quarta-feira, 14 de agosto de 2019

O canto do galo

Nestes dias tenho ouvido um galo cantar por volta das seis da manhã. Para honrar um modo de vida que está a ser rapidamente rasurado, levanto-me e vejo o alvorecer do dia. É uma hora assombrosa. A realidade parece ter saído há momentos dos dedos do criador e, mesmo a mim, um pessimista velho e contumaz, tudo parece ainda possível. A aurora traz consigo um excesso de promessas que o corpo e a vontade são incapazes de cumprir. Muitas vezes, os homens tomaram a aurora como símbolo de um mundo novo a vir, esquecendo que ela não era mais que o resultado de uma prestidigitação astral, da ilusão do sol orbitar o lugar que nos foi dado para viver, ou do mais prosaico rodopiar da terra em torno do seu eixo. Naqueles instantes, porém, não quero saber nada disto. Aspiro o ar fresco da madrugada, embebedo-me de promessas e quase elevo aos céus uma oração, para que os poderes do alto suspendam o tempo. Não sou convincente, os deuses não me escutam, e não me resta senão ir de novo para a cama, para acordar numa hora menos dada a ilusões e promessas que não se hão-de cumprir.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Aves e anjos

Nos fios do telefone conto seis andorinhas. Há alguns dias que as vejo naquele lugar. Estão ali suspensas sobre a terra. Parecem descansar ou, então, têm uma missão que não consigo vislumbrar. Não há por aqui ninhos que justifiquem a sua presença, mas o meu conhecimento de ornitologia, como praticamente de tudo, é nulo, o que me impede de compreender os seus hábitos, movimentos e modos de vida. Na minha mesa tenho um livro sobre metafísica e lógica modal. Encolho os ombros e penso que melhor fora ter um tratado de angelologia. Apesar de ninguém se interessar pelo assunto, não há saber mais profícuo que aquele que nos informa sobre a natureza, o papel e as divisões taxionómicas desses intermediários entre os homens e Deus. Se percebesse os anjos, ocorreu-me, talvez fosse capaz de captar o sentido das andorinhas insistirem em ficar paradas nos fios de telefone. E, não há como evitar a hipótese, num qualquer mundo possível, as andorinhas serão mesmo anjos disfarçados que, necessariamente, vigiam os nossos actos. Podia bater as palmas e elas voavam, pensei, mas não tenho direito de distrair os anjos quando estão em missão.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Questões de espírito

Há pessoas pacientes e dadas à extrema minúcia que registam tudo o que julgam digno de nota. A mim sempre me faltou a inclinação para a minúcia e, se pensar bem, o dom da paciência. Por norma, não registo seja o que for. Nunca deixei de admirar aqueles que mantêm longos ficheiros de citações e notas, que elaboram com diligência e espírito de futuro. Na verdade, sempre fui dado a uma anarquia contida, a uma desordem que encontrava a sua raiz numa certa ordem que reside na memória e que me foi dada por herança genética. Era e é neste suporte, na memória, que confiava os meus registos. Se mantivesse um registo de citações não deixaria de lá inscrever a resposta que Madame de Montsousonge deu ao pobre Jan, que, acossado pelo despeito ou pelo ciúme, pôs em causa a sua virtude: «A minha virtude é o meu único luxo». A ambiguidade da última palavra é o segredo da sublimidade da resposta. Será a virtude um objecto de preço elevado? Será ela uma coisa dispensável? Será o sinal de excelência? Será uma mera extravagância? Que pena eu não usar a prática do registo de frases memoráveis, agora que a confiança na memória se desvanece. Em breve esquecerei a frase, depois Madame de Montsousonge. Por fim, o livro onde li tudo isso. É uma pena, pois sempre podia utilizar a frase para parecer espirituoso, eu a quem sempre faltou espírito.

domingo, 11 de agosto de 2019

Adormecer

Há um barulho por aqui que me incomoda o repouso. Parece alguém a bater com um maço numa estaca, mas, tendo em conta que o ruído se prolonga há muito, não é provável que haja um braço tão obstinado. Penso, então, numa conspiração da natureza para me atormentar nestas horas em que deveria entregar-me ao mais escandaloso dos ócios. Se fechar a janela tudo cairá no silêncio, mas não me apetece sair daqui. Tenho dois livros entre mãos. Hesito sobre qual deverei usar como soporífero. Não que sejam desinteressantes e enfadonhos. Não são. Durante muito tempo, se acordava por volta das cinco da madrugada, era tomado por uma insónia que me impedia de dormir as horas que faltavam, o que provocava em mim um pequeno tormento, que só tinha fim quando o despertador dava sinal para sair da cama. Descobri que o melhor remédio é ler. Pego num livro, leio até que o sono chega e eu deixo-o cair. É isso que vou fazer agora. Uma pessoa nunca pensa que chega a este grau de decadência, mas a realidade é o que é.

sábado, 10 de agosto de 2019

Conversas de esplanada

Espreguiço-me devagar por dentro do sábado. A trama inesgotável do mundo cansa-me e há muito que desisti de esperar que alguma sensatez desça sobre a turbamulta. Esta gosta de ulular, o que, não fora o ruído, parece-me muito adequado. Na esplanada, duas mulheres em modo balzaquiano tagarelam de mesa para mesa, sem que cuidem de moderar o débito sonoro. A inevitável excelência das respectivas filhas não me espantou. Raras são as mulheres que, ao falar da prole, resistem à tentação da hipérbole. Se falam dos maridos são mais comedidas, quando não francamente omissas. Nessas alturas a retórica escasseia e a imaginação não encontra combustível com que se ateie. Isto é o meu cinismo a pensar alto sobre a comédia humana. Tento ler uma crónica do Expresso, mas bocejo. Salva-me a ideia de que no Douro alguém envelhece chá chinês em pipa de Vinho do Porto para o vender na China. O mundo é um lugar muito mais perfeito do que aquilo que estou disposto a admitir. O tempo escoa-se entre os dedos. Levanto-me, e as mulheres em modo balzaquiano ainda competem no encómio filial.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Sextas-feiras de Agosto

São elusivas as sextas-feiras de Agosto. Acordam devagar, bocejam, espreguiçam-se e levantam-se como se fossem qualquer outro dia. Não vale a pena sentir-se afrontado com o desplante. Rapidamente, Agosto entregará a alma ao criador e as esquivas sextas-feiras logo perderão o traço fugidio com que agora se disfarçam. Hoje pude consultar a data em que, a partir dela, todas elas serão como as de Agosto. Faltam três anos e nove meses. Encolhi os ombros e fui tomar café a uma esplanada. Há que beber o cálice até ao fim, pensei. Colónias de turistas enchiam o ar com linguajares diversos. Fiquei por ali a ouvir aquela babel, enquanto olhava o horizonte em busca de sinais de chuva. As línguas diferem mais pelo ritmo do que pelas palavras, constatei mais uma vez. Uma tatuagem descia do ombro para o braço, e toda a harmonia e beleza que havia na jovem mulher tatuada se dissolvia ali, na pele maculada por cores soturnas e imagens gastas. Ao pensar nisso ri-me do meu gosto desajustado e conservador. Abri o livro, mas a prosa resistiu às minhas incursões. O concerto das nações impedia-me a leitura. Levantei-me, antes que o dragão da tatuagem se soltasse da mulher e lançasse sobre mim o fogo do seu desprezo.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Da origem da homossexualidade

Estar de férias é uma possibilidade única para aumentar a cultura científica. Faço os possíveis para não dissipar uma oportunidade. Até ontem, infelizmente, nunca tinha ouvido falar do bispo cipriota Neophytus da Igreja Ortodoxa Grega. Não fora o ócio, teria perdido o seu contributo decisivo para a ciência. Confrontado com a vexata quaestio da existência de gays, acabou por dar uma das explicações científicas mais notáveis sobre o fenómeno (ver aqui). Com modéstia, sua Excelência Reverendíssima explicou que a causa reside nos pais. Se o pai, num momento desavisado de luxúria, se enganar no caminho natural e sodomizar a mãe, o rapaz nasce gay. É o que acontece com pais que sabem pouca Gramática e nunca ouviram falar de homonímia. Confundem recto caminho com caminhar pelo recto (o sr. bispo perdoar-me-á a brejeirice e o leitor, o fácil trocadilho). Seja como for, a sabedoria do alto dignitário da Igreja Ortodoxa é um autêntico ovo de Colombo, uma evidência mais evidente que a do cogito cartesiano, uma inspiração para todos. Assim, nem preciso que sua Excelência Reverendíssima venha explicar por que existem lésbicas. É óbvio, a partir da sua sábia lição, que se o pai, ignorante em Geografia, perder o norte e confundir a boca da mãe com a vulva e se se entregar, confuso e desorientado, à prática da cunilíngua, a rapariga a nascer só pode ser lésbica. As lições práticas de tal conhecimento científico são fáceis de extrair. Há que estudar Gramática e Geografia para evitar a homossexualidade. O bispo pode ser Neophytus de nome, mas não é neófito nenhum na via da ciência.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

A virtude da preguiça

Quanto mais depressa se aproxima a catástrofe mais rapidamente corremos para ela. Fiquei espantado com a minha sabedoria. É o que dá ler os jornais, essa oração da manhã do homem moderno. O que vale são as férias. Quer lá uma pessoa saber o que pode acontecer amanhã se agora se pode entregar ao exercício virtuoso da preguiça. A Igreja Católica, é certo, decidiu condená-la, mas é uma condenação espúria, para não dizer imoral. Que a Igreja tenha condenado a acídia, compreende-se. Só um espírito maligno pode ficar melancólico por receber bens espirituais, mas traduzir isso por preguiça e meter esta nobre virtude no rol daquilo que há-de perder eternamente uma pessoa é inaceitável. Há quem tenha feito um elogio da preguiça, mas tendo em conta o sogro do autor, o panegírico foi desprezado. A estultícia dos homens nunca acaba. Se estes fossem mais preguiçosos talvez as catástrofes fossem coisas mais longínquas, pensei. Não sei se foi da chuva da manhã, mas hoje só me ocorrem pensamentos sombrios e ideias sem sentido. Talvez não tenha nada para dizer, como é habitual, e o melhor é calar-me.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Fine-tuning

Pouco depois do almoço, antes de adormecer no primeiro sítio em que me hei-de sentar, dei uma vista de olhos pelas vendas de livros que há na Internet. Numa propunha-se A Noiva Despida, de autor anónimo, noutra A Viúva Grávida, de Martin Amis. Não comprei nenhum, mas pude entregar-me a uma benfazeja meditação. A ordem do mundo é uma das coisas que nunca deixa de me surpreender e de me maravilhar. Pessoas influenciadas pelo indeterminismo poderão dizer que tudo se deve ao acaso. Eu, pelo contrário, vejo nisto um exemplo de fine-tuning, essa sintonia precisa que nos mostra não apenas a harmonia que reina sobre o caos como a exactidão com que tudo é disposto neste mundo, para que o desarranjo não leve a melhor sobre a arrumação. É claro que num universo bem ordenado como o nosso, primeiro despe-se a noiva e só depois se morre deixando-a grávida. Não faria sentido morrer deixando uma viúva e só depois desse infausto acontecimento despir a noiva para a engravidar. Ela poderia ficar perturbada e não conseguir conceber ou, então, o noivo já morto ser vítima de um despropositado ataque de impotência. Evitemos o absurdo.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Despoletar

Estava eu no café, tranquilo, a ler o jornal, quando oiço alguém a despoletar. Eu sei que o prefixo des- tem propriedades que o tornam errático nas bocas mais insuspeitas. É um prefixo volúvel, inconstante, instável. Em suma, um cabeça no ar. Aquela mulher, talvez por causa dos anéis que lhe cobrem os dedos ou das pulseiras que chocalham ao vento, despoletou, tal como há quem destroque notas. De todas as leviandades do prefixo, a que me causa mais engulhos é mesmo a do despoletar. Uma mania como qualquer outra, a que se deve dar o devido desconto. Olhei para o telemóvel e a aplicação que me controla o fitness – meu Deus, a que graus de infâmia uma pessoa chega – pergunta-me se eu quero aumentar de nível. Olho-a com desprezo. Ela insiste e propõe-me mais dez minutos por dia de movimento. Em movimento? Levanto-me irritado com a sem-vergonha da aplicação. Quem lhe terá dado confiança para fazer sugestões? Vou ao balcão, peço para me destrocarem uma nota e despoleto o movimento que me há-de levar dali para fora. Hoje é o quinto dia de Agosto e lembro-me de um verso de Eugénio de Andrade: Ao inverno chega-se pela ausência de gaivotas.

domingo, 4 de agosto de 2019

As tarde de Agosto

Ontem as netas foram-se embora com os pais. Ao sair, a mais nova voltou-se e, misturando a ironia e o imperativo, disse: agora, os avós não vão chorar. Não sei o que admirei mais, se o atrevimento, se a capacidade para ficcionar, pois nunca os avós choraram quando elas se foram embora. Hoje, domingo, o almoço foi mais tardio. A verdade é que a casa ficou vazia, sem a agitação delas, os pequenos dramas das raparigas e a esperança toda que há dentro de crianças que caminham para adolescência. Também é verdade que deixei de ter bicicletas para levar a remendar furos, uma das minhas actividades nos últimos dias. Eu sei, eu sei, que sempre se podem reparar câmaras de ar em casa. Antigamente, não sei se hoje, havia os remendos Tip-Top, mas não sou dado ao exercício da bricolage e falece-me o talento para a mecânica. Arrumadas as bicicletas, o tempo cresce-me. Assim, posso banhar-me no silêncio e nadar em oceanos de palavras, lembrando-me dos Verões em que as tardes se dilatavam quase até ao infinito e eu lia o Ciclone e o Condor, o Falcão, onde o meu grande herói era o Major da RAF Jaime Eduardo de Cook e Alvega. Agora que o Major Alveja já não abate nenhum avião da Alemanha nazi, entretenho-me a ler as Memórias de um Morto. O tempo não está para gente tão viva quanto o piloto luso-britânico. Quando o meu neto crescer, hei-de falar-lhe do grande Major, o meu herói dos tempos da escola primária. Tenho que fazer os possíveis para não me esquecer.

sábado, 3 de agosto de 2019

Incongruências em Agosto

De que tecido serão feitos os sábados de Agosto? Não sei porquê, mas esta pergunta assaltou-me há pouco ao chegar a casa. Tenho dias assim, o meu cérebro, devido a algum desarranjo neuronal, dispara à queima-roupa perguntas incongruentes. A incongruência reconhecida da pergunta tranquilizou-me. Teria de lhe dar uma resposta sem sentido, como, por exemplo: os Sábados de Agosto são de popelina, enquanto os de Novembro são de repes. Assim estou dispensado. A rua de onde vim tinha um cheio a férias grandes, uma rua feita de sombras pesadas e ausências notadas quando chegam os dias oficiais para as pessoas se cansarem de tanto descanso. Estamos num tempo em que toda a gente acha que vai ler livros, dar grandes passeios, passar tardes admiráveis entre amigos. A realidade, porém, não há-de estar pelos ajustes. Eu recolho-me em mim e penso num eremitério onde me pudesse excluir da humanidade. Logo me vem à memória a frase o homem solitário ou é um besta ou é um deus. Nunca tendo dado pela existência em mim de um traço divino, inclino-me para a primeira possibilidade. É o que dá ser assaltado por perguntas incongruentes. Tanto quanto sei, mas sei poucas coisas, nunca Agosto fez bem a ninguém.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Chocolate negro

Hoje atravessei a cidade de lés-a-lés. Estava modorrenta, ainda com menos gente do que é habitual, o casario, aquele mais antigo, não tinha melhorado de aspecto desde a última vez que o vi. Deveria sentir-me deprimido. É a obrigação de qualquer um que um dia a tenha visto vibrante na sua pequenez, a fervilhar de negócios e de gente, mas não me senti. Pelo contrário, estava bem disposto e cheio de bonomia. Até o que está decrépito me pareceu novo. Tudo se deve, porém, ao chocolate negro que por vezes, furtivamente, me tenta. O chocolate negro, informa-me um estudo, pode aumentar o bom humor e aliviar os sintomas de depressão. Eu caio de joelhos agradecido. Só tenho medo que o hábito faça passar o efeito. Ainda hoje, em consulta com o cardiologista, lhe disse que a substância hipotensora, quando a comecei a tomar, tinha um óptimo efeito sobre os meus estados de alma. Tudo o que me aborrecia e irritava deixou de o fazer. Se queriam que o branco fosse preto, eu queria lá saber. Com os anos o efeito passou e quando trocam o preto pelo branco fico irritado. O meu problema é se o efeito do chocolate negro também passa. De que valerá comê-lo se a realidade depressiva me parecer depressiva? Não há coisa pior que a realidade. Seja como for, acho que, nesta terra, toda a gente deveria comer chocolate negro.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

A libertação dos alienígenas presos

As notícias de Verão não deixam de ser espantosas e Agosto não começa nada mal. Leio que dois milhões de americanos acreditam que há extraterrestres presos numa base militar dos EUA e que um número não especificado quer invadir o lugar para libertá-los. São causas como esta que me fazem acreditar, e muito, na humanidade, no seu espírito generoso, embora as coisas possam não ser tão simples quanto isso. E se os extraterrestres forem inimigos, a sua libertação não configurará um acto de alta traição? Os americanos são assim. Um povo impulsivo. Propõem-se fazer coisas sem pensar nas consequências e não há quem os alerte. É evidente que eu também acho aborrecido que se prendam extraterrestres por dá cá aquela palha, mas como europeu pertenço a uma longa tradição marcada pela prudência, apesar das duas guerras mundiais, e faço parte daqueles que abominam a impulsividade. Se estão presos, os extraterrestre alguma fizeram. Esta é uma sabedoria lusa e, como toda a sabedoria lusa, é profunda. Ainda pensei sugerir aos libertadores tentarem a via judicial. Todo o preso terá direito a um advogado e a um julgamento justo e imparcial. Isto sou eu que o digo, uma pessoa crente no Estado de Direito, mesmo quando se trata de espécies alienígenas. Julgo, porém, que os libertadores se ririam na minha cara. O melhor é evitar humilhações, pois Agosto só agora começou.

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Bolas de Berlim

Num sítio que no Verão costumo frequentar havia umas bolas de Berlim que me habituei a comer sem que a consciência me acusasse de qualquer delito. Alguém mais maldoso sempre pode censurar-me de ter uma consciência frágil, mas havia, claro, atenuantes. Só comia bolas sem creme e estas, apesar de fritas, pareciam que quase não tinham passado pelo óleo. Não há nada como a nossa capacidade para fantasiar. Eram muito boas, em resumo. Constou-me que o estabelecimento fechou e ao cerrar portas levou com ele as bolas de Berlim. Tudo o que é perfeito neste mundo acaba, foi o que constatei ao ouvir a notícia e daí extraí a conclusão que o paraíso não pode ser na Terra. Acontecem muitas coisas péssimas neste mundo, eu sei, mas agora nem sei se hei-de voltar ao sítio. Gosto imenso de praia, desde que não haja muito sol, pessoas e areia. No entanto, ainda não compreendi o que iria fazer a uma praia se o sítio das bolas de Berlim se finou, levado pela voragem do tempo, deixando-me a rememorar a glória de antigas expedições para incrementar o colesterol. A saúde é uma dura penitência.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Lugares para medíocres

Estava a ler a apresentação de As Lojas de Canela, de Bruno Schulz, feita por Aníbal Fernandes, quando deparo com a resposta que terão dado ao escritor polaco perante a oferta que este fez dos seus préstimos literários à revista Novos Horizontes: “Não precisamos cá de Prousts”. O engenho da estupidez humana, apesar de tudo, nunca deixa de ser espantoso. Uma revista literária que não quer um Proust é como uma equipa de ciclismo que só aceite quem mal saiba andar de bicicleta. A analogia não é brilhante, eu sei. Que coisa essa de misturar as belas letras com um desporto popular. Foi, porém, o que me ocorreu. Se eu tivesse capacidade de fazer analogias soberbas seria um Proust. Com esta minha falta de talento, porém, talvez tivesse sido aceite na revista onde Schulz foi rejeitado. Não há lugar onde um medíocre não possa entrar.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Coisas de avô

Ao mexer no telemóvel deparei-me com uma fotografia minha com o meu neto ao colo. Eu olho para a câmara, um pouco formal; ele, para o lado, como se nos seus oito meses já soubesse demasiado do mundo e não estivesse para se submeter aos ditames do fotógrafo de ocasião. É a vantagem da inocência. Estar voltado para a frente ou para o lado é indiferente. O importante é que não o deixem cair e saibam que ele existe. Não sei se foi a visão da foto que desencadeou as saudades ou se foram estas que, sem eu dar por isso, me conduziram àquela. Ser avô é uma condição especial que, antes de se ser, é inimaginável. Mal se vêem, avô e neto estabelecem laços secretos de continuidade, que depois têm de ser cultivados com esmero e persistência, mas que são uma afirmação exuberante da vida. Aquela que começa a declinar sente-se redimida por aquela que acaba de chegar. Não se trata de uma espécie de justiça cósmica à maneira do célebre fragmento de Anaximandro, mas do estabelecimento de uma continuidade que rompe as densas paredes do futuro. Para o que me haveria de dar, por causa de uma fotografia? O melhor é fazer-me à vida. Enquanto os pássaros meus vizinhos continuam as suas cantatas nupciais, eu ponho o telemóvel no bolso, arrumo uns papéis e preparo-me para enfrentar o dia. Julho apresta-se para entregar a alma ao criador, não tarda receberá a extrema-unção e dará o último suspiro entregando-se nos braços descarnados e ressequidos de Agosto. Nesse momento, do herbário do tempo, cairá mais uma folha morta.

domingo, 28 de julho de 2019

Atrasos

Hoje acordei confuso. Havia uma ânsia em mim motivada, por certo, por um daqueles sonhos matinais que têm o condão de serem sonhados num estado em que vigília e sono se misturam, o que lhes dá uma mais forte aparência de realidade. Havia qualquer coisa para fazer, muito urgente, mas desconhecia o quê e o onde. Sabia apenas que deveria ser agora, mas agora estava na cama, despreparado para tarefa tão imperativa. Isso acrescentava desnorte à confusão. O barulho de uma sirene, porém, devolveu-me à realidade e pensei que era domingo. Suspirei e levantei-me. Tudo começou a entrar no grande castelo do esquecimento até que, ao chegar aqui, vejo uma velha fotografia de um jogo de futebol realizado muitos anos antes de eu nascer. Uma reminiscência, porém, começou a desenhar-se em mim e o sonho voltou-me à memória. A urgência de me levantar talvez estivesse ligada a esses tempos iniciais em que, ao domingo, tinha de ir à missa da catequese e, depois, a esta. O que tem isto a ver com a fotografia? Tudo. A partir de certa altura troquei as injunções à santidade do catequista pela visita ao campo que aparece na fotografia, onde rapazes um pouco mais velhos do que eu lutavam com denodo – e pouca santidade, diga-se – por uma bola de couro, que, por vezes, caía no rio. O que me entristece é não saber se, no sonho, estava atrasado para a missa ou para ir ver o jogo de futebol.

sábado, 27 de julho de 2019

Uivar à lua

Os dias de sábado nem sempre são dos mais promissores. A esplanada estava composta, na mesa ao lado uma família fazia-se ouvir. A rapariga não sem desenvoltura falava nos concertos a que queria ir. A maioria dos nomes eram-me desconhecidos, mas o que recebeu um maior ênfase foi o de Quim Barreiros. É universitária, pensei, não sem que uma sombra de tristeza me invadisse. Ao que se chegou, meditei, para que um universitário seja reconhecido por este tipo de gosto. Mais à frente, a conversa confirmou-me o prognóstico. Encolhi os ombros e abri o jornal. O mundo nunca nos desilude. É constante na sua venalidade. Houve um tempo em que se teve a ilusão de que uma maior educação tornaria as pessoas mais civilizadas, refinaria o gosto e, em momentos de maior fantasia, até se pensou que as tornarias melhores. A realidade, porém, resiste. A família continuava a declinar as suas preferências, com o orgulho de uma velha estirpe que rememora antepassados. Fechei o jornal, paguei e saí para o silêncio que há dentro de mim. Talvez tenham razão, porventura a realidade não será mais que umas brejeirices debitadas ao microfone. Um anjo passou. Dei por ele porque um cão começou a ladrar desaustinado. Também a mim me apetece ladrar ou uivar à lua.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

On s'habitue c'est tout

“On s’habitue c’est tout”, foi isto que pensei enquanto bebia um copo de sumo de toranja. Quando introduzi este ritual na minha pacata existência, o sabor agreste – para não dizer amargo – da toranja era ainda uma revelação que me dava um prazer especial. Os anos passaram, a cerimónia matinal consolidou-se e, hoje em dia, confesso que o sabor do sumo começa a parecer-me demasiado doce. Foi por causa disso que me lembrei do verso da canção de Brel. Uma pessoa habitua-se e é tudo. Como sou um tipo anacrónico, quando era novo, enquanto os outros rockavam por tudo e por nada, eu ouvia música francesa e, entre todos os grandes da canção francesa, o de que mais gostava era do Brel, que por acaso não era francês, mas belga. Ainda hoje gosto bastante, mas aquele pathos do “ne me quites pas” não me comove ou não cai bem com a minha disposição de ânimo. Tudo isto pertence a um tempo em que eu tinha tão pouca idade que pensava que era existencialista. Lia os romance do Sartre e do Camus, sonhava com a rive gauche e achava que não poderia haver melhor coisa no mundo do que estar condenado à liberdade. Isto alguma influência teve na minha vida, mas é melhor nem pensar nisso. Agora, bebo sumo de toranja pela manhã e lembro-me de restos de canções do Brel. “On s’habitue c’est tout”.