução solucionado está. Ele não se riu. Eu também não.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022
Jogo da cabra-cega
Já há muito que não ouvia o telefone fixo tocar. De tal maneira que demorei alguns segundos a perceber que era ele que estava a dar sinal. Corri para o atender, mas ao levantá-lo da base, ele apagou-se, literalmente. De tanto não ser usado, presumo que decidiu entregar-se a um hara-kiri. Ao menos morro com honra, terá pensado. Fiquei sem saber quem terá ligado, mas o mais provável é que fosse um engano. As pessoas que me ligavam para o fixo já deixaram de ligar seja para onde for. A não ser que alguém tenha tido uma reminiscência e tenha decidido usar o fixo para dar vazão ao que lhe iria, na altura, na memória. Aqui que ninguém nos ouve, dispenso reminiscências. Alguém que tenha memórias, boas ou más, que as guarde para si, que é aquilo que eu faço. A memória tornou-se para este narrador sem narrativa uma questão melindrosa, pois coisas que nela deveria guardar, caso sejam recentes, nem à porta chegam. São esquecidas de imediato. Outras, com muito tempo, parecem manter-se inalteradas, depois há aquelas que jogam à cabra-cega. Imaginemos que estou a falar com alguém e quero dar a referência de um romance de que muito terei gostado. Por exemplo, Sinais de Fogo, de Jorge de Sena. Pode acontecer que me ocorra o título, mas não o autor. Posso chegar a dar informações tão precisas como o ano da morte de Sena, o facto de ter vivido exilado no Brasil e na Califórnia, mas não me ocorrer o nome. Pode acontecer que não me ocorra o título e começar a contar episódios, entregando-me a um devaneio perifrástico. A isto chamo jogo da cabra-cega. Pode parecer uma analogia forçada, mas é o que sinto que a memória faz comigo. Isto pode ter terríveis implicações quanto ao estatuto de verdade das façanhas que por aqui conto. Neste momento oiço alguém dizer ó (nome da minha neta mais nova) larga os cabelos e pensa. O que ela deve pensar é um assunto de geometria. Será, porém, que isto aconteceu mesmo, que a minha pobre neta estava a segurar os cabelos em vez de pensar? Independente dos estatutos ontológico do acontecimento e epistémico da minha afirmação, o caso não deixa de levantar um problema interessante: por que motivo segurar os cabelos impede os neurónios de se entregarem apaixonadamente a amplexos sinápticos?
terça-feira, 22 de fevereiro de 2022
Decepção
Tinha desde há dias um caixote por abrir com uns vinte livros. Comprei-os nesses leilões que existem em sites onde se vende de tudo, pelo menos é o que imagino. O alfarrabista leiloeiro nunca tem pressa. Pode estar meses sem dar sinal de vida, a não ser colocar livros na página do leilão. As pessoas fazem os lances, o tempo do leilão expira e ele nem dá sinais de que respira. Depois, inopinadamente, lembra-se de visitar o site e envia uma mensagem com o preço a pagar e um pedido de desculpas mais ou menos inverosímil. Já mudou de casa, já esteve doente várias vezes. Se ele nunca tem pressa para receber, o mesmo não se pode dizer do envio. Mal são pagos os livros, ele remete-os sem mais demoras. A princípio estranhei o modus operandi, mas depois habituei-me e agora faço palpites para saber ao fim de quantos meses ele vai tornar a contactar comigo e, presumo, com os restantes compradores. Não era disto que queria falar, mas da minha decepção ao abrir o caixote e manusear os livros. Tinha a esperança de que num ou noutro houvesse lá qualquer coisa do anterior proprietário, uma dedicatória, uma anotação, uma lista de compras esquecida, talvez uma carta de amor. Não encontrei nada, a não ser, em dois livros, o ex-libris do seu proprietário: Pelo sonho é que vamos, um verso de Sebastião da Gama. Não parece muito original. Omito o nome do suposto proprietário por uma questão de protecção de dados, embora possa confiar ao público as obras e respectivos autores. Tratam-se de Gaimirra (1946), uma recolha de contos de Antunes da Silva, e Bárbara Casanova (1954), um romance de Maria da Graça Azambuja, pseudónimo de Maria da Graça Freire, irmã da escritora Natércia Freire. Como se pode constatar, continuo a rodear-me de livros que ninguém lê. Também eu corro o risco de não os ler, mas hei-de tentar, mesmo que vá procrastinando. Agora, vou postar-me em frente da janela e ver a noite cair, apesar da iluminação pública, já acesa, me estragar o espectáculo. Sempre podia chover.
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022
Fraternidades
O mundo está perigoso, oiço dizer ao passar perto de uma esplanada. Como estamos num Verão em pleno Inverno, as esplanadas estão cheias e as pessoas têm de dizer qualquer coisa, mesmo que não tenham nada para dizer. Talvez a tagarelice seja uma coisa boa. Se toda a gente se dedicasse a ela, é possível que o mundo fosse um lugar melhor. Enquanto falam umas com as outras sobre assuntos nenhuns, não estão a matar-se. Já as conversas sérias têm um potencial de violência que nunca se deve subestimar. Por aqui, chegou o crepúsculo. Dia e noite enfrentam-se hesitantes, a luz difusa parece dizer que nada está decidido, mas sabemos que a noite levará a palma. Por outro lado, a noite não é bem noite, toda ela pontilhada de luzes, como se o seu corpo tivesse sido atingido por milhares de pequenas setas luminosas. Hoje fui fazer uma visita, mas nem sempre visitar alguém é a melhor das coisas. Sê-lo-ia, no melhor dos mundos possíveis. Ora, este que nos cabe em sorte está muito longe de ser o melhor. Não sei ao certo a razão, mas diante dos meus olhos pairou o título de uma encíclica do actual Papa: Fratelli Tutti. Talvez ele queira tranquilizar as pessoas sublinhando que somos todos irmãos. Ora, não tenho a certeza que essa seja uma boa estratégia. Quantas pessoas conspiram para fazer mal aos irmãos. Guerras entre irmãos costumam ser tudo menos exercícios de fraternidade. Também a Revolução Francesa começou com proclamações de fraternidade e acabou a cortar pescoços. Estou a entrar por caminhos ínvios, os que são da política e da religião. O mais sensato será parar por aqui e ficar a ver a noite cair sobre o telhado das casas.
domingo, 20 de fevereiro de 2022
Agora, é tarde
Os livros estão mais caros. Hoje fiz uma viagem à fnaquezinha existente num centro comercial da simpática cidadezinha onde me é dado passar os meus dias. As noites, também, esclareça-se. Fui em demanda, com sucesso, dos Contos de Cantuária, de Geoffrey Chaucer, na recente tradução do poeta Daniel Jonas. É um belíssimo livro – refiro-me ao objecto e não ao conteúdo – de capa cartonada. Percebe-se o preço a rondar os trinta euros. O pior, todavia, é que os outros livros das minhas editoras de eleição decidiram encarecer. Estão bem mais caros do que eram há uns meses. Talvez as editoras estejam cansadas dos compradores e temam que o livro se torne objecto de uma plebe feia e maltrapilha que, ao comprá-lo, o desprestigiaria, ao livro, mas também às editoras e ao editor. Parece-me uma belíssima estratégia. Nada de democratizar o acesso ao livro. Isso seria dessacralizá-lo, meio caminho para andar nas bocas – ou nos olhos – do mundo. Além da obra de Chaucer, comprei Belladonna, de Dáša Drndić, uma escritora croata desaparecida em 2018, de que nunca ouvira falar. Isto faz-me lembrar que no final da semana que está a entrar terei de ir ao lançamento, em Lisboa, de um livro de que sou co-autor, para desgraça do livro e minha. Para dizer a verdade, não entendo sequer por que raio está lá o meu texto entre os de especialistas na matéria, eu que não sou especialista de nada e muito menos daquela matéria. Por vezes, caio em tentação. Aqui que ninguém me ouve, escrevi o ensaio – pois de um ensaio se trata – há tantos anos, que nem me lembro do que lá está. A minha esperança é que não esteja ninguém no lançamento, mas tenho as minhas dúvidas, considerando os restantes autores. Os amigos arrastam-nos para cada coisa. Nunca estamos dispostos a prestar ouvidos às sensatas injunções parentais, quando enviesam o olhar e exclamam vê lá com quem andas. Agora, é tarde.
sábado, 19 de fevereiro de 2022
A ida ao templo
O meu dia, exceptuando os cuidados comigo mesmo, começou com uma visita a um desses templos contemporâneos, onde o ritual gira em torno da deslocação para dentro de um carro gradeado de produtos que estão tranquilos nas respectivas prateleiras. Depois, colocam-se numa passadeira para a sacerdotisa – por vezes, mas raramente, há um sacerdote – os passar por uma maquineta que devolve uma informação ao crente, dizendo-lhe o que adquiriu e o preço da aquisição. Acabada a liturgia, paga-se o ofício sacerdotal e sai-se carregado de coisas que hão-de ser consumidas, isto é, aniquiladas, reduzidas a nada. Talvez seja isto o niilismo. Outrora, não havia catedrais como aquela a que fui. Tudo se resumia a pequenas capelas e a tristes ermidas, o ritual era mais acanhado, embora não tenha a certeza que fosse mais barato. O certo é que, na pequena província, os sacerdotes desses pequenos templos acabavam por ser personagens, enquanto as vestais de hoje, as que cobram os bens e serviços, não são ninguém. Quase se pode formular uma lei. Quanto maior o templo, mais insignificante o sacerdote. Não quero dizer que, por detrás destes novos templos, não estejam cardeais poderosos. Estão, mas são invisíveis. Detestam o contacto com os fiéis, apesar de lhes deverem o cadinalato. Está um sábado ventoso, com uma luz vibrante, mas esbranquiçada. Na avenida, as pessoas ensaiam a saída da pandemia, mas fazem-no ainda com precaução. Leio que o mundo está mais perigoso, mas sobre isso estou proibido de emitir opinião, caso tenha uma.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022
Trivialidades
Chegou o fim-de-semana. Chegaram, também, os pássaros meus vizinhos. Suspeito que se fartaram do Sul e subiram um pouco, para um Sul menos Sul que o Sul. Não é de bom tom estilístico repetir, na prosa, as mesmas palavras e até os mesmos sons. Assim, além de não dever repetir tantas vezes Sul, deveria evitar escrever palavras como azul ou mesmo bule. Sugerem os donos do estilo que quem queira entregar-se a aliterações, assonâncias, iterações e outras coisas repetitivas que escreva poesia. O certo, porém, é que a chegada dos pássaros, aliada com o florir das orquídeas, anuncia a ainda distante Primavera. Escrevi a palavra orquídeas depois de uma luta tenebrosa com o meu cérebro. Não me conseguia lembrar do nome dessas plantas. Depois de um esforço titânico, desisti. Recorri ao plano B, agora que toda gente tem um plano B, ou se não tem, diz que tem. O meu surtiu efeito. Como na longínqua juventude fui um leitor de Rex Stout, sabia que Nero Wolfe, o detective excêntrico por ele criado, cultivava essas plantas cujo nome não me ocorria. Fiz uma pesquisa e lá encontrei o nome que tinha sofrido na minha memória um curto-circuito. Será pior o dia em que nem de Nero Wolfe me lembre. Em síntese, hoje nenhuma aventura tinha para acrescentar à minha gesta, restava-me encontrar duas ou três trivialidades, e essas nunca me faltam. Agora vou fechar as janelas e ligar o aquecimento, e estes são os primeiros gestos heróicos do dia.
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022
Belos títulos e paixões tristes
Talvez já o tenha escrito aqui, mas se o fiz, não hesito em repetir-me. Há livros que têm títulos magníficos. Hoje, ao deambular por um artigo do filósofo italiano Dario Gentili, encontrei uma referência a uma obra denominada L’epoca delle passioni triste. Não conheço os autores – Miguel Bensayag e Gérard Schmit – mas parece terem um apurado sentido para escolher títulos. Tudo isto foi pensado até há pouco quando decidi fazer uma investigação sobre o livro. Que descobri eu? Que era uma tradução italiana de uma obra francesa, que no original tem o prosaico título Les Passions Tristes. Souffrance Pschychique et Crise Sociale. Talvez o título italiano seja criação da tradutora Eleonora Missana. Facilmente nos deixamos levar por um equívoco. Enquanto se trata de um livro, a coisa não é grave, mas há quem acabe por casar devido a um equívoco, a um pequeno engano, a um simples mal-entendido, que depois haverá de ser descoberto. Talvez, nos dias que correm, nem isso seja particularmente grave. Um divórcio e o equívoco fica desfeito. O artigo que referi está na Electra, a revista da Fundação EDP, uma belíssima revista, diga-se. O número deste Inverno tem por tema Os Números. Um dos artigos, de Matteo Pasquinelli, denomina-se, na versão portuguesa, Do algarismo ao algoritmo: brevíssima história do cálculo, da Idade Média até hoje. Um belo título. O que me fascina, contudo, é L’epoca delle passioni triste. No entanto, talvez exista um outro equívoco no título. E se todas as paixões, independentemente da época, forem tristes, apesar do fogo-de-artifício que as rodeia? Há uns anos, passei uns dias em Bilbau, na altura em que decorriam as festas da cidade. Há meia-noite, salvo erro, havia sempre fogo-de-artifício. As pessoas convergiam para o centro da cidade, sentavam-se pelo chão e viam um espectáculo sempre belíssimo. Depois, acabava, ficava o vazio e cada um voltava à trivialidade da sua noite.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022
Babel
Há uns anos, antes de termos entrado na carruagem da pandemia, às quartas-feiras, na escola ao lado, havia ensaio de um conjunto musical escolar, onde o vocalista era – ou é – um rapaz do meu tempo. Eu chamava-lhe grupo de baile, pois o que ouvia era um conjunto de êxitos dos anos sessenta e setenta, que os grupos que animavam os bailes de província tentavam imitar. Reparo, agora, que os ensaios não retornaram com o aligeiramento pandémico. Para quebrar a paz e o silêncio, apenas a algaraviada dos adolescentes na praceta, enquanto não chega a hora de entrarem para o centro de línguas, onde hão-de aprimorar o inglês. Não creio que alguém, hoje em dia, estude francês ou alemão. Tornaram-se língua dispensáveis e, por isso, culturas de segunda ordem, por muitos que os respectivos falantes julguem o contrário. Se o mundo estivesse bem feito – e não está – não haveria mais de uma dezena de línguas sobre o nosso pobre planeta, as quais seriam aprendidas por todos neonatos da espécie. Combinávamos a diversidade linguística com a comunicação universal. O mal do mundo é não me consultarem antes de tomarem decisões irrevogáveis. Caso me tivessem perguntado se era coisa boa porem-se a construir a torre de Babel, eu teria respondido que sim, mas – e aqui a adversativa faz toda a diferença – não passem do quinto andar. Se o Todo Poderoso se aborrecer e decidir por castigo multiplicar as línguas, não ultrapassará a dezena, pois se o fizesse a pena seria sem proporção com o delito. Não me ouviram, puseram-se a tentar chegar aos céus e foi no que deu. Ninguém se entende. A adolescência calou-se, exercitam, por certo, o inglês, mas não sabem o que é a torre de Babel, o que é uma pena. Se o soubessem, não alimentariam ilusões sobre uma comunicação universal. O dia está frio e cinzento e eu não tenho mais nada para escrever senão frivolidades.
terça-feira, 15 de fevereiro de 2022
Cosa mentale
Cheguei à conclusão que o fundamental é a mente. Hoje fartei-me de andar de um lado para outro, numa azáfama digna de uma barata tonta. A certa altura parei e fui consultar a aplicação que gere os meus pontos cardios, seja lá isso o que for. Vários milhares de passos. Muito bem, pensei. Isto deve dar uma boa pontuação. Quando olho para ela vejo o número 3. Tanto ir e vir e apenas 3 pontos cardios. Depois, livre da corveia, decidi caminhar um pouco a pensar nos pontos cardios. Com menos de metade dos passos dados anteriormente, acumulei sete vezes mais pontos. Foi, então, que tive o vislumbre. Sem a mente estar focada no objectivo não há pontos cardios. A mente é que comanda a vida. Quando eu tinha uma idade que nem parecia ser idade, havia quem cantasse o sonho comanda vida, uma óbvia falsidade, apesar dos sonhos, como a pintura, serem cosa mentale. Leonardo da Vinci estava certo quando dizia la pittura è cosa mentale, mas, ao contrário de mim, não percebeu que a sua afirmação tinha uma natureza meramente metonímica. Tomava a parte pelo todo. Deveria ter afirmado tudo é coisa mental, incluindo a pintura. E os pontos cardios, acrescentaria eu, caso falasse com ele. Talvez por isso Juvenal terá escrito mens sana in corpore sano, coisa que aparece no fim de um verso que verseja assim orandum est ut sit mens sana in corpore sano, que é como quem diz reza para teres uma mente sã num corpo são. E daqui concluo que, caso queira acumular pontos cardios para a sanidade do corpo, terei de afinar a saúde da mente para que ela se concentre no desiderato. Se algum leitor incauto pensar que eu sei Latim, informo-o que o pensamento é falso, apesar do próprio Latim ser cosa mentale.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022
São valentinizem-se
O mundo está cheio de indícios de que sou velho. Pertenço a um tempo em que não se sabia que S. Valentim tinha uma inclinação para padroeiro de namorados. Para dizer a verdade, não fazia a mínima ideia de quem era o santo, e, caso mo perguntassem, diria que era um daqueles que se comemora no dia de Todos-os-Santos. Hoje, caso quisesse marcar uma mesa para um restaurante, não me seria possível, pois todos aqueles que julgam ter o dever de comemorar a futura separação, ou coisas mais negras, ocuparam as mesas para fazer jus ao pobre do Valentim. Aqui por casa, temos uma especial embirração com o dia. Como este só o Halloween. Todo este rancor não passa, porém, de uma bravata de quem pertence a um mundo que já acabou. Por outro lado, não sou completamente desfavorável ao caso, pois sempre ajuda a restauração a restaurar as finanças, com casa cheia, muita gente feliz, corações e, nunca se sabe, algemas, para casais mais dados à dominação. Quem não deve estar particularmente feliz é a minha neta mais velha. Em vez de S. Valentins, está a ser torturada com equações. A tecnologia não veio melhorar o mundo. Com ela, o braço da avó estende-se por mais de 100 km para lhe ordenar atenção às estratégias de resolução dos problemas. Isto fez-me lembrar a tensão entre a Ucrânia e a Rússia, mas sobre assuntos políticos não tenho opinião. A noite desce lentamente, os namorados suspiram, olham-se, bocejam, enquanto espreitam para o relógio e calculam quanto tempo falta para o jantar. Ah… estava-me a esquecer. Hoje, alguém conhecido, mas não íntimo, perguntou-me o que íamos fazer à noite. Olhei a pessoa perplexo. Se íamos jantar fora, é dia de S. Valentim, esclareceu. Fulminei-a com o olhar. O que vale é que o meu olhar tem pouco de fulminante, e a pobre vítima resistiu. São valentinizem-se, é o que me ocorre dizer.
domingo, 13 de fevereiro de 2022
Spleen
Tenho de mudar as escovas do limpa pára-brisas. Tive de me meter no carro para ir cumprir uma tarefa inadiável. E enquanto me deslocava pela cidade começou a chover. Reparei, então, que as escovas já tiveram melhores dias e que estão a pedir reforma ou, para utilizar o jargão adoptado pelo empreendedorês em vigor, têm de ser descontinuadas. Aproveitei para uma revisitação a uma tarde de domingo na província. Outrora, a tarde de domingo poderia ser dedicada ao numa ida ao cinema ou ao futebol. O cinema foi descontinuado. A sala – um bela e grande sala – foi reconstruída, mas na verdade já não é um cinema. Quanto ao futebol, penso que os espectadores se descontinuaram, mas não tenho provas para o que afirmo. A cidade estava triste, banhada por uma cinza caída de um céu velado por uma cortina de nuvens. As pessoas deslocavam-se presas a uma estranha irrealidade, como se fossem fantasmas. Os domingos de província não são coisa que suscite grandes entusiasmos. Também eu sofro, de momento, dessa falta de entusiasmo. Olho a rua, vejo transeuntes e carros a passar, nada que mate em mim o spleen que me acometeu. Daqui a pouco terá passado, como é hábito. O pior é que amanhã não tenho tempo para ir mudar as escovas. Isso, sim, deveria preocupar-me.
sábado, 12 de fevereiro de 2022
Tentações
Foi uma semana pesada, de tal modo que nem oportunidade tive de vir por estes lugares narrar as extraordinárias aventuras que, contadas com arte e engenho, ainda de mim fariam um Ulisses ou um Cid, el Campeador. Como a natureza não me dotou com essa indústria, fico-me por um anónimo Sancho Pansa que perdeu o seu D. Quixote. Por motivos que não vêm ao caso, hoje coube-me fazer o almoço. Uma experiência que acabei por declinar. Saí de casa e, como isto é uma quase cidade e uma quase cidade moderna, dirigi-me a um takeaway de confiança, com provas dadas. Acho que, olhando o que comprei, nem cozinhei mal, embora ainda não tenha almoçado. A isto chama-se crer na uniformidade da natureza, uma crença que julga por bem afirmar que se as coisas no passado foram boas também o serão no futuro. É uma ideia comovente, apesar de certos pensadores acharem que não tem justificação. Ora, oiço-me dizer, se nós apenas déssemos crédito ao que conseguimos justificar, nada teria crédito. O dia está cinzento, muito, mas não chove. Antes de sair, sentia-me bastante envelhecido, mas agora, retornado a casa, recuperei a idade que tinha, o que não é um consolo extraordinário. Continuo a acumular livros sem saber a razão. Na minha secretária repousam dois de Marsílio de Pádua. São traduções espanholas chegadas na quarta-feira. Talvez sofra de uma adicção e deva entrar para os viciados em compra de livros anónimos, onde haveria confessar as terríveis tentações. As de comprar livros, entenda-se.
domingo, 6 de fevereiro de 2022
Penas desproporcionais
Num poema do realizador e poeta italiano Pier Paolo Pasolini deparo-me com a metáfora os candelabros de oliveiras. Em português, a sonoridade não é arrebatante, tão pouco em francês, a tradução em que leio o poema. Como não tenho acesso ao original, faço a experiência de traduzir a tradução para italiano, com a esperança de aceder ao que Pasolini terá escrito. O tradutor devolve-me lampadario di ulivo. A aliteração do ‘l’ e a assonância do ‘i’ dão à metáfora uma intensidade que as versões em português ou em francês não alcançam. Olho para as oliveiras da escola ao lado e, pela primeira vez, vejo nelas um candelabro, como se elas tivessem na sua seiva o estranho poder de me iluminar. Agora, o silêncio caiu no parque infantil da praceta. Até há momentos um bando de crianças entregava-se a jogos ruidosos por onde se expandia a sua infância. O dia está luminoso e não há vento. A ramagem do arvoredo não bole, nem nos céus há pássaros ou anjos a voar. Na avenida, os carros passam tomados pelo fastio de domingo. Alguns estacionam para que de dentro saia alguém à procura de um café ou de um bar. Um casal é levado pelo seu cão, um animal minúsculo, irascível. Uma moto ronca quebrando o sossego dominical, para o seu condutor confirmar no troar mecânico a virilidade. Nunca deixam de me espantar as causas que suspeito nas acções dos seres humanos. Uma das minhas netas está a ter uma lição de inglês, em videoconferência, com a avó. Há pouco foi a outra, mas a lição era de francês. Tenho pena delas, mergulhadas neste mundo cheio de possibilidades comunicativas. Olho para o relógio e penso que a missa do meio-dia, em S. Pedro, se aproxima do fim. Ao acabar, as famílias sairão para o almoço dominical, como se o mundo continuasse igual àquele em que também eu ia à missa em S. Pedro. Esse mundo, todavia, acabou para mim há mais de quarenta anos. Presumo que o padre será outro e que os próprios fiéis serão, em grande parte, outros. Depois, penso no poema de Pasolini e fico a contemplar a expressão lampadario di ulivo. Uma dúvida veio atormentar-me: e se Pasolini escreveu outra coisa? Deveríamos conhecer todas as línguas do mundo para poder ler poesia no original. A realidade, de facto, deixa muito a desejar. O castigo por causa da torre de Babel parece-me excessivo. Uma pena desproporcional, diria um jurista. Eu abano a cabeça em sinal de concordância.
sábado, 5 de fevereiro de 2022
Conspirações
Talvez a realidade não passe de uma encenação, o resultado de uma teoria da conspiração. Não digo isto motivado pelo ódio que, contra mim, a balança continua a destilar. Ela fá-lo, mas, por certo, não conspira contra mim. O caso é outro. Ontem passou na RTP 2 um filme de Buñuel, A Bela de Dia. Decidira vê-lo. Qualquer coisa correu mal no computador e o filme ficou preso e eu desisti e, em vez de Buñuel, na televisão, decidi-me por um Antonioni, na plataforma cinematográfica de que tenho uma assinatura. Hoje, ao abrir um livro, cai-me lá de dentro um rectângulo de cartão usado para marcar uma página. Fui ver o que era e descobri um bilhete de cinema – do Cine Teatro daqui – com a data de 24-Out-07 e com a hora 21:30. E que filme fui ver nesse dia, àquela hora? Precisamente, A Bela de Dia, de Buñuel. O filme é de 1967 e tem por protagonista Catherine Deneuve. Belíssima nos seus vinte e poucos anos. Estes acontecimentos, que uma mente prosaica, perdida na trivialidade do quotidiano, atribuirá ao acaso, são o resultado de uma conspiração, cuja finalidade é incompatibilizar-me com o tempo. A Yourcenar acha que ele – o tempo – é um grande escultor, mas eu, olhando a Deneuve nos seus vinte e pouco anos, tenho a certeza de que ele – o tempo – deveria ocupar-se de outras coisas e deixar a escultura em paz. Estes textos, ultimamente, têm tido um tamanho excessivo. Pergunto-me se não estou a sofrer de verborreia. O melhor é ficar por aqui, até porque o meu neto não tarda.
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022
Lágrimas
A noite de sexta-feira já caiu há um bom bocado. Preguiço, deixando deslizar pelas colunas da aparelhagem o som de um disco de jazz. A faixa que oiço neste momento tem um título curioso, Transformação pelas Lágrimas. Talvez o autor esteja equivocado ao escolher tal título. Não são as lágrimas que provocam uma transformação, mas certas transformações existenciais geram lágrimas. Isso é muito conhecido tanto na religião como na psicanálise. Uma conversão religiosa, não me refiro aquelas que vão acontecendo ao longo de um período alargado, uma conversão religiosa, escrevia, pode ser acompanhada, se ela é súbita, por um amplo verter de lágrimas, como se fora uma forma de purificação da alma. O mesmo se passa no processo analítico, quando o paciente toca em algo que recalcara e escondera no fundo do inconsciente. Seja como for, as lágrimas são o sinal de uma transformação e não a sua causa. Alguma coisa que se solidificara e que se liquefaz. O que vale é que a faixa já mudou e a que oiço agora tem o título Deep as Love. Não vou massacrar ninguém com uma meditação sobre profundidades e amores. O que me atormenta é a velocidade com que a sexta-feira se precipita em direcção ao sábado. Se o mundo estivesse bem feito, chegada a hora em que uma pessoa – qualquer pessoa – se liberta dos imperativos da necessidade, o tempo refreava o seu ímpeto, a sua ânsia de transformar cada momento em passado, nessa busca inglória de um futuro que nunca atingirá. Por falar em tempo, é de bom tom citar uma autoridade. Agostinho de Hipona, escreve a certa altura O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo pergunta, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Agostinho escreveu isto no capítulo 14 do Livro XI, das Confissões. Agostinho, Santo Agostinho, também ele se converteu. Na mesma obra, no capítulo 12 do Livro VIII, escreve: Quando, por uma análise profunda, arranquei do mais íntimo toda a minha miséria, levantou-se enorme tempestade que arrastou consigo uma chuva torrencial de lágrimas. Talvez tempo e conversões, sejam elas quais forem, estejam ligados. Para terminar esta estranha e inesperada deambulação, uma nota sobre esse livro VIII. Todo ele é uma belíssima peça literária. A hora de jantar aproxima-se.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022
Uma vida plácida
Depois de uns dias na capital, retornei manhã cedo ao lar. Ao chegar, constatei que a cidade não apenas não mudara de sítio como continuava com a mesma cara. A constatação tranquilizou-me. A partir de certa idade, as mudanças tornam-se todas elas suspeitas. Não vale a penas virem atirar-me à cara que não possuo alma de revolucionário. É um facto. Quando era novo, muito novo, pensava que era revolucionário e que haveria de mudar o mundo. No entanto, havia sinais que, estivesse eu atento a eles, me indicavam que a minha índole era outra. Por exemplo, se frequentava um café, gostava de me sentar sempre na mesma mesa. Se ela estava ocupada, sentia em mim uma certa contrariedade. Se me deslocava habitualmente a um certo sítio, escolhia sempre o mesmo percurso em vez de me pôr a inovar. Com isto está provado que além de não ser um revolucionário, também não sou um inovador, coisa que agora está muito na moda. Não há cão nem gato que não o queira ser, embora a falta de talento da maioria desses candidatos a inovadores seja uma segurança para quem como eu é adepto de uma vida plácida. A noite já pousou sobre a cidade e abrigou-a com o negro das suas asas. O pior é a falta de chuva. Não tarda, a península que nos coube em sorte torna-se um deserto. É o que dá o ímpeto revolucionário e o espírito inovador. Fosse o clima conservador e ainda hoje teríamos quatro estações, agora nem sabemos ao certo quantas são.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022
Dia sabático
Hoje decidi oferecer-me um dia sabático. Não fazer rigorosamente nada. Fui almoçar fora e passear numa tapada para apanhar sol ou, quando este estava muito quente, para me proteger na sombra de velhas árvores. Descobri que muitas outras pessoas se tinham oferecido a si mesmas um dia sabático. Hoje não tive videoconferências, nem reuniões intérminas, nem admiráveis discussões sobre o sexo dos anjos ou o melhor modo de salvar o mundo ou as pessoas, ou sei lá eu o quê. Um dos males deste planeta é estar pejado de gente que se representa como super-herói. Por norma, estas pessoas, sempre prontas a descortinar causas de salvação, são daquelas que fazem o mal e a caramunha. Como se vê, contínuo, mesmo em dia sabático, a cultivar expressões ao gosto popular. Foge-me o pé para a chinela, quero eu dizer. Tanta aparência de erudição, mas a verdadeira cultura de base é aquela composta por máximas, provérbios e ditos do mais trivial senso comum. Aproveito para esclarecer que senso comum e bom senso não são a mesma coisa. Apesar de certo e importante pensador, um dos pais da modernidade, afirmar que o bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo, pois não há quem julgue que precise de mais do que aquele que possui, apesar disso, dizia, o bom senso é uma coisa bastante incomum. O comum é as pessoas terem pouco sentido das coisas. Têm um olhar enviesado sobre a realidade. Eu também o tenho, mas é um enviesamento hiperbólico. Olho de lado e vejo tudo aumentado, embora quando olhe para mim de esguelha não consiga ver na minha pessoa um super-herói. Poderia ser um super-homem, mas tenho medo da kryptonite e de que ande por aí algum Lex Luthor à minha caça. Vou agora ver deslizar o dia, olhando para as águas de Tejo a fundirem-se no mar, à espera que as minhas netas cheguem. Enquanto o rio flui, vou ler mais umas páginas da Ogawa. Isto é permitido em dia sabático.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2022
Pedir chuva
A seca agrava-se, leio. Não se pode ter tudo, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal. Neste caso, ou se tem um Janeiro primaveril ou se tem água nas barragens. Se houvesse um regulador da natureza, tudo era mais fácil. De dia, havia sol; de noite, chovia e as barragens enchiam-se de água. Como ninguém me pediu conselho, agora as coisas estão como estão. Avanço vagarosamente na leitura do romance de Yoko Ogawa, A Polícia da Memória. Tudo se passa numa ilha sem nome e a obra parece inscrever-se na categoria das distopias. Nessa ilha, as coisas desaparecem e com esse desaparecimento vão-se também as memórias delas. O papel da polícia da memória é assegurar que não persistam memórias daquilo que desapareceu. Ao não-ser não deve corresponder seja o que for. No início do século XVI, Thomas Morus escreveu Utopia, de certo modo inspirado na República platónica. Apesar da ironia do nome, a obra representa uma visão benevolente de uma sociedade humana, uma espécie de ideal orientador inscrito na génese da modernidade. Se olharmos para o século XX, o que encontramos são distopias, uma visão negra das possibilidades humanas. Serão uma confissão literária da falência do projecto da modernidade. Nem sei o que me deu para me dedicar a este tipo de conjecturas. Deveria ir apanhar sol e aproveitar estes dias em que a chuva se entrega a uma greve sem fim à vista. Também, um mundo onde fizesse sempre sol e nunca chovesse poderia acolher uma distopia literária. À minha frente estende-se uma belíssima tapada. Árvores centenárias, animais, pessoas passeando. O pior é a falta de chuva. Outrora, ouvia-se muito a expressão estás mesmo a pedir chuva. Parece que sim.
segunda-feira, 31 de janeiro de 2022
Perversões de Janeiro
Janeiro acaba hoje, lá para a meia-noite. Um mês pervertido, de maus hábitos, a fazer passar-se por aquilo que não é. O que tinha ficado combinado, quando foi feita a distribuição dos meses pelas estações, era Janeiro ser um mês de Inverno, com chuvas copiosas, águas a correr peãs cidades e pelos campos, talvez inundações, sabe-se lá mais o quê. Nada disso. Janeiro agora é Primavera, árvores a florir, passarinhos a cantar, um sol vigoroso. À noite está frio, claro, mas os dias são uma antecipação do que está para vir. Hoje é um dia particularmente pesado. Voltaram as videoconferências, uma espécie de exercício penitencial adequado a quem tem muitos e graves pecados, embora existam videoconferências para todos os gostos. Umas são rápidas, sem considerações sobre o importante tema do sexo dos anjos. Outras, porém, são exercícios ferozes de angelologia, onde o assunto principal é o do sexo dos mensageiros divinos. Há quem esteja fascinado por esse sexo etéreo e sobre ele derrame as mais profundas especulações. Não tenho a certeza, mas será a casos destes que se aplica aquele comentário acintoso que proclama: Freud explica. Na verdade, Freud não explica nada há muito, muito tempo, mas é pena. Ontem deu-se o desfecho da campanha eleitoral. Encerradas as urnas, pode-se dizer que a campanha – uma alegre campanha – não focou muitos dos assuntos mais excruciantes que afectam este cantinho à beira-mar plantado. Por exemplo, o desconcerto das estações, elas que deveriam suceder-se em ritmo concertante, ou a razão por que há tanta gente disposta a gastar a vida dos outros a discutir o sexo dos anjos. Os nossos políticos de todos os quadrantes eximiram-se ao dever de discutir coisas destas que atrapalham a vida de toda a gente. Uma pena e uma oportunidade perdida.
domingo, 30 de janeiro de 2022
Uma questão de almas
Hoje é domingo e, devido a um hábito contumaz, o almoço será tardio. A meio da manhã recebi uma chamada do padre Lodo. Já fui votar. Desde que adquiri nacionalidade portuguesa, não falhei uma eleição, acrescentou. Sou devoto da democracia, apesar de jesuíta. Ao dizer isto começou a rir-se. Temos má fama, continuou, mas somos uma companhia moderna. Aqui, foi a minha vez de me rir. Modernos, então não são um pilar da contra-reforma? O que lá vai, lá vai, respondeu ele. Depois, começou a evocar a sua Itália, a família. Um dia destes vou fazer uma visita. Querem vir comigo, perguntou, como quem faz um convite. As minhas netas estão um pouco aceleradas. Desde que têm um cão, tratam-no como se fosse um irmão. O bicho olha para mim desconfiado, não devo ter ar de pertencer ao clube dos adoradores de animais. A verdade é que não me passaria pela cabeça fazer de avô de um cachorro. Devo ser um especista do pior, mas, apesar de defender que os seres humanos têm deveres rigorosos para com os animais e até para com as árvores, não julgo que se lhes deva dar direito de voto. Sobre este assunto partilho a visão do padre Lodo, que apesar de ter o seu gato de estimação, não admite a ideia de uma continuidade entre espécies. Costuma dizer que admira Darwin, mas que um homem é um homem e um gato é um gato. E os gatos não têm alma, para logo acrescentar: não têm alma imortal. Por analogia, também acho que o cachorro das minhas netas não terá uma alma imortal. Aproxima-se a hora de almoço.
sábado, 29 de janeiro de 2022
Dia de reflexão
Até eu, um mero narrador, estou em dia de reflexão. Em vários sítios tenho encontrado um feroz argumentário contra este dia anteposto aos actos eleitorais, no qual as pessoas se recolhem e se colocam diante do espelho para este as reflectir. Como é público, eu não me meto em política e não tenho opiniões políticas. Estou proibido pelo autor. Contudo, não posso estar mais em desacordo com todos aqueles que vituperam a existência deste magnífico tempo, no qual, depois de ouvirem e de estudarem as múltiplas opções que a pátria tem para cumprir aquilo que é determinado por Bruxelas, as pessoas se entregam a um tenaz exercício da sua razão crítica para determinar, se for esse o caso, a quadrícula do boletim de voto onde irão colocar um X. E este acto – o de colocar um X – deveria produzir uma grande indignação, pois discrimina os homens, os machos da espécie. Estes deveriam ter direito a colocar no boletim de voto um Y. Pouco corajosos, temendo que o Y corresponda a um voto nulo, lá cedem na sua masculinidade e, nesse momento crucial em que escolhem o destino da pátria, feminilizam-se e em vez do verrumante Y pespegam no papel o doce e harmónico X. Não faço ideia se a Comissão Nacional de Eleições permite que se expresse este tipo de problemas, mas há que correr riscos. Hoje está um dia de Primavera por aqui. Fui à rua e senti as pessoas acabrunhadas. Deve ser o peso da reflexão, ainda não sabem em que quadrícula hão-de fazer o X, pensei. Antes de encerrar este assunto, gostaria de sublinhar a perspicácia do legislador que, nos anos 70 do século passado, decidiu um dia de grande serenidade, digamos de bonança política, antes daquele em que as urnas se abrem e se fecham. Faz-me lembrar aqueles momentos de súbita calmaria no mar que antecedem as terríveis tempestades. O legislador era, de facto, perspicaz, mas também dado ao exagero e ao drama. Tinha uma visão teatral da política, não percebendo que vivemos no mundo moderno, numa época onde a burocracia ocupou o lugar do encantamento mítico. Tudo depende da contabilidade e não das vontades ínvias dos deuses. Agora, vou continuar a reflectir, mesmo que um narrador, um mero ser de papel, não tenha direito de voto. Outra injustiça, não bastava já o banimento dos Y, também os narradores – sejam X ou Y – foram banidos.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2022
Fim de reclusão
Passada a semana de reclusão, lá me vi atirado para a rua, obrigado a perambular por aqui e por ali, perdido entre outros transeuntes, também eles a deambular sem destino. Constatei, não sem alguma tristeza, que nada tinha mudado. Sete dias não são tempo suficiente para haver mudanças, dir-se-á e eu concordo. Contudo se sete dias não são tempo suficiente para haver mudanças, também oito não o serão, mas se oito não são… O leitor já está a ver a onde leva esta história. A isto dá-se o nome de paradoxo de sorites. Ainda falta qualquer coisa, mas deixemo-nos de paradoxos. Tenho uma série de coisas desagradáveis para ler, bem como outras não mais agradáveis para escrever. Para comemorar o dia da libertação, acabei por passar por uma livraria e, para enriquecer a minha pobre biblioteca, trouxe de lá os romances A Polícia da Memória, da japonesa Yoko Ogawa, e Tomás Nevinson, do espanhol Javier Marías. Segunda a crítica, este será o seu melhor romance. O pior é que são 650 páginas, um tijolo. Chega de procrastinar.
quarta-feira, 26 de janeiro de 2022
Sem-abrigo cinematográfico
Hoje passei o dia a trabalhar, apesar de continuar em isolamento covidiano. Amanhã, é dia de soltura. Durante estes sete dias, o vírus foi benévolo. Não por causa da minha super-imunidade, mas das três doses da vacina. Sem elas, não sei o que aconteceria. Foi ainda benévolo de outra maneira. Retirou-me a vontade de ler, o que me permitiu ter tempo para ver cinema. Não entro numa sala de cinema desde que a pandemia começou. Aliás, já tinha diminuído as idas. Por norma, só ia ao cinema quando estava em Lisboa. Ali frequentava as salas da Medeia Filmes, no Monumental, no Saldanha Residence e no King. Eram as que passavam o cinema de que gosto e onde não havia gente a comer pipocas. A certa altura, fecharam as salas do Saldanha Residence. Depois, fechou o King. Por fim, fecharam as salas do Monumental. Senti-me um sem-abrigo cinematográfico. Quando fui estudar para Lisboa, a sensação era o Quarteto, que, na altura, tinha uma selecção de filmes para um público com um certo olhar, digamos assim. O tempo passou e tudo aquilo se degradou. Já não sei em que sala foi, mas uma noite fui a uma estreia de um filme de João Botelho, salvo erro. Chegada a hora de começar o filme, nada se moveu. Os minutos começaram a passar sem dó nem piedade, os presentes perguntavam-se pelas razões do atraso, mas não havia quem confessasse, até que passado bem mais de meia hora entra na sala o Presidente da República e mulher. Estava explicado, mas havia uma incongruência. Como seria possível um militar não cumprir o horário? Fosse aquilo uma guerra e Portugal tinha perdido por falta de comparência. Do filme, já não me lembro. Tenho a vaga sensação que uma das actrizes era a Maria de Medeiros, em início de carreira, mas já não juro.
terça-feira, 25 de janeiro de 2022
Sem traço
Continuo em isolamento, mas aproxima-se o dia da libertação. É preciso que o vírus continue a cooperar como tem feito até aqui. Tanto quanto sei, os vírus são criaturas voláteis, caprichosas, possui idiossincrasias que nem sempre se deixam interpretar. Até hoje, apenas me permitiu ver cinema. A leitura cansava-me. Trabalhar, ainda me deixava em pior estado. Hoje, porém, estive toda a manhã a cumprir os imperativos que a necessidade me impõe. Daqui a pouco volto para a azáfama. Olho para as ruas, mas acho-as irreais, um sol de cor indefinida, uma mistura de palha e melancolia. Uma máquina troa, os adolescentes gritam à espera do começo da aula no Centro de Línguas. Reparo que as acácias da praceta foram podadas. Rebentarão mais vigorosas. No correio chegou-me um livro de Augusto Abelaira, comprado num alfarrabista. Abro-o, percorro-o e sinto uma certa desilusão. Não tem nenhum traço do antigo proprietário. Uma dedicatória, um bilhete esquecido entre as páginas, uma reflexão, nada. Arrumo o livro, dou uma volta pela casa, olho para o friso das orquídeas e espreito o castelo ao longe. O tempo passa sem se importar com as orquídeas, os castelos, os vírus e os isolados. Mentalmente, registo o que tenho para fazer ainda hoje. Espreguiço-me e bocejo. Vida de isolado. Ao menos, podia ter ido para a Trapa ou para a Cartuxa, para esses lugares de grande silêncio. Medito no assunto e decido que vou ver um filme. Depois, terei tempo para acabar as tarefas de hoje.
domingo, 23 de janeiro de 2022
Sem energia, o termómetro
Nem sei se este é o terceiro ou o quarto dia de reclusão forçada. Será que a quinta-feira conta como reclusão? Quando descobri que o vírus tinha marcado encontro comigo já era noite e não fazia qualquer intenção de sair de casa. Acho que não vou contar esse dia. A relação com o vírus tem sido amistosa, apesar do PCR ter confirmado a situação. Não sei se é um dos sintomas ou apenas um dano colateral, mas ontem vi três filmes do Eric Rohmer, A Coleccionadora, O Joelho de Clara e Amor às Três da Tarde. Dizia para mim, estou com pouca energia, o melhor é ver um filme. Hoje, domingo de sol pouco exuberante, espero não me perder pelos fantasmas morais e eróticos do realizador. Sempre posso ver um filme, mas o melhor é não exagerar. Olho para a minha secretária e parece que sou um hipocondríaco. Não sou. Tenho, em cima dela, um termómetro, um oxímetro e um medidor da tensão arterial. Estar rodeado por tanta tecnologia digital mostra bem como sou um homem moderno, embora, confesso, dispensasse de bom grado o termómetro digital e voltasse para os braços do velho termómetro de mercúrio. Este termómetro irrita-me. Primeiro que o coloque em situação de medir a temperatura demora o seu bocado. Depois, posto debaixo do braço, devo retirá-lo quando ele der sinal, mas o pobre tem uma vozinha tão débil que muitas vezes nem consigo ouvi-lo. Por fim, acho que sofre de anemia. Devolve-me temperaturas na ordem dos 36, 35,5 ou mesmo dos 35 graus. Falta-lhe energia, para lidar com a realidade. Também a mim.
sábado, 22 de janeiro de 2022
Antigénio e PCR
Está sol. Vejo-o através dos vidros da janela. Sou um isolado a tempo inteiro. Há alturas em que ando de máscara em casa, desinfecto as mãos antes de tocar em coisas que podem ser tocadas por outros. Ainda não recebi o resultado do teste PCR. Pode vir hoje ou, disseram-me, mesmo no domingo. E se der negativo? Não conheço nenhum caso em que um teste de antigénio feito em casa dê positivo e que o PCR o desminta, e eu não fiz um teste caseiro, fiz dois. O mais curioso de tudo isto é que escrevo antigénio e PCR com a maior das naturalidades, como se fossem coisas por mim conhecidas ainda antes de nascer, com o eram as Ideias ou Formas, segundo Platão. Ora, não faço a mínima ideia do que seja o antigénio ou PCR. Há muitas décadas, havia, numa certa escola que frequentei, um professor conhecido pelos os alunos como o Biótico. Os próprios alunos autodesignavam-se como antibióticos. Talvez o antigénio seja uma pilhéria de alguém contra os génios. Estas coisas nunca se sabem. Já o PCR faz-me lembrar a sigla de um partido político, o que se coaduna com a época de eleições em que estamos mergulhados. Vais votar em quem? No PCR, e tu? Seja como for, entre antigénios e PCR, tenho de estar confinado. As principais ocupações, até agora, são tomar paracetamol e beber água. Embora não esteja prescrito, o vinho não está proscrito, penso eu. Outra ocupação é escrever patetices, mas isso não vem de agora, nem tem por causa os testes positivos à COVID. É anterior. Tem-me animado não ter perdido o paladar. Sendo assim, posso meditar que tinto vou abrir para o almoço, que há-de chegar tarde, por circunstâncias exteriores ao actual estado de coisas. Mais logo, espero ver um novo filme de Eric Rohmer. Ontem vi dois, O Signo do Leão e Pauline na Praia. Não há nada como isolamentos e confinamento para alargar a cultura cinematográfica.
sexta-feira, 21 de janeiro de 2022
Positivo
Há pouco, com receita do SNS, fui a um laboratório para que me escarafunchassem o nariz. Tudo isto porque tive a ideia de deixar aqui em casa que me metessem uma zaragatoa pelas narinas e num passe de mágica tinha, perante os olhos, aquela coisa, por onde desliza um líquido imundo, com dois traços a vermelho. Positivo, exclamei. O melhor é repetir o teste, alvitraram. Respondi que não, que acreditava na veracidade do teste, mas lá anuí. Tornou a dar positivo. Em solidariedade comigo, a minha neta mais nova também testou positivo hoje de manhã. Uma coisa não tem a ver com a outra, pois já não nos vemos há umas semanas e ela está a mais de 100 km de distância. Até aqui, na família próxima tinham existido dois casos. Agora, já vão em quatro e talvez existam mais. Por causa das coisas, pedi que me comprassem um oxímetro. Pensei que fosse um investimento, pois parece que não livramos desta história nos próximos tempos. A sexta-feira tem estado luminosa, fazendo lembrar um belo dia de Primavera, mas não passa de um arremedo de sexta-feira. Tirando a saída para realizar o teste PCR, estou preso em casa, a tomar paracetamol. Enquanto a coisa for assim, não está mal. Aproveitei a manhã para ver A Minha Noite em Casa de Maud, de Eric Rohmer. Se tudo correr bem, tenho uns dias para dedicar ao cinema de Rohmer, para rever coisas já vistas ou para ver outras nunca vistas. Vamos lá ver se o vírus coopera.
quarta-feira, 19 de janeiro de 2022
Bibliopatologia
Na caixa de email, uma livraria online respeitável oferecia-me vários cursos, entre eles o de biblioterapia. Descobri que existem já biblioterapeutas que se propõem curar os maus hábitos dos portugueses relativos à leitura. Eu percebo que todos temos de ganhar a vida de um modo ou de outro, e trabalhar para criar hábitos de leitura noutros é profissão tão respeitável como qualquer outra. Aborrece-me a ideia subjacente de patologia. Não ler deixa de ser a ausência de uma certa virtude moral e passa a ser uma doença que é preciso tratar. Este tipo de abordagens tem por consequência eliminar a responsabilidade de cada um perante si e os outros e, concomitantemente, a liberdade. O acto de ler ou não ler deixa de ser uma escolha livre e passa para o domínio da saúde e da doença. Eu gostava muito de ler um livro, mas sofro da doença da não leitura, paciência. A liberdade passa então para outro domínio. Frequentar ou não uma biblioterapeuta. Serei virtuoso se, perante a falta de apetite pela leitura, me predispuser ao tratamento, e vicioso se recusar tratar-me. O problema que se coloca, porém, é se a recusa em se tratar não será também uma doença a exigir uma terapia específica. Como se pode observar, estou com uma enorme falta de assunto. Nada de notável para narrar. Minto. As orquídeas começam a dar sinais de vida. Algumas têm já vários botões. Ainda não temos um mês de Inverno e já por aqui se anuncia a Primavera. Talvez as orquídeas sofram de uma patologia temporal. Haverá terapeutas para esse mal?
terça-feira, 18 de janeiro de 2022
Caso perdido
Encontro sempre as mais mirabolantes justificações – ou desculpas – para gastar dinheiro em livros. No domingo, encomendei uma obra na FNAC online e hoje fui levantá-la à fnacquezinha que temos nesta pequena cidade. Trata-se da Fenomenologia do Espírito, de Hegel, na tradução do professor Barata-Moura. Tenho a intenção de pegar no livro e entregar-me aos devaneios idealistas do senhor Georg Wilhelm Friedrich, ir da certeza sensível até ao saber absoluto? Nem por isso. Então, diz-me a consciência, por que raio compraste esse tijolo que exige mais três centímetros de prateleira? Porque tenho um coração inclinado ao patriotismo, respondi. A consciência, não se ficou e retorquiu, citando o celebrado dr. Samuel Johnson, o patriotismo é o último refúgio do canalha. Foi nisso que te tornaste? Por Deus, exclamei e passei à explicação. Temos um mercado de bens culturais escasso, muito escasso. Ora, sempre que é traduzida uma grande obra da literatura universal ou da filosofia – embora esta não seja outra coisa senão literatura – eu disponho-me a comprá-la, mesmo que não me disponha a lê-la. Isto por solidariedade com o tradutor e o editor. A consciência olhou-me de lado e perguntou-me se eu queria arruinar-me. Aqui eu sorri e perguntei, de forma enfática, arruinar-me? Em primeiro lugar, são escassas as grandes obras universais. Depois, ainda são mais escassas – e lentas – as suas traduções. Há tempo para recuperar de qualquer extravagância. O patriotismo está aqui, acrescento, no contributo para alargar o mercado de bens a que os portugueses não são particularmente sensíveis. A consciência encolheu os ombros e olhou-me como se eu fosse um caso perdido. Sou-o, claro, mas não mais que qualquer outra pessoa, real ou virtual.
domingo, 16 de janeiro de 2022
Cura de águas
Leio que há quem pense, e propague aquilo que pensa, que beber água em jejum tem um extraordinário efeito curativo. Isto, para além de ser de prevenir as doenças que, caso não sejam evitadas, hão-de exigir uns quanto jarros de água matinais. Se pensa que as maleitas tratadas a água são daquelas que se curam com aspirina ou paracetamol, então está enganado. São doenças terríveis como a taquicardia, os problemas cardíacos, a diabetes, a meningite, o cancro. Não sei o que é mais espantoso, se a facilidade com que algumas pessoas acreditam seja no que for, ou a imaginação delirante que inventa estas curas milagrosas e tem artes para as propagar. Depois de dois séculos de triunfo do Iluminismo, as luzes da razão parece que estão fundidas e não há quem mude as lâmpadas. Se eu fosse estatístico e me entretivesse a recolher dados para com eles estabelecer correlações, tenho quase a certeza – mas ter quase uma certeza, ainda não é ter certeza alguma – de que existe uma correlação entre o crescimento do conhecimento racional e o crescimento da superstição. Não me atrevo, até porque hoje é domingo, a dizer que o desenvolvimento da potência da razão é, ao mesmo tempo, a causa do crescimento das aberrações da superstição. Se fosse um dia da semana, talvez tivesse coragem para o afirmar. Assim, pois hoje é domingo, restrinjo-me a uma mera sugestão. Não se pense que falo destas coisas por falta de assunto. Motivos para falar não me faltam, até porque tive ao almoço a visita do meu neto. Não veio só, claro, mas para um avô os netos vêm em primeiro lugar e brilham de tal maneira que ofuscam todo o resto. Quando ele está comigo entrego-me a actividades úteis, como fazer construções com o Lego ou corridas de automóveis, em vez de me deixar arrastar por estranhos pensamentos que me hão-de perder. A tarde avança a galope, não tarda chega o crepúsculo anunciador das trevas nocturnas. Amanhã, a realidade volta. Uma chatice. Vou beber um copo de água, talvez me cure da doença da realidade.
sábado, 15 de janeiro de 2022
Política-gramática
O sábado sumiu-se. Rio-me da aliteração. Na prosa, dizem, deve-se evitar a aliteração, ao contrário da poesia. A verdade, porém, é que gostamos muito de regras. Umas ordenam, outras proíbem. Bem, dir-me-ão, isso não são regras, mas imperativos. As regras apenas aconselham. Concedamos que assim seja. Isto significa, contudo, que trazemos atrás de nós ou dentro da nossa consciência, o que vai dar ao mesmo, um conselho consultivo, cuja finalidade é alvitrar as regras a usar em cada instante. Hoje, devido a um desígnio imperscrutável, fui almoçar à Nazaré, praia a onde muito raramente vou. Julgo que desde a última vez que lá fui passaram vinte anos. No Sítio, antes de poder olhar para o vasto oceano deparei-me com uns carros de onde saíam pessoas com bandeiras. Eram de um partido que o líder de um outro classificou há dias como interjeição. Havia no cortejo qualquer coisa de melancólico, uma tristeza que só encontro nos circos pobres, com os seus artistas fanados e à beira do colapso. Seja como for, talvez seja uma boa introdução à política utilizar a gramática como fonte de classificação. Teríamos os partidos-interjeição, os partidos-adjectivo, os partidos-artigo definido ou indefinido, os partidos-substantivo, os partidos-conjunção, os partidos-advérbio, os partidos-verbo. Neste caso, uns seriam partidos-verbo de encher e outros partidos-verbo de despejar. Toda a política seria uma política-morfológica e, quando se tratasse de alianças e oposições entraríamos na política-sintaxe. Seja como for, não estou autorizado pelo autor a emitir opiniões políticas. Um narrador, ouço-lhe constantemente, não tem opinião política, embora nunca me tenha falado da política-gramática. No restaurante, encontrei um casal conhecido com a família, onde pontuava uma bebé de dois meses. Eles recém-promovidos à categoria de avós pareciam pairar sobre os mortais. Compreendo-os muito bem. Não há na hierarquia familiar estatuto como esse, nem aliteração ou assonância que o ensombre, ao estatuto.
sexta-feira, 14 de janeiro de 2022
Atacadores
As sextas-feiras chegam e partem a uma velocidade galopante. Parecem cavalos de corrida e nós, seres humanos, não passamos de infelizes jockeys que não sabem se conseguem equilibrar-se no cavalo, quanto mais refreá-lo, fazer com que o animal se contenha num passo vagaroso. Passei o dia envolto em assuntos que embora não sirvam para grande coisa – na verdade, não servem para nada – me são exigidos pela dura necessidade. A azáfama impediu-me de ter assunto para narrar, pois aquilo que me azafamou é inenarrável. Se quero contar uma ou outra aventura, desta gesta cavaleiresca que é a minha vida, tenho de voltar ao dia de ontem. Consegui, por fim, comprar uns atacadores. Desesperava. Sempre podia recorrer à internet e encomendar um par de cardaços, como se diz no Brasil, à marca dos sapatos, que por acaso é americana. O problema é que não me apetecia dar seis euros por umas coisas para fazer laços, para além dos custos de envio. Não é que tenha inclinação de forreta. Não tenho, mas achei imoral o preço. Investiguei descobri um sapateiro perto de casa. Tem atacadores, perguntei. Tenho vários, o que quer? Lá expliquei. Perguntou-me o comprimento. Disse que os quero substituir medem 89 cm. Não pode ser, não existem com esse tamanho. Tenho de 90. Óptimo. Devo ter medido mal, acrescentei, e perguntei quanto era. Um euro, ouvi. Sabe quanto me pediam na marca? E lá debitei os seis euros. O homem ficou de cara ao lado, como se aquilo fosse uma ofensa. Depois, acrescentou: e se calhar são tão bons quanto estes. Não, são piores, pois os meus ficaram em frangalhos em pouco tempo. Esta conversa que não interessa a ninguém tem, contudo, várias lições sobre a moral, a economia e, também, acerca do valor de ter um sapateiro perto de si. Podia contar outras histórias, mas para hoje chega. Sempre é sexta-feira.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2022
Uma incógnita irresolúvel
Há experiências que não são fáceis. Não sei como acomodar em mim ver definhar, no meio de uma demência galopante e de uma degradação física sem retorno, alguém que foi activo, com poder de iniciativa e capacidade de ordenar a vida à sua volta. A realidade sempre me pareceu uma coisa perversa. Mesmo quando ela se apresenta como benévola e geradora de alegria e esperança, esconde o terrível. Muitas vezes lamentamos a ordem moral do mundo, o triunfo do mal sobre o bem. Não menos lamentável, porém, é a ordem da natureza, na qual a vida está assente no alicerce da dor. Nem uma longa conversa com o padre Lodo me retirou do coração o sentimento de impotência perante a realidade. Não é que o meu amigo, apesar de sacerdote, se proponha a um fácil discurso consolatório. Pelo contrário, há nele qualquer coisa que parece estar para além da religião que decidiu abraçar, um fundo trágico, herdado da antiguidade. As leituras dos trágicos gregos, sobre os quais temos longas conversas, inscreveram nele uma marca indelével. Ou talvez o próprio cristianismo se funde numa tragédia, apesar da promessa da ressurreição da carne. Da aparelhagem escorre uma música do Tingvall Trio com o nome Memory. O problema, porém, é que mesmo uma memória poderosa e dada à minúcia não resiste ao galope da demência, de tal modo que chega a não reconhecer os próprios filhos, pergunta-lhes quem são. Chegam os ecos de uma conversa online entre avó e neta. O assunto? A Matemática, a resolução de exercícios, a determinação do x, mas talvez, por mais que se tente, o x seja eternamente irresolúvel, uma incógnita contumaz que nunca deixará que lhe retirem o véu.
quarta-feira, 12 de janeiro de 2022
Inconfiáveis
Amanhã preciso de ir a um sítio onde me é exigido um teste negativo à COVID. Por isso, lá fui mais uma vez submeter-me ao império da zaragatoa. Agora, que a noite já desceu e segue firme pelas horas dentro, estou à espera do resultado. Nem percebo por que razão o veredicto não é dado logo, pois os testes antigénio feitos em laboratórios ou farmácias não me parecem diferentes daqueles que fazemos em casa. O que muda é a certificação. Não somos seres confiáveis e, por isso, em vez de estarmos em casa a introduzir a zaragatoa pelas narinas até tocar na raiz do cérebro, temos de nos submeter a terceiros para obter o certificado de bom comportamento. No fundo, somos todos o Pedro da história de Pedro e o Lobo. Não a de Prokofiev, mas a que é atribuída a Esopo (bem, já não me lembro se o pequeno pastor desta história se chamava Pedro). Somos todos uns alegres mentirosos a que ninguém leva a sério. Pelo menos três pessoas que eu conheço decidiram ir ao estrangeiro e deixaram-se contaminar pelo vírus. Descobertas quando queriam retornar à pátria, estão agora retidas até se descontaminarem. Há uma estranha sensação no ar. Conforme cresce o número de contaminações, as pessoas agem como se a pandemia estivesse a acabar, como se ela não fosse mais que um fogo-de-artifício, que acaba sempre em apoteose. Continuo à espera do resultado da zaragatoada. Será que me trocaram as letras do email?
terça-feira, 11 de janeiro de 2022
Uma questão de tamanho
Há pouco lembrei-me de um título de um filme dos irmãos Cohen, que também é título de um dos romances de Cormac McCarthy, Este País Não É para Velhos. Isto a propósito de uma insidiosa forma de exclusão que os livreiros decidiram pôr em marcha, para afastarem da sua clientela pessoas cuja idade já não permite ler com conforto, apesar dos óculos, letras minúsculas com que decidem imprimir os livros, que esperam vender. Por motivos que não vêm ao caso, decidi abrir o livro Palácio de Cristal, de Peter Sloterdijk. Quando me predispunha a ler umas páginas, sinto-me expulso da leitura e quase ouvi o editor murmurar este livro não é para velhos. Se me fosse permitida a política, haveria de organizar um movimento para regular o tamanho das letras que formam palavras com que são construídos os livros. O regulador assegurar-se-ia de que nenhum livro seria impresso sem que as letras tivessem um certo tamanho, pois aqui o tamanho conta. Para evitar exclusões, entenda-se. Esta, porém, não foi a minha grande aventura de hoje. Ao chegar à porta do prédio onde vivo, digito o código de entrada e nada. Olhei para o dispositivo com olhar de quem pede esmola, mas ele manteve-se impávido e comprometido com a sua decisão de não cooperar com os moradores. Vou ao molho de chaves que arrasto comigo e, depois de algumas experiências, descobri que não tinha chave da porta de entrada. Como um cão abandonado, fiquei à porta aguardando que alguém saísse do prédio para eu entrar. Agora, tenho outra aventura. Onde estará a chave que eu deveria ter? O melhor é ligar para o condomínio e pedir que me façam outra. Isto, se não me esquecer. Como se vê, o mundo existe apenas para desfazer os nossos planos, para se rir dos nossos possíveis mais próprios. Esta última frase, além de ridícula, era dispensável, mas ninguém pode deixar de ser quem é.
segunda-feira, 10 de janeiro de 2022
Uma assinatura
A data é 11/3/56, por cima da data está uma assinatura. Quando a vi desconfiei que tinha comprado um livro que merece ser guardado. A história é simples. Adquiri online o romance Homens Sem Caminho, de Castro Soromenho, uma segunda edição. Há uns tempos comecei a juntar – não sou, na verdade, um coleccionador – romances portugueses que ninguém lê. Vou comprando ao sabor da minha disposição. Os livros em segunda mão trazem, por vezes, ecos dos antigos proprietários. Dedicatórias, apontamentos, notas à margem, comentários. Este tinha apenas uma data e a assinatura do proprietário. Aliás, a assinatura resume-se apenas ao apelido, Vespeira. Ora, este é o nome de um conhecido pintor surrealista, um dos artistas mais importantes do chamado terceiro modernismo português. Fui à procura na Internet de reproduções de quadros dele e confirmei que a assinatura que consta no livro é exactamente igual à que ele punha nos quadros. Não tenho um quadro de Vespeira, mas tenho um livro que foi dele, que o comprou ainda antes de eu nascer. Não se pode ter tudo. Marcelino Vespeira morreu em 2002, há quanto tempo terá sido vendida a sua biblioteca ? Quanto a Castro Soromenho, a este nunca o li. A sua ambiência narrativa é o mundo colonial português. Foi muito traduzido e, no seu tempo, era uma personagem literária respeitadíssima. Hoje, pouca gente terá ouvido falar dele. Portugal mata a memória dos seus escritores a uma velocidade estonteante.
domingo, 9 de janeiro de 2022
A imobilidade
Há domingos que não sei o que fazer com eles. Parecem uma suspensão inútil por dentro da pedra dura da realidade. Tivesse-me sido dada uma ciência infusa sobre a textura dos dias da semana, esta ignorância não teria lugar. Ainda não me aventurei no frio que cobre a cidade. O céu apresenta-se vestido de múltiplos matizes de cinza, desde a quase negra, até à quase branca, mas as nuvens parecem imóveis, só o tempo, com a sua espada de cristal, corre, sem necessidade da energia do vento. Na praceta, três homens, sem máscara, rodeiam uma moto. Há capacetes no chão. Um deles passa a mão pelos cabelos, outro dá passos à volta do veículo. O terceiro esgueira-se pela rampa que dá acesso às garagens de um prédio. A quietação celeste foi perturbada pelo voo de dois pássaros. Na avenida, pessoas vão devagar, cobertas de Inverno. Uma rapariga, quero dizer uma mulher ainda nova, vai atrelada a um pequeno cão. Visto de cima, o animal parece vestir um pulôver sem mangas. Caso a mulher nova – no Brasil, o termo rapariga é mal-afamado – seja brasileira, então o cão há-de estar com um suéter, que é o que por lá chamam ao pulôver. Fico sempre espantado com as coisas inúteis que sei, embora devesse ficar ainda mais, mas não fico, com as coisas úteis que desconheço. Segundo algumas opiniões, a que não me atrevo contestar, todas as coisas que sei pertencem à categoria da inutilidade. Os homens continuam a conferenciar. Alguma coisa terá acontecido ao motociclo. Um dobra-se e examina o motor, outro corre, de novo, pela rampa que dá acesso à garagem. A moto, como as nuvens no céu, continua imóvel, mas o tempo não pára de passar.
sábado, 8 de janeiro de 2022
Susceptibilidades
O dia começou mal. Não bastava ter-me levantado tarde, coisa que está fora dos meus hábitos há muito, tive um desagradável encontro com a balança. A coisa – para não usar uma qualificação mais desagradável – teima em continuar a afrontar-me devolvendo-me pesos insultuosos sempre que a piso. Talvez ela fique ofendida por ser pisada. Quem gosta, nesta vida, de ser pisado? Os dispositivos – e não apenas as balanças – são seres muito susceptíveis. Ontem, por exemplo, o GPS do telemóvel ficou muito irritado e decidiu gozar com os pobres passageiros do carro. Depois de passar uns dias em Coimbra com as minhas netas, no retorno decidimos levá-las a Conimbriga. Era o fim do passeio cultural. Ligada a aplicação, a senhora que fala dentro do aparelho lá foi dando indicações. O problema é que falhei uma curva à esquerda e ela em vez de me mandar voltar para trás, continuou a dar indicações, metendo-nos a todos por aldeias inverosímeis e, não contente com isso, por estreitos caminhos do campo, terra batida, buracos cheios de água, instigando-nos sempre para a frente, ou para a direita, ou para a esquerda. A certa altura comecei a desconfiar que estava a ser literalmente gozado, fiz inversão de marcha e mandei calar a senhora. Na primeira aldeia, perguntei o caminho, como se fazia antigamente, e lá cheguei às ruínas. Não tenho certeza se as netas gostaram mais das ruínas ou da aventura de andarem perdidas pelos campos, sem saber se chegariam a algum lado. Como se vê, e esta era a minha tese, os dispositivos são seres muito sensíveis, impiedosos e vingativos. Agora, estou a ouvir Fado de Coimbra, pois ao descer da Universidade para a baixa da cidade, encontrei uma casa dedicado à canção coimbrã e decidi comprar dois CD. Tenho de os ouvir pelo menos uma vez.
quinta-feira, 6 de janeiro de 2022
Balanços e rebeliões
Ainda não nos despedimos do tempo das contabilidades. Na comunicação social, surgem todos os dias os balanços, o deve e o haver. Há quem fale de que se deve deixar de contabilizar os infectados, mas contar apenas aqueles que desenvolvem doença grave que conduza à hospitalização. Mesmo que venha a ser assim, a contabilidade continuará a ter lugar no espaço público. Há muito que a estatística se interessa por todos os tipos de fenómenos sociais, agora, porém, ela tornou-se uma atracção pública. Talvez esta exposição dos números tenha contribuído até aqui para que eles não sejam mais altos. Como se pode observar, estou com evidente falta de assunto, apesar do dia ter estado agradável e não me faltarem aventuras para narrar. A questão, porém, é que urdir uma trama narrativa exige estar voltado para esse lado. Ora, até um narrador tem direitos, e um dos direitos mais importantes é recusar-se a narrar, uma espécie de direito à rebelião, como aquele que um filósofo do século XVII, tido por pai do liberalismo, reconheceu aos povos submetidos à tirania. Apesar da paternidade de tão ilustre filho, ele possuía curiosas convicções sobre a tolerância. Por exemplo, advogava que as diversas igrejas, desde que não se metessem em política, deveriam ser toleradas, com excepção da Igreja Católica. Também os ateus não poderiam ser tolerados. Podia narrar as razões que lhe atormentavam o espírito para que o pai da tolerância fosse intolerante, mas não me apetece. A noite está a cair, e há coisas que é melhor não falar à noite. Estive a ver uns exemplares da revista Paris Match do ano que nasci, havia mesmo um do dia em que vim ao mundo. A experiência é devastadora. Se aquele era o meu mundo, então este já não é. Talvez existem diversos mundos possíveis que possam coabitar uns com os outros. Talvez. Seja como for, a revista custava à época 50 francos em França e, neste cantinho esquecido dos deuses, 8$50.
quarta-feira, 5 de janeiro de 2022
Ausência de espírito
Devia ter tirado uma fotografia, mas esqueci-me. Ontem estiveram cá todos os meus netos. O reboliço, porém, ocupou-me a mente e nem me ocorreu o exercício fotográfico. A isto chama-se, julgo, falta de presença de espírito. Quem tem o espírito presente não falha oportunidades, como os grandes jogadores de futebol não falham golos com a baliza aberta. Não é bom sintoma começar a fazer analogias com o mundo obscuro da bola, até porque dele sei pouco ou, para ser mais exacto, nada. Para além de não ser dotado com oportuna presença de espírito, cheguei a uma fase em que mesmo aquilo que me visita o espírito se varre num abrir e fechar de olhos. Imagine-se que se tem a intenção de levar o objecto X para o lugar Y, mas antes há que fechar a janela Z. Fechada a janela, já o X e o Y entraram naquele limbo de onde hão-de sair, se saírem, daí a umas horas. Ontem, tive de fazer cara feia ao meu neto. Parece divertir-se imenso em pegar num objecto – seja o brinquedo W – e atirá-lo ao ar, o que tem sempre a grande possibilidade ou de cair em cima da cabeça de alguém ou de partir qualquer coisa. Ele ficou muito sério e prometeu não continuar a verificar se a gravidade funcionava, embora não creia que tenha ficado convencido de que atirar coisas ao ar não é um belíssimo passatempo ou uma óptima experiência com a qual ele poderia aprender uma pouco de Física. Na idade dele, porém, explicações para pouco servem, mais vale uma cara feia. Como paga, ele mascarou-se de monstro e passou longos minutos a assustar-me. Vendo-me assustado, tirava a máscara e dizia sou eu avô, e recomeçava. Hoje, quando me levantei, estava uma bela manhã, mas a beleza logo começou a declinar. O azul dos céus tornou-se cinzento e as ruas ficaram mais soturnas, como se cheirassem a mofo. O tempo passa.
terça-feira, 4 de janeiro de 2022
Corpo conservador
Ainda não me habituei a escrever o último dois de 2022, os dedos fogem sempre para o um. Isto será uma prova de que o corpo, comandado pelo cérebro, tem uma inclinação conservadora. Fora ele revolucionário, eu escreveria, automaticamente, 2023 ou mesmo 2024. Caso, porém, o corpo fosse reaccionário, os dedos haveriam de escrever 1821 ou 1822. Recusar o ano em que se está é um sintoma de conservadorismo, um caso daquilo a que vulgarmente se chama instinto de conservação. O tempo não nos mata, mas traz com ele aquela que nos há-de ceifar. Poderia ter escolhido uma metafórica mais criativa, mas estou cansado. Tive de sair de casa para pôr o telemóvel de uma das minhas netas a consertar. Aproveitando a saída, dirigi-me à Fnac – aqui, apesar da dimensão risível da cidade, também há uma loja Fnac, assim haveremos de nos julgar menos provincianos – para levantar um livro que tinha encomendado online. Por desfastio, comprei mais três. Vim carregado de poesia e mesmo assim não encontro imagens dignas de registo. Como antes de sair de casa ouvi sempre podias ir levantar-me as calças que foram emendar as bainhas e, é mesmo ao lado, podias trazer um chouriço de carne, lá fui em demanda das calças reembainhadas e do chouriço de carne – atenção, não seja gordo, ouvi ainda – e, também por desfastio, passei pela zona dos vinhos, o que é sempre uma visita aprazível. Entre livros de poesia e garrafas de tinto do Douro, trouxe para casa não sei quantos produtos que, ao sair, nem tinha imaginado comprar. É assim que uma pessoa cede aos imperativos da sociedade de consumo. Fora eu um asceta rigoroso, um monge de estrita obediência, nem poesia nem vinhos, apenas água pura e um livro de orações coçado pelo uso, mas não sou. A minha neta mais nova está a choramingar, embora sem abundância de lágrimas. As sessões de Matemática dela com a avó – com a outra neta a função é mais apaziguada – têm uma coloração bergmaniana, dão sempre em lágrimas e suspiros. É a vida das marionetes, pensei.
sábado, 1 de janeiro de 2022
Estamos em 2022
Estamos todos mais descansados. Afinal, sempre existe o ano de 2022. Chegou por aqui entre fogo-de-artifício, pessoas a brindar e outras submetidas àquela terrível provação das doze passas e não sei quantos desejos. Estava para passar as passas, mas como eram bastante boas, acabei por cumprir o ritual enquanto fazia videochamadas para a família. Na azáfama, esqueci-me dos desejos. Quando meditei nessa falta, concluí que fora o melhor. O mais sensato é não desejar nada. Até, porque, passados uns minutos uma pessoa esquece-se daquilo que desejou e não tem hipóteses de verificar experimentalmente se a conexão entre passas e desejos formulados funciona. Apesar de me ter deitado a hora muito razoável, levantei-me tarde, coisa a que não estou habituado e torna o dia um pouco zanaga. Não imagino por que razão esta palavra me surgiu. Os dias não têm olhos, logo não podem ser zanagas. Talvez nos olhem de lado. É uma hipótese, mas de confirmação tão difícil de testar quanta a da causalidade entre passas e realização de desejos. Estou preocupado comigo. O que me terá dado para fazer estas referências, já são duas, ao método científico. As notícias são animadoras. Uma equipa de cientistas portugueses – mais uma vez a ciência – desenvolveu um nariz electrónico que consegue detectar odores apesar da humidade. Parece que esta é inimiga da captação de aromas. Por falar em aromas, recordei-me que a palavra é usada para designar certos produtos químicos adicionados industrialmente a alimentos para lhes dar determinados sabores. Como se vê, até a indústria mais soturna tem um lado poético. Seja como for, estamos em 2022, na noite do seu primeiro dia. Nem sempre é fácil constatar a realidade.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
Um ano sem facécias
Tinha escrito um longo texto. O computador, porém, decidiu que estava cansado e recusou-se a fazer seja o que for. Tive de o desligar e tornar a ligar. Quando retornei, apesar de ter gravado o texto escrito, este desaparecera. Um sinal, por certo, para que eu compreendesse que tudo o que tinha escrito era puro lixo, matéria morta, à qual não deveria voltar, pois, caso contrário, ainda seria transformado em estátua de sal. Achei desagradável partilhar a sorte com a mulher de Lot e abstive-me de retornar aos tormentosos assuntos que me ocupavam e que se perderam nalgum buraco negro do universo virtual. Sendo assim, não tenho assunto para hoje. Nenhum acto heróico a acrescentar a esta gesta. O sol desmaiado chama o fim do dia e o cansaço anuncia que o ano está por horas. Foi um ano mau, 2021? Talvez, mas, como acontece sempre, poderia ter sido pior. Também poderia ter sido melhor. Oiço o pianista de jazz Marc Copland. Há alguns anos assisti, nesta pequena cidade de província, a um concerto dele para apresentação de um álbum. Nunca percebi como foi possível isso ter acontecido, pois foi o único concerto dado em Portugal. Esperemos que o ano vindouro não se entregue, como o actual, a facécias virais, que tenha tino e não ande por aí a molestar os espíritos dos homens. Já bastam estes para se molestarem a si e aos outros. Também é necessário que os anos tenham juízo, e os últimos não têm dado grandes provas de o possuírem. Deveria haver possibilidade de os devolver, sempre que vêm avariados. A defesa dos consumidores precisa de estar mais atenta a estas coisas.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2021
Sol de Inverno
O ano, o triste ano de 2021, parece decidido a despedir-se em beleza. Saí há pouco e a cidade está coberta por um magnífico sol de Inverno. Esta expressão lembrou-me uma canção de Simone de Oliveira com o mesmo nome. Cantou-a, fui verificar, no Festival da Canção de 1965. Naquele tempo, os festivais da canção eram motivo de reuniões familiares, os jornais publicavam grelhas para se ir registando a pontuação. Haveria preferências domésticas. Um acontecimento. Depois vinha o festival da Eurovisão, um novo acontecimento, embora aí as coisas corressem sempre mal. Os jurados dos diversos países esqueciam-se quase todos de pontuar a canção portuguesa, que acabava lá para os últimos lugares. Corriam múltiplas teorias sobre essa conspiração aleivosa contra as cantigas pátrias. Fui ao Youtube e ouvi a Simone cantar Sol de Inverno. Para dizer a verdade, não achei nada mal, pelo contrário. A interpretação da Simone é muito, muito boa. Estou a ficar velho. Ainda há uns anos nem me dignava lembrar desta canção, quanto mais… Li que só teve um ponto na Eurovisão dado pelos monegascos, gente simpática, disponível para a caridade. Não tarda muito e estou a comentar a Desfolhada. O que me vale é que lá para meio da tarde chega o meu neto.
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021
Uma questão de luz
Uma luz belíssima repousa na escola aqui ao lado. As copas das árvores reverberam e até as paredes surgem aos olhos como tendo uma dignidade que, na verdade, não têm. Blocos em cimento fazem um conjunto de onde está ausente a grave dignidade que outrora revesti o edifício de uma instituição de ensino. Havia neste um toque aristocrático, um sinal de que aquele lugar servia para uma elevação do espírito. Os edifícios das escolas modernas são uma confissão de que o saber já não tem qualquer relação com o mundo do espírito, mas é apenas uma questão técnica para gerir as necessidades da vida, apesar da retórica humanística e das homílias cívicas. Estava eu tão lançado nesta diatribe contra a decadência do bom gosto quando sou interrompido por assuntos familiares. É verdade, até um narrador tem assuntos familiares. Resolvidos estes, volto para aqui, mas a luz que me animou no início desapareceu, engolida pelo espectro da noite que se aproxima. Na praceta, ainda há crianças a correr e a gritar, as árvores estão imóveis e o hospital, ao longe, tocado pelo crepúsculo, parece ainda mais lúgubre. Num site noticioso vejo que uma jovem mulher, condenada a uma longa pena por homicídio, se suicidou. O mais tenebroso, contudo, são os comentários. Há qualquer coisa de infecta no coração destas pessoas. Talvez sejam vítimas de um vírus para o qual não há vacina que lhe limite os danos. A iluminação pública acendeu-se.
terça-feira, 28 de dezembro de 2021
Disembroil
Ao escrever Dezembro o corrector do Word assinala com um traço vermelho e oferece para substituição a palavra Disembroil. Não faço a mínima ideia de que língua perdida veio a sugestão. Faço uma pesquisa, mas a ignorância continua. Talvez o meu processador de texto tenha chegado a uma autonomia tal que conseguiu inventar uma língua, com a qual pretende corrigir tudo o que eu escrevo. Imagino que a cacofonia não seria maior do que aquela que resulta do meu uso do português. Há que esperar as facécias mais inesperadas. Levantei-me cedo para tratar de algumas coisas vindas da terra escura da realidade. Bem poderia estar em descanso preparando-me para a transição de ano, coisa que, apesar de trivial, exige uma longa preparação espiritual e, sejamos sérios, física. Ora, lidar com os imperativos da realidade não ajuda nem corpo nem espírito, pois a dita realidade conspira continuamente contra quem a ela veio. Dá-lhe dores, despesas, desavenças e desamores, dá-lhe mais umas quantas coisas começadas por dê, mas que não me ocorrem por agora. Neste momento, dá-me uma quebra de energia, talvez porque chegou a hora de almoçar e eu arrasto-me neste texto à procura de alguma coisa para dizer, mas não me acode mais nada do que Disembroil.