segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Dia de Reis

De manhã, quando me dirigia para o reino da realidade, parei na passadeira que, descido o viaduto, antecede a rotunda que leva à marginal. Duas sílfides passavam lentamente, inseguras e graciosas, quase a dissolverem-se na atmosfera. Não deixei de as olhar nem mesmo quando chegaram ao passeio e começaram a dura subida que as esperava. O condutor de trás, de vocação menos contemplativa, buzinou, as sílfides evaporaram-se e eu arranquei em direcção ao destino. Enquanto conduzia, pensava que me tinha enganado na mitologia. Deveria ter visto Reis Magos ainda montados em camelos, turbantes nas cabeças, os presentes seguros nas mãos reais. As sílfides não fazem parte desta história e não deveriam andar por aí a confundir-me, a ponto de criar um engarrafamento. A avenida estava hoje mais exuberante do que ontem. Apesar do frio, as cores saltitavam na paisagem, as árvores revigoradas olhavam compassivas os transeuntes, abençoando-os com as ramadas despidas. Mais logo irei espreitar se os Magos sempre chegaram ao presépio. Só espero que nenhuma sílfide se interponha no caminho e me desvie para outro universo onde não exista Natal, nem Menino, nem Reis vindos do Oriente.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Um domingo sem qualidades

Os netos têm o talento especial de deixar um buraco vazio na casa dos avós quando se vão embora. Ontem fui pôr as duas netas a Lisboa, depois da estadia de alguns dias aqui. Hoje tudo está mais calmo, a televisão calou umas vozes aguçadas que imitam crianças a entrar no labirinto da adolescência e ninguém me vem pedir folhas, minas de lapiseira ou um agrafador para não sei quê de secreto, jogo congeminado num quarto de porta fechada ou mesmo diante dos meus olhos, no escritório, em voz sussurrada. As raparigas quando nascem trazem consigo a competência de se rirem dos rapazes e uma aptidão natural para o murmúrio. O domingo nasceu sem qualidades. Não são só os homens que podem não ter qualidades, também os dias da semana estão capacitados para perder a adjectivação e serem apenas o domingo ou a terça-feira, substâncias puras sem acidentes. Antevendo o silêncio e para compensar a ida a Lisboa, uma Lisboa que me pareceu mais fria do que o habitual, comprei romances de Amos Oz, Ian McEwan e Leo Perutz. Deste nunca li nada. Pensando bem, agora que a tarde se aproxima, talvez este domingo possua algumas qualidades e, diria contristado, não particularmente agradáveis. É o túnel obscuro que liga a fantasia dos últimos dias à realidade que me espera amanhã. Os exércitos inimigos marcham já sobre o território imaculado que me cabe defender e ampliar. A minha falta de fé na causa cresce, mancha negra na pureza branca do linho. Talvez no próximo fim-de-semana o meu neto me venha ver.

sábado, 4 de janeiro de 2020

O quingentésimo primeiro texto

O texto de ontem foi o quingentésimo. Esta não é uma palavra que se use impunemente. Pensei que quinhentos era uma boa conta para dar por terminada a função. Como é habitual em mim, pus de lado a boa resolução e, tomando o pior dos caminhos possíveis, volto de novo a este simulacro de diário. Também é verdade que um narrador tem menos liberdade que um escravo. Ele é uma espécie de marioneta manipulada pelos humores do autor. Esta deriva pela teoria da literatura é a confissão de um fracasso. Se não é falso que o mundo fervilha de assuntos palpitantes sobre os quais escrever, também não o será a minha nula vontade de o fazer. A sombra da oliveira que vejo daqui não fervilha, nem traz nela qualquer lição e no entanto não consigo parar de contemplá-la. Move-se tão lentamente que parece eterna, e nesta aparência de eternidade se embala o olhar. Oiço, vindo de lá de dentro, uma injunção para que uma das netas vá tomar banho. Não oiço réplica, o que significa que o imperativo foi pronunciado no tom exacto. A exactidão do tom é uma sabedoria difícil, mas que, adquirida, evita que a realidade se entregue a derivas que turvam os ambientes e cansam os actores. E isto é tudo o que me apraz escrever no quingentésimo primeiro texto.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

O estado do mundo

Hoje acordei tarde e durante o pequeno-almoço senti que o estado do mundo me obsidiava. Enquanto comia, olhava a paisagem envolvente. Estava serena, apenas uma leve neblina toldava o sol. A escola aqui ao lado, o hospital mais ao longe, até as fumarolas habituais numa aldeia da serra ocupavam o lugar que é o seu. O estado do mundo, porém, não deixava de me assediar o pensamento. Tive de respirar fundo e lembrar-me de que a minha vocação não é a de salvador. Isso tranquilizou-me. Quando me sentei para escrever, estava apaziguado, embora pressinta no ar uma cólera esparsa, que se solta em borbotões e corre avulsa por mentes infectadas por algum tumor. Há pouco, bandos de crianças invadiram o parque infantil. Gritavam palavras que não consegui perceber, depois foram arrastadas para o lugar de onde tinham vindo e o silêncio cresceu emparelhado com a sombra projectada pelos cedros do pequeno bosque mais ao longe. Uma sirene anuncia que nos aproximamos da uma da tarde. Os dias são pequenos barcos a deslizarem rápidos, arrastados pela corrente turbulenta do tempo. Não há nada como metáforas mortas, pensei ao acabar a última frase. Não fora a morte das metáforas e ninguém se entendia. Talvez aquilo que me preocupava no estado do mundo fosse apenas o excesso de metáforas vivas em circulação. Há que enviar exércitos bem armados e matá-las sem dó nem piedade. Chegámos a sexta-feira, a esta, e não tenho palavras para o desconsolo.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Um pouco de esperança


Tenho estado a ouvir o Helicopter Quartet, de Karlheinz Stockhausen. Se tivesse sido bafejado com algum tino, deveria abominar a obra, mas Epimeteu, quando chegou a minha vez de receber os dotes que restavam para os seres humanos, não encontrou a bolsa onde guardara o tino e despachou-me mesmo assim. Não há Prometeu que me valha. Estou com dificuldades de acertar com o dia da semana, parece-me, pela tristeza das ruas, que hoje é segunda-feira. Não sei bem por que razão, mas estou a começar a embirrar com a designação numérica do ano. Esta duplicação do vinte parece-me uma redundância inútil, já bastam as minhas iterações, pleonasmos, repetições e tautologias. Cheguei tarde para a duplicação do dezanove e demasiado cedo para a do vinte e um. Cada um tem a duplicação que merece. O efeito de ouvir Stockhausen é este tipo de discurso desconexo, com um certo laivo esotérico, como se tivesse sido convidado para uma loja maçónica. Não fui. Acabado o Helicopter Quartet, passei para os Hymnen. Os ruídos do mundo são a música das esferas celestes, ocorreu-me, antes que tivesse tido tempo de me autocensurar. Já não me lembro se nos desejos de passagem de ano – aquela coisa que deve acompanhar o mascar das passas de uva – incluí ter um pouco mais de sensatez. Tenho de consultar algum especialista no assunto para saber se os desejos esquecidos se mantêm válidos após a falência da memória. Talvez ainda haja esperança.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

O primeiro dia

Cheguei a 2020 cansado, o que não me parece lá muito boa ideia. O mais indicado era ter aterrado no novo ano em plena forma física, exuberante e cheio de prognósticos favoráveis. Na verdade a única coisa que me apetece, agora que o primeiro dia se está a escapulir, é bocejar. Terei dormido pouco, é verdade. No entanto, é isso que me acontece sempre e não ando por aí a abrir boca. Quanto ao resto, consta que o mundo não se alterou apesar dos réveillons e fogos-de-artifício. Chegado de Lisboa, sento-me à secretária e revejo a agenda para os próximos dias. A realidade, depois de uma semana de fantasia, começa a bater à porta. Bem tento fechá-la, mas faltam-me as forças. O dia esteve frio, nas ruas as pessoas vestiam-se como se estivessem no Inverno. Por uma vez não se enganaram na estação. O ideal, penso, seria eliminar as pessoas destes textos. Apagá-las sempre que se apresentam em cena ou talvez apagar-me a mim. Pegar numa borracha e sem pressa ir extinguindo cada um dos meus traços, até que não fique no texto nada a que possa chamar meu. A isto chamou-se em tempos ascese, o exercício de renunciar a si mesmo, coisa que caiu em desuso e é vista como uma grave patologia. 

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Calendários

Ao barbear-me, cortei-me no pescoço. Uma pequena mancha de sangue alastrou na pele, mas logo suspendeu a viagem, como se lhe faltasse energia e desistisse sem razão aparente do progresso. Vejo-a no espelho, contemplo-a por instantes, depois limpo os vestígios do crime e entro pelo dia. É uma entrada tardia na última etapa do ano. Este é um rally, um estranho rally com 365 etapas, mas em que todos os que chegam ao fim fazem-no ao mesmo tempo. Talvez seja por isso que se sentem obrigados a mostrarem-se alegres, numa insuspeitada celebração da mais pura igualdade. Se pudesse introduziria um princípio de diferenciação no calendário. Para uns o ano seria mais rápido, para outros, mais lento. Enquanto uns comemoravam a chegada de 2025, outros arrastavam os pés pelo ano de 2012, para não falar naqueles que ainda dormitavam pelo século passado. A cada um seria permitido escolher o seu ritmo ou, caso duvidemos do livre-arbítrio, cada um teria o ritmo que os seus genes determinariam. Desconfio que o calendário foi uma invenção de alguma seita proto comunista com a inconfessável finalidade de humilhar os mais rápidos e favorecer aqueles que se arrastam ano adentro sem vontade que o tempo passe. Não sei se é porque o ano está prestes a deixar-nos, mas o sol está lacrimoso, enviando-nos uma luz turva, anémica, impotente para alegrar corações. Só espero que logo se esqueçam do ritual das passas, que não suporto a função. Agora vou fazer a pequena lista das pessoas a quem tenho de ligar passada a fronteira do ano. Só para não haver esquecimentos.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Desinteresses

Moribundo, o ano está a dar um ar da sua graça. Magníficos dias de Inverno, onde o sol e o frio se conjugam para alegrarem os pobres mortais. Durante algumas horas, a luz radiosa mostra-se exuberante, tornando manifesto aquilo que os dias sombrios esconderiam. À minha frente tenho o longo ensaio de Elias Canetti, Massa e Poder. Percorro-lhe o índice. Há nele muitas referências à Antropologia. Pergunto-me se valerá a pena, se poderá ajudar a interpretar o nebuloso tempo em que vivemos. Oiço os Gurre-Lieder, de Arnold Schoenberg, dirigidas por Zubin Mehta. É uma das obras a que volto com regularidade. Esqueço-me do ensaio de Canetti. O espírito humano é muito volúvel, pensei. Tão depressa se interessa por uma coisa, como, sem razão aparente, a deixa de lado. Tornei-me especialista em deixar coisas de lado, em retirar delas o meu interesse e deixá-las em paz. Imagino que o livro de Canetti me agradeça o desinteresse. Um dia também a vida me deixará de lado, desinteressada do meu desinteresse, cansada de mim. O sol começa a empalidecer, carros desfilam pela avenida Andrade Corvo, enquanto o tenor dá voz à desdita de Waldemar. “Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo desconhecido.” É promissor o início da obra de Canetti. Depois dos Gurre-Lieder irei ouvir o Pierrot Lunaire.

domingo, 29 de dezembro de 2019

O rally dos idiotas

Um carro ronca furioso numa das avenidas aqui perto, os travões guincham, suspendem por instantes o gorgolejar do motor, mas logo este retoma o matraquear com que responde ao acelerador, pisado sem piedade. O condutor deve imaginar-se piloto de rallies em plena competição e sentirá toda a realidade da sua existência no ruído com que esfaqueia o silêncio dominical da província. O que não falta por aí são campeões destes, pequenos quixotes deslumbrados pela mecânica, que nunca competiram a não ser no rally da idiotice. A bazófia do condutor foi exibir-se para outro lado, pois caiu um silêncio sepulcral sobre as ruas. Lá em baixo, na Sá Carneiro, peões marcham decididos, enfrentam inimigos terríveis e procuram no caminhar a salvação para as desditas do corpo ou da alma. Um casal passeia-se de mão dada, cada um temeroso de que o outro fuja. Pela janela entra um raio de luz. Traça uma linha oblíqua no chão. Olho-a fascinado, depois volto para este texto. Hoje hei-de almoçar mais tarde. De novo, um carro roncante invade o meu território sonoro, mas será outro, já que o ronco se transforma num ronronar cordato até desaparecer dentro da cisterna do silêncio.

sábado, 28 de dezembro de 2019

O sábado declina

Estou à espera do meu neto, mas não vou poder pegar-lhe ao colo. Não que ele queira, pois isso impedi-lo-á de mexer onde não deve, não o deixará fazer uma sementeira de CD e livros pelo chão. A culpa deste impedimento é das netas e do malfadado jogo de badminton a que fui sujeito, como se tivesse de cumprir uma pena ou de pagar uma promessa. Com o passar das horas, as dores lombares parecem expandir-se e o voltaren, uma espécie de santo, está renitente em operar um dos seus milagres. Lá em baixo, com o retorno do tempo mais seco, as crianças invadiram o parque infantil e as suas vozes afiadas chegam até mim. Quando se calam, faz-se um grande silêncio. No horizonte, a serra é um vulto imóvel e cinzento, uma fronteira que separa dois mundos. O sábado progride em direcção à noite. Leva com ele a ilusão do fim-de-semana e ostenta orgulhoso no dorso o título de último sábado do ano. Está um sol convidativo e o mais assisado será levantar-me daqui e ir dar uma volta a apanhar sol. Não me posso afastar, pois não faltará muito para que o rapaz chegue.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Aproximação à realidade

Ao acordar senti-me confuso, mais do que o habitual. Que dia é hoje? Sentei-me na cama a rememorar o calendário e lá consegui descobrir que era sexta-feira. Não se pense que este descolamento da realidade temporal se deve a alguma coisa que não à ocupação de parte destes dias com as actividades próprias à quadra. Descobrir a quanto estávamos na semana devolveu-me um sentido cruel de realidade. Como um punhal, esta atravessou-me o coração e não sem azedume lá me levantei. Um sol faceto e pirraceiro olhou para mim quando abri a janela. Observei-o de soslaio, com cara de pouco amigos, enquanto ele deitava de fora uma língua de fogo que lambia a serra, dando-me a ver uma paleta de cores que me recordaram que o Inverno já havia começado. O astro ainda tentou entabular conversa comigo, mas voltei-lhe as costas. Talvez mais logo me reconcilie com ele e lhe conte como vão as coisas aqui na Terra, o que não será da minha parte um gesto de boa vontade. O dia parece cheio de glória. A natureza nunca se poupa a estratagemas para enganar os incautos. Acabo de receber uma mensagem, mas não era para mim. O mundo está cheio destes equívocos. Pessoas a enviarem mensagens para quem não deviam e outras à espera da mensagem que ninguém lhe destina.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Uma tarde de badminton

Por uma estranha e não sei se malévola inspiração as minhas netas e uma prima acharam que eu era o parceiro indicado para completar um quarteto e assim poderem jogar badminton a pares. Ingénuo e desconhecedor do terreno, aceitei pegar na raquete e tentar acertar no volante. Não imaginava que naquele sítio a força da gravidade fosse muito maior do que nos lugares que costumo frequentar. Bem dava impulso ao corpo para saltar, mas os pés teimavam em não se despegar do chão, enquanto o cesto de penas que faz a vez de uma bola se obstinava a passar na estratosfera para logo cair atrás de mim. Argumentei que não estava habituado a enfrentar uma força da gravidade daquela dimensão, mas olharam para mim com condescendência e lá continuei a fazer par com uma delas, sem perder a esperança de conseguir acertar naquela coisa com inveja de ser pássaro. Agora que fui libertado do exercício estou com umas dores na lombar, tantas as vezes que tive de me curvar para apanhar o volante do chão. Há coisas que não deviam passar pela cabeça de pré-adolescentes ou, não sendo possível evitar esses devaneios, o melhor seria não ter ouvidos para este tipo de pedidos, mas ainda não sofro de surdez. Enquanto escrevo, elas teimam em mostrar que possuem uma reserva considerável de energia que nem o badminton da tarde consumiu.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

A coisa prossegue

Não tarda e esta parte das festividades estará consumada. Haverá o tardio almoço de Natal e, devido à natureza arborescente das famílias modernas, decorrerá ainda o jantar do dia de Natal. Há que contentar o máximo das partes e a partir de certa altura o jogo de ponderados equilíbrios torna-se num quebra-cabeças de difícil resolução. É nestas alturas que se percebe a importância da diplomacia. Compreendo bem que o Menino Jesus se interrogue se terá valido a pena as dores da encarnação e que suspire não sem desdém se alguém se atreve a responder-lhe tudo vale a pena se a alma não é pequena. Mais tarde ainda tentou reparar a situação ao dizer dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Entrevia já – ou talvez fosse a sua omnisciência a operar – que por causa do seu nascimento muita política e diplomacia deveria correr entre as margens escarpadas das famílias. O sol por aqui está raquítico. Na televisão o presidente da república continua a sua azáfama e as casas de apostas puseram em jogo o tempo que demorará sua excelência a tirar uma selfie com todos os portugueses. Estamos no Natal e há que evitar politiquices, pois as famílias tornaram-se tão plurais que nem em desacordarem conseguem estar de acordo. Aqui por casa alguém diz que tem de tomar um gurosan, oiço também falar em ben-u-ron. A mim não me dói nada nem estou indisposto, mas o melhor é fazer um ataque preventivo e tomar qualquer coisa, nem que seja um placebo, talvez me consiga enganar a mim mesmo. 

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Em contagem decrescente

Terei ainda de fazer uma ou outra compra, mas as coisas estão já encomendadas e espero que o dia e a noite deslizem com bonomia. Em tudo isto há um cansaço e ninguém consegue disfarçá-lo. Também é verdade que, com aquela mania de fazerem recenseamentos todos os anos, a Virgem e José, o carpinteiro, sofrem continuamente as peripécias de não encontrarem alojamento. É sempre a mesma coisa, diz o pai adoptivo do Menino. O mais sensato, passou-me pela cabeça, seria recorrerem, nos dias de hoje, a uma agência de viagens ou, em último caso, ao Booking. Marcavam hotel perto de uma maternidade e não corriam o risco de o Menino ser contaminado pelo bafo da vaca e do burro. Não pense o leitor que me tornei um jacobino pronto para fazer uma diatribe contra o Natal. Pelo contrário, eu gosto do Natal, do presépio, dos doces, até da Missa do Galo, apesar de nunca ter ido a nenhuma, mas imagino-a de uma grandeza exaltante, onde coros humanos e angélicos entoam um oratório de Bach. Talvez seja com medo de me defraudar que a evito, sabendo que Bach era protestante e que em vez da sua música tenha de ouvir sabe-se lá o quê. Os dias de Natal de antigamente eram de uma grande tristeza, pois não havia sítio onde se pudesse beber café. Hoje em dia, graças à Nespresso e às suas belas cápsulas de alumínio, toda a gente tem café em casa e as senhoras, enquanto bebericam, sempre podem imaginar que é o próprio George Clooney que as serve, mesmo que seja o burro do presépio ou o marido, cujo ressonar já não podem ouvir. A imaginação é a mãe de todas as coisas.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Fim de aboboramento

Nunca consegui justificar perante mim o facto de ter uma conta na plataforma LinkedIn. O certo é que um dia qualquer, por um desvario que já não consigo recordar, abri conta e por lá fiquei a aboborar. Esta palavra decepciona-me profundamente. Por impulso semântico, eu diria que significa tornar-se abóbora, mas não. É uma espécie de corruptela de abeberar. Seja como for fiquei por lá a aboborar, imóvel e desinteressado, respondendo com bonomia e a melhor vontade às solicitações de conexão, embora nunca tenha percebido a razão por que há pessoas que hão-de querer estabelecer uma conexão comigo numa plataforma como a LinkedIn. À maneira de Grouxo Marx, também não admitiria estabelecer qualquer conexão profissional comigo. O certo é que sem mexer uma palha, praticando com diligência o aboboramento, fui ficando conectado com conhecidos e desconhecidos, recebendo mensagens para parebenizar (palavra que me deixa logo com revoluções no estômago) este e aquele pelos novos empregos ou cargos a que tinham sido promovidos. Fui estranhando nunca ter recebido convites para dar os pêsames aos despedidos ou aos despromovidos, mas inferi desse silêncio que todas as minhas conexões eram com gente vencedora na vida. Hoje recebi um novo pedido de conexão. Abri a conta e com ela escancarada procurei como acabar com ela. Liquidei-a em três tempos. Recebi de imediato uma mensagem a dizer que sentiam muito pela minha saída. Eu, pelo contrário, sinto muito pela minha entrada. Nunca se deve entrar em sítios aonde não vamos fazer nada.

Distinções linguísticas

Fui à loja ortopédica que há aqui no prédio para comprar umas pantufas para alguém que já não tem grande disponibilidade física para fazer este tipo de compras. Nunca tinha lá entrado e, por alguma razão inconsciente, evitava olhar através dos vidros. Foi uma revelação. Parece haver lá tudo o que é necessário para a miséria física humana. Eu sei que tudo é uma hipérbole, mas esta está-me na massa do sangue e o melhor é dar algum desconto às coisas que me põem aqui a dizer. Bengalas, cadeiras de rodas, bancos com abertura para o que não vou especificar e uma parafernália de dispositivos e objectos que sou incapaz de denominar ou de descrever. Evitamos pensar nas múltiplas formas que a desgraça tem e só quando nos bate à porta entramos naquele mundo e descobrimos que as estratégia da doença para nos humilhar são incontáveis. Chegado a casa, sentei-me e li um artigo (de Marco Neves) sobre o uso das palavras vermelho e encarnado. Quem diz encarnado – e isto não vem lá – por norma não diz prenda mas presente. Recusa-se, não sem veemência, a dizer funeral. A palavra correcta é enterro, asseveram pimpões. É possível que quem usa vermelho prefira oferecer prendas e, quando tem de ser, vai a um funeral. A língua também é um exercício de diferenciação social e quem quer diferenciar-se não se faz rogado. Por mim, só me apetece usar vermelho, prendas e funeral quando estou num círculo de amigos do encarnado. Se me calhar estar no círculo mais popular, posso cair na tentação de evitar o vermelho. Isto, porém, deve-se a ter nascido com uma inclinação patológica para contrariar o que está dado, contrariando-me muitas vezes a mim mesmo. Se estou sozinho não digo vermelho nem encarnado, não distingo prenda de presente e nem me lembro se se trata de um enterro ou de um funeral. Se estou sozinho, evito dizer seja o que for, embora na minha mente prossiga um diálogo infinito, em que falo comigo mesmo como se já tivesse enlouquecido. Estes textos estão a ficar excessivos. Também a verborreia faz parte do meu amor à hipérbole.

domingo, 22 de dezembro de 2019

Imaginações

Um alarme lança aos ares o aviso contra imaginários ladrões e quebra o silêncio onde mergulhara neste entardecer de domingo. Ninguém acode ao estabelecimento e o dispositivo prossegue na sua cegarrega mecânica, avisando o mundo de um perigo que não há. Nunca se sabe que ameaças são as piores, se as visíveis se aqueles que só a imaginação descobre. Não devemos descurar o que esta nos diz, apesar de serem secretos os seus caminhos. Num livro de contos de um escritor japonês, em nota prévia, é explicada a pronúncia que se deve dar aos nomes desta língua. Resolveu a meu favor uma pequena contenda relativa à leitura do w, se deve ser feita ao modo dos ingleses ou dos alemães. O alarme calou-se, havia nele cansaço de tanto esperar por ladrões que não vinham. Levantei-me para ir cumprir uma tarefa doméstica, mas ia tão distraído que a meio da viagem já não sabia o que ia fazer. Tive de parar e actualizar a informação. Lá me ocorreu o que era. Hoje o mundo visto da janela do meu escritório parece sombrio. Será porque o sol se esconde atrás das nuvens ou porque no meu coração nascem sombras que se derramam na paisagem. Uma voz diz é cansativo pertencer à espécie humana. Procuro o autor da mensagem mas não encontro ninguém. Rio-me e levanto-me da cadeira. Daqui a pouco terei de atravessar a cidade e, nem sei porquê, isso entristece-me.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Ocorrências

Nestes dias Portugal tem sido um país cheio de ocorrências. Não fora o mau tempo e nada ocorreria por cá. Somos um povo sábio dado à imutabilidade. Nove séculos de história ensinaram-nos a não correr para lado nenhum. Há várias razões para os povos marcharem a grande velocidade. Os germânicos e escandinavos labutam para combater o frio, dito de outro modo trabalham para aquecer. Os americanos possuem outra motivação. São um povo muito jovem, inocente e ainda em formação. Não sabem muito bem quem são e o querem. Por isso precipitam-se com fragor para o futuro, pois imaginam que lá adiante encontrarão respostas às suas perguntas, ilusão recorrente nos povos em início de vida. Os portugueses, porém, têm um clima temperado, por vezes demasiado quente, e nove séculos de história. Já nos tínhamos aposentado há muito do nosso trabalho histórico quando nasceram os Estados Unidos. Por tudo isto, e eu neste caso sou absolutamente português, não gostamos de ocorrências, evitamos sempre que podemos que alguma coisa ocorra. Contemplar o mundo a partir de uma sabedoria de nove séculos só nos pode aproximar da eternidade e na eternidade tudo é imutável. O pior é o mau tempo, pois com ele chegam ocorrências sobre ocorrências, como agora se chamam os incidentes provocados pela ira dos elementos, o que nos deixa irritados, pois fazem-nos descer do pináculo onde nos encontramos e tratar do que ocorre no mundo. As depressões climáticas deprimem-nos porque fazem ocorrer coisas onde nada deve ocorrer e nos retiram da nossa sábia contemplação da eternidade.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

A agonia do Outono

Olho pela janela e digo estamos no Inverno. Depois observo a palavra e gosto de a ver com maiúscula. Uma estação do ano não merece o despropósito com que agora é tratada, tornando-lhe o início rasteiro, sem perceberem que cada uma delas é um acontecimento único na sua repetição e que devem ser consideradas como pessoas ou deuses, com as suas idiossincrasias, humores, o ritmo secreto que as faz oscilar, o vigor ao entrarem em cena e o cansaço ao despedirem-se da vida. A chuva persiste, constante na sua frieza, enquanto os cedros do pequeno bosque ao fundo se erguem rígidos para o céu, indiferentes à água que sobre eles cai. Na avenida, alguns transeuntes seguram guarda-chuvas, mas correm a abrigar-se. Os carros passam, criam pequenos tsunamis que se levantam violentos e logo morrem, sem que nenhuma devastação aconteça. É sexta-feira, embora o corpo não acredite que o fim-de-semana se aproxima. Remexo-me na cadeira e medito no que ainda hoje terei de fazer. Ao longe, o edifício do hospital lembra-me uma ruína, o sinal de um mundo acabado que persiste difuso na memória dos vivos. Não pára de chover e talvez fosse apenas isto o que queria dizer.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O último combate

O Outono despede-se invernoso, irado pela aproximação do dia em que o carrasco fará deslizar pelo seu pescoço o gélido fio da guilhotina. Visto da janela o espectáculo da resistência outonal faz recordar um velho guerreiro que trava o seu último combate. Há sabedoria no modo como maneja a lança da chuva e a espada do vento, há nobreza na face envelhecida que enfrenta a condenação. Indiferentes ou temerosas da refrega, as pessoas fecham-se em casa e, embrulhadas nas suas lareiras, sonham com dias primaveris, enquanto os gatos ronronam ao calor. Um ou outro louco caminha na rua sem guarda-chuva, encharcado, como se fosse um penitente que se lava na água caída dos céus. As iluminações de Natal derramam tristeza pela cidade e trazem à memória, como contraponto, os dias em que tudo era mais frugal e eu mais ingénuo. O vento percute a persiana e lá dentro uma velha canção de Natal deixa cair as notas sobre os presépios. A Virgem demora-se na espera e S. José, longe da carpintaria, parece inquieto e deslocado. O silêncio tomou conta dos seus corações como a água se apoderou da terra.