O mês fina-se hoje. Que descanse em paz. A sensação mais estranha que tive desde que tudo isto começou aconteceu ontem. Na centena de metros que separam o sítio onde vivo e a farmácia, nunca me abandonou o sentimento de se estar na ressaca de um apocalipse. A combinação da luz coada pelas nuvens com os estabelecimentos fechados, a ausência de gente nos sítios onde abundava, o vento que parecia prometer, caso fosse necessário, trazer os mais terríveis miasmas, tudo se conjugava na minha imaginação e desenhava uma paisagem urbana de uma cidade que fora repudiada pela maioria dos habitantes. As pessoas com que me ia cruzando, ontem menos que em outros dias, traziam máscara e havia em todas elas uma precaução no andar, na forma como o corpo poisava no chão, como se vivessem há muito habituadas a estar alerta contra os raides aéreos das forças inimigas. Exagero? Duvido, pois esta é a época, de todas as que vivi, mais dada à hipérbole. Tudo nela é excesso, mesmo a ausência, mesmo a penúria, mesmo o vazio. Hoje acordei com a impressão de ter sonhado, coisa que raramente acontece. Não sei o que me ocupou enquanto dormia, mas ao acordar não senti alívio nem frustração pelo fim do sonho, experimentei uma sensação de indiferença e a percepção de que os valores da gravidade se tinham alterado, que era mais difícil andar, que a força de atracção da terra aumentara. Ao abrir a janela, a realidade voltou ao que era, se é que a realidade era ou é alguma coisa. Hoje é quinta-feira, dia 30 de Abril. Ocupo os dias em trivialidades, aquelas que contribuem para que pague as contas e estou grato por poder pagá-las. Duvido que isso dependa do meu mérito. Trata-se de sorte, embora aqueles que são afortunados, e por vezes é preciso muito pouco para o ser, raramente aceitam que a sorte desempenha um papel não pequeno na trama que é a sua vida. Há sempre a tentação de exagerar os méritos.
quinta-feira, 30 de abril de 2020
quarta-feira, 29 de abril de 2020
Uma aventura
Um acontecimento. Logo, terei de ir à farmácia. O que era trivial ganhou agora o colorido de uma pequena aventura, à qual irei de máscara como se fosse um assaltante, até que tudo, mesmo o estar mascarado, se torne num novo trivial, pois a banalidade é a casa onde os homens podem dormir em paz. De manhã choveu e as temperaturas andam baixas para a época. Pior seria se o Verão se tivesse antecipado e construísse uma toca nestes dias. Por aqui, o abrigo da serra torna o Estio em animal feroz, pronto a devorar o ânimo dos mortais e, para os perder, a enlanguescer-lhes os corpos. Não posso esconder que entre mim e o calor há um longo contencioso, que tribunal algum arbitrará. Se imagino o paraíso de onde Adão e Eva se fizeram expulsar, pressinto-o como um lugar de eterno Outono, quando o calor se ameniza e ainda não chegaram chuvas e frios e as vinhas ostentam cores esplêndidas que os olhos nunca se cansam de ver. Este bucolismo serôdio enoja-me, quase vomito, mas já desisti de parecer um narrador moderno, daqueles que omitem a acção e esquecem as personagens. Ontem vi um filme inspirado por um romance de Proust, mas não me apetece falar dele. Um sol flébil rompe o cerco das nuvens e brilha lacrimoso e turvo sobre a cidade. Tenho coisas para fazer antes de ir em demanda do santo graal. Da farmácia, quando lhes liguei para fazer a encomenda a levantar mais tarde, disseram-me que o champô medicinal que usava, já nem sei bem porquê, tinha sido descontinuado, mas que procurariam outro com o princípio activo semelhante. Fico sempre maravilhado com a linguagem. As coisas não acabam, descontinuam-se. Todos nós nos descontinuaremos, embora duvide que haja outro produto com o mesmo princípio activo. Hoje é quarta-feira, dia 29 de Abril. Amanhã será o último dia do mês, logo hoje é o penúltimo e ontem foi o antepenúltimo. Há que exercitar a memória para não esquecer estas pequenas relações que ainda nos permitem compreender o que é o tempo, desde que não nos perguntem o que ele é. A última frase é plágio, mas omito o autor,
terça-feira, 28 de abril de 2020
A sombra ataca
Pego num livro que não li. Abro-o e vejo-o sublinhado e anotado por alguém com uma letra exactamente igual à minha, com NB à margem completamente idênticos aos que costumo fazer, até o que os NB salientam é aquilo para que chamaria a atenção. Não apenas alguém leu o meu livro sem me pedir autorização, como se apropriou da minha letra e das minhas idiossincrasias para me fazer crer que fui eu que o li e o destratei com sublinhados e anotações. É evidente que há outras explicações mais prosaicas para o sucedido, como por exemplo a de ter sido eu o leitor e ter-me esquecido do livro. São coisas que acontecem. No entanto, quem quer explicações tão prosaicas, tão incapazes de criar um mistério, talvez mesmo um milagre? Por exemplo, é possível imaginar que, quando me vejo ao espelho, do outro lado está alguém que me imita e que, aproveitando os meus sonos, salta desse mundo aliciano e se põe a ler os meus livros e a imitar a minha letra. É uma explicação menos prosaica que a do esquecimento e, por isso, muito mais verídica. Um leitor pouco dado à imparcialidade dirá que o estado de emergência não me tem feito bem, não o desmentirei, mas chamo-lhe a atenção que o mesmo pode acontecer com ele. O vento tamborila nas persianas, oiço ruídos que não consigo identificar e pergunto-me se irei caminhar pelas ruas da cidade, mas perdi o poder do vaticínio e não sei que resposta dar-me. Hoje é terça-feira, dia 28 de Abril. O mês foi parco em calores e nada augura que se modifique nos dias que lhe restam. Para dizer a verdade, sinto-me cansado, mas já não me lembro de quê.
segunda-feira, 27 de abril de 2020
Meditabundos e cismadores
Abri a janela para que os barulhos do mundo chegassem até mim. A circulação automóvel começa a aproximar-se da de outros tempos. As pessoas têm pressa para voltar ao sítio onde se encontravam há dois meses, ao conforto da ignorância, pois não há coisa mais confortável do que não saber. Os que têm uma inclinação para moralizar os acontecimentos naturais hão-de ficar desiludidos com a ânsia deste retorno. Uma oportunidade tão boa para melhorar o mundo e as pessoas apenas pensam em voltar à dissipação habitual. Durante a história da humanidade, não por acaso, o desejo foi fortemente regulado, vigiado e perseguido se extravasava as duras fronteiras onde era contido. Depois, quando Diónisos derrotou Apolo, o desejo emancipou-se e, como todos os limites lhe têm sido retirados, é inimaginável que a eclosão de um vírus invisível seja motivo suficiente para que lhe ponham de novo o cabresto. Não sei o que me deu para me entregar a tão fútil reflexão. A falta de assunto torna as pessoas meditabundas e elas põem-se a cismar com coisas cuja compreensão está muito para além das suas possibilidades. Retrato-me disso como se confessas, contrito, um pecado mortal. Oiço pombos a arrulhar, imagino que estejam numa fase em que o desejo fale. Sempre estamos na Primavera e a vida precisa de se multiplicar. Se fechar a janela, o mundo cala-se e é possível que deixe de existir. Hoje é segunda-feira, dia 27 de Abril. A meteorologia promete aguaceiros fracos para mais logo, para aquela hora em que eu prometera ir à rua para caminhar pelo mundo, como se me tivesse tornado um homem livre. Não tornei.
domingo, 26 de abril de 2020
A vida inabitual
Depois de todo este tempo, vi o meu neto ao vivo. Estava com
medo que fosse apenas uma presença virtual. Afinal, existe mesmo. Corre, cai, fala
uma estranha linguagem, cujas palavras já não consigo entender, pois não
pratico o idioma há muito. Não nos aproximámos, não peguei nele ao colo, não
lhe dei a mão. Não o levei a fazer experiências no mundo. Aproximámo-nos mas
ficámos afastados. O dia está cinzento e ninguém diria que é domingo, nem
qualquer outro dia da semana. O calendário indiferencia-se e as pessoas vão perdendo
fronteiras e esquecendo taxinomias. Ontem caminhei na serra. Havia pedras,
árvores, arbustos, trilhos para explorar aquele mundo meio selvagem. Havia também
sol e ar e outros caminhantes. A luz vacilava, um pássaro levantava voo, o
coração dos montes exultava. A mesma natureza que ainda ontem envelhecia, hoje
rejuvenesce redimida pelo triunfo sobre a morte. Substituo a frugalidade pela
perífrase e alongo-me em frases desabitadas pelo sentido. Numa rede social,
vejo um padre a oficiar, rodeado por um grupo reduzido e disperso de fiéis,
como se tivesse um poder secreto que lhe abrisse as portas do futuro. Não tem,
mas imagino-o à noite sentado na varanda e, enquanto contempla a serrania, esforça-se
para que os olhos penetrem no que ainda não aconteceu. Como eu, também ele está
cego. Hoje é domingo, dia 26 de Abril. O ano corre sobressaltado sobre um leito
estranho. Em algum lugar, um poeta escreverá um poema e um místico verá Deus ou
um poeta verá Deus e um místico escreverá um poema. Quem quer saber disso? O
melhor é ir dormir uma sesta.
sábado, 25 de abril de 2020
O último é batata podre
O último é batata podre. As coisas afinal não mudam tanto
quanto se supõe. Duas crianças, um rapaz e uma rapariga, irmãos por certo,
correm na praceta aqui em baixo, sob o olhar atento da mãe. Parceria uma cena
trivial de um tempo sem sobressaltos, caso a mãe não falasse com amigas a uma
distância cheia de desconfianças. Agora oiço o barulho de garrafas a cair no
vidrão. Depois, silêncio. Penso nos meus netos, tornaram-se presenças virtuais,
chegam em vídeos ou em conversas através daquelas plataformas cujo nome prefiro
silenciar. Como qualquer avô, faço caretas e figuras idiotas, pergunto coisas
que enviesam os olhares das adolescentes. O rapaz, do alto dos seus dezoito
meses, condescende por vezes em dar-me cinco segundos de atenção. O último é
batata podre, recordo-me, e nesta sentença há toda a sabedoria do mundo. Existe
outra sabedoria, mas essa não é deste mundo. Os últimos serão os primeiros. O choque
destas duas avaliações nunca foi tão claro como na vexata quaestio da batata podre. Se o último afinal é o primeiro,
quem será o batata podre? Será que na catequese colocam às crianças dilemas
destes? O dia já se soltou da manhã e, envolto na capa da tarde, ruma pelos
campos. O último será mesmo batata podre? Hoje é sábado, dia 25 de Abril. A
cidade contínua sitiada, mas os habitantes habituaram-se ao assédio do inimigo.
Caminham pelas ruas, evitam passar perto uns dos outros. Na passadeira, uma
mulher arrasta um cão minúsculo. Chega ao outro passeio como se tivesse
aterrado noutro continente.
sexta-feira, 24 de abril de 2020
Se um deus ex-machina
Tenho visto uns filmes situados na Belle Époque. Ainda hoje a designação faz revirar os olhos a quem
tenha inclinação para os revirar, pois isto de os fazer andar à volta não é
coisa de toda a gente. Começo a afastar-me do tema. Voltando aos filmes. Giram
em torno de gangsters e prostitutas ou de outro tipo de gente que não seria
recomendável frequentar. Não é uma avaliação moral, apenas uma constatação dada
pelo estado de confinamento que até um simples narrador está sujeito. É também
prova de escassez de assuntos e isto é um drama. A oferta de temas contraiu-se
fortemente e uma pessoa fica a olhar para o monitor à espera que um tema lhe
caia em cima, que um deus ex-machina
a salve. Nada. Sempre posso falar do friso das orquídeas, descrever-lhes a cor,
o número de flores por planta, mas a tudo isso falta acção. Nenhuma delas se predispôs
a ser heroína, a encetar uma peripécia que me incendeie a imaginação.
Limitam-se a ficar ali, exibem-se, esperam que cuidem delas, mas a acção está
fora não dos seus poderes mas dos seus interesses. Chegaram-me a sugerir que
tinham vocação de monjas contemplativas, daquelas que almejam sentar-se num
penhasco e ficar ali a olhar o infinito. Também as torres do castelo podiam
cooperar comigo, mas asseveram-me que não têm paciência. Já viram demasiadas
coisas e que nada disso lhes interessa. Estiveram quase a contar-me umas
histórias pícaras que se passavam, e talvez se passem, no interior das
muralhas, mas depois deram uma gargalhada e remeteram-se ao silêncio. Como se
vê, sou um narrador esforçado, mas os elementos não cooperam comigo. Hoje é
sexta-feira, dia 24 de Abril. Informam-me que mais logo choverá e trovejará, mas
também haverá abertas. Se houvesse um deus
ex-machina que solucionasse esta história em que fomos envolvidos, juro que
haveria de encontrar assunto. Sendo assim, restam-me os filmes sobre a Belle Époque.
quinta-feira, 23 de abril de 2020
Noutro mundo
Ao fim de não sei quantas semanas comprei livros. Heróides, de Ovídio, Poemas, de Tibulo e Epístolas, de Horácio. O confinamento predispôs-me para os
clássicos, dir-me-ão. Falso, os motivos são vulgares. A editora está a
vendê-los com um belo desconto e ao fim de tão grande período de abstinência
decidi que estava na hora de fingir que as coisas são como sempre foram, que a
natureza é imutável e a realidade voltou aos carris de onde nunca deveria ter
saído. Uma ilusão, mas agora tenho um novo horizonte, o da chegada dos livros,
o ritual de os desembrulhar, de passar as mãos pelas capas e os olhos pelas
páginas impressas. Há que ter cuidado na tarefa de lidar com o correio, não
seja uma carta armadilhada, não venha na encomenda uma bomba invisível. Sem
darmos conta, movemo-nos já noutro mundo, novas regras emergem, outros gestos
são obrigatórios. Talvez aprendamos a justa distância, diz-me a consciência,
sempre agastada com as homilias dos afectos, com as pessoas a beijocarem-se por
tudo e por nada. Neste caso, um dos poucos, partilho o ponto de vista da minha
consciência. O ideal seria introduzir a vénia como forma de cumprimento
habitual. Uma leve inclinação da cabeça e o mundo pareceria mais sensato e, por
certo, o deus Eros agradeceria, pois nada o torna mais alegre do que essa
distância que mantém o desejo em tensão. Bem, o autor assim como me proibiu
tiradas políticas, também não me permita derivas eróticas ou sequer
considerações sobre o assunto. Sou um narrador obediente. É mais recomendável
falar do céu cinzento, do verde das árvores, do silêncio do mundo ou da
algazarra que se deixou de ouvir. Tenho pena da minha caixa de email. Parece
uma Penélope a atrair pretendentes, mas não há Ulisses que lhe valha. Hoje é
quinta-feira, dia 23 de Abril. Não chove, mas imagino a água pelos córregos, os
campos a verdejar e, de súbito, descubro-me um amante da natureza. No hospital,
os vidros dos carros reverberam, enquanto a tarde lépida se afasta da manhã.
Espera-a a noite.
quarta-feira, 22 de abril de 2020
Dias intérminos
As águas de Abril recolheram-se à cisterna, onde um deus
imprevisível e de má catadura as armazena para as usar ora como bênção, ora
como castigo dos mortais, segundo uma disposição cujo segredo está oculto aos
poderes humanos. Louvo-me nestas banalidades e evito pensar seja no que for. O
ideal seria pensar em nada e o mais belo de todos os ideais seria que certas
pessoas evitassem o uso sempre deficiente do cérebro e se entregassem a um
estado vegetativo contumaz. O mundo tornar-se-ia um lugar menos triste se esses
animadores nos poupassem os rasgos. De manhã, ao levantar-me, havia sol na rua.
A Primavera endireitava-se sobre as pernas ainda cambas e ensaiava um passeio
pelas ruas. Ninguém diria que cambo tem a sua origem num radical céltico. Asseveram-me,
porém, que assim é. Eu acredito, pois o que mais resta a um confinado do que
crer? Continuo a praticar os pequenos gestos quotidianos de sempre, faço-o como
se tratassem de rituais que me ligam a esse tempo sagrado antes da queda nesta
situação. Estes dias fazem-me lembrar, por vezes, aquelas tarde intérminas do
Verão, em que as horas de calor terrível se recusavam a passar e eu lia, lia.
Não, não era Tolstoi, nem Kafka, nem Thomas Mann. Nesses dias ainda não tinha
adoecido o suficiente. Lia o Texas Jack, o Condor, o Ciclone, o Falcão e as
célebres aventuras do major luso-britânico Jaime Eduardo de Cook e Alvega. O
que eu não sabia na altura é que, no original inglês, o major era
tenente-coronel e de português tinha nada. Também não sabia que o tradutor era
Anthímio de Azevedo, o mais célebre meteorologista português. Agora que sei
isso tudo, não faço ideia para que me serve essa sabedoria. Hoje é
quarta-feira, dia 22 de Abril. O vento estremece a folhagem do arvoredo,
contínuo a ouvir a voz de Montserrat Figueras. O Major Alvega deixou de
combater, já não me recordo das histórias do Condor nem do Ciclone e talvez
Texas Jack tenha sido abatido num duelo. Um dias destes, caso não me cuide,
ainda acabo a falar na Ponderosa, o rancho dos Cartwright.
terça-feira, 21 de abril de 2020
Alexandrinos e redondilhas
Escando os dias como se fossem versos, espero encontrar neles a métrica que dê ritmo ao desconcerto, que transforme a cacofonia numa peça musical digna de ser escutada num futuro em que a memória destes dias seja apenas uma sombra rente ao entardecer. Oiço o barulho de uma rebarbadora, mas não consigo perceber de onde vem. Não é a primeira vez que me atinge, nestes dias, a rugosidade daquele ruído, vindo da rua. Malditas aliterações e assonâncias. Devia evitá-las para não me estragarem a prosa. Vou à janela, olho para aqui e para ali, mas não descubro a fonte do incómodo. Talvez seja apenas parte de um pesadelo, embora eu jure que estou bem desperto, e não me venham com a história de Descartes que não se é capaz de distinguir o sono da vigília. Na avenida é notório já o corrupio dos automóveis. Deslizam como se tivessem conquistado a cidade a um inimigo implacável. Reparo que dei um erro ortográfico, emendo-o, mas fico infeliz, a palavra era mais bela com o erro do que sem ele. Daqui se prova que entre ortografia e estética não tem de haver compatibilidade. Correcção e beleza raramente andam de mãos dadas, mas não quero lançar falsos testemunhos. As oliveiras que ontem tinham desaparecido voltaram para o seu lugar e isso tranquiliza-me, como se me dissessem que todas as coisas têm um lugar a que podem voltar. Hoje é terça-feira, dia 21 de Abril. Continuo a enunciar o dia da semana e o do mês. Faço-o como se isso me protegesse de qualquer inimigo inominável, mas o mais certo é que ainda me transformo em calendário. Antes em calendário do que em herbário, digo-me, mas não estou certo se deveria ter feito tal comentário. Se cada dia fosse um alexandrino, Abril teria trezentas e sessenta sílabas métricas. Não haveria quem suportasse tanta poesia. Talvez bastasse a redondilha maior e ainda dava letra para um fado.
segunda-feira, 20 de abril de 2020
Simulacros
O melhor é não crer naquilo que os olhos vêem. O que até ontem sempre me pareceu ser oliveiras apresenta-se hoje sob uma outra capa que, fora eu dado a crer em metamorfoses súbitas, diria que alguém trocou as árvores. Eu sei que a luz é senhora do mundo e basta que ela mude para que as coisas pareçam outras, e a luz de hoje não parece confiável a ninguém. Um dia destes, tenho a esperança, as oliveiras voltarão para o lugar que era o delas e aqueles simulacros que lhes ocupam os espaços serão levados para longe dos meus olhos. O principal problema de tudo isto é a dúvida para a qual sou de imediato arrastado. Não serei eu também um simulacro de mim mesmo? Não estou certo, mas inclinar-me-ia para a possibilidade disso acontecer rondar os oitenta por cento. Uma estimativa conservadora, dirá um especialista nestas coisas. Não sou eu, portanto, que escrevo, mas o simulacro de mim. A manhã não me terá feito muito bem. Hoje já videoconferenciei duas vezes, pensei em coisas práticas, logo eu tão pouco dado ao prático, e li coisas que não deveria ler. No mundo proliferem coisas ilegíveis, embora sejam as que mais leitores têm. Na consciência deixo correr as coisas que tenho para fazer esta tarde, mas logo o pensamento muda de agulha e se centra não no que devo mas no que desejo fazer. Uma tragédia esse eterno conflito entre dever e desejar. Observo com demora a rua e vejo o dia a cambalear tristonho e choroso pelas áleas escuras do tempo, como se o crepúsculo se devesse demorar hora sobre hora, incapaz de dar à luz a noite escura. Não me ocorre nada de assinalável para assinalar e o melhor é calar-me. Hoje é segunda-feira, dia 20 de Abril. Chove e o mês entrou no seu último terço. Um pássaro abusa do efeito de redundância na emissão da mensagem e do gira-discos, como sou velho, chega-me a voz da Montserrat Figueras e a música de Jordi Savall, no prodígio de misturar vivos e mortos que só a técnica consegue.
domingo, 19 de abril de 2020
A vila sitiada
Sem motivo, deitei-me tarde e tarde me ergui. Quando a janela se abriu havia sol, olhei-o, mas logo descobri que não saberia o que fazer com ele, como começo a não saber o que fazer com muitas coisas. O mês anda resfriado e as tarefas com que os dias são ocupados nunca deixam de exibir a marca de pechisbeque que é a delas. Ainda não fui espreitar o movimento na Sá Carneiro. Talvez a própria avenida se tenha movido para outro lado e eu agora viva num sítio inóspito, cheio de felinos ameaçadores e répteis que nem nos piores pesadelos existem. Ou então terei sido transportado para a Idade Média. A vila está sitiada talvez por castelhanos, talvez por mouros. Estamos em casa, passam dragões fumegantes, as muralhas contêm o inimigo e a peste grassa por entre os dois exércitos. Rio-me com a propensão para a hipérbole e lembro-me que a velha vila foi despromovida a cidade, para que todos se ufanassem da urbanidade decretada, apesar dos dedos rústicos e das mãos calosas. Quem é que quer ser um vilão? Não deveria fazer considerações destas. Avisto, sob a copa das árvores, uma rotunda coberta de repuxos e edulcorada com uma estatuária inominável, talvez comprada em algum leilão aquando da falência de um país socialista, mas estou interdito pelo autor de me meter em assuntos políticos. Sou um narrador obediente e na rotunda apenas vejo os carros que passam. Oiço o grasnar de uma motorizada, a buzina de um carro, o latir de um cão, vozes que vêm da praceta. Abro a janela e oiço o vento, um vento triste, comprometido, com a impotência estampada no rosto. Hoje é domingo, dia 19 de Abril. Anoto na minha agenda que terei de limpar a secretária e arrumar os papéis, ponho o telemóvel a carregar e sinto uma súbita saudade de ir ver o Tejo. As oliveiras da escola aqui ao lado dançam, embaladas pelo vento e nas suas folhas há um brilho de cinza e prata. Cada vez gosto mais delas.
sábado, 18 de abril de 2020
Um armistício com a balança
Até que enfim. Depois de meses de disputa, a balança convenceu-se,
não sei se por piedade, a devolver-me, quando pisada, um peso próximo daquele
que me é recomendado naquelas equações entre peso e altura, talvez com idade a
entrar também no problema. Não se pense que isso se deve ao facto de há mais de
um mês não pôr um pé num restaurante, ou à dieta seguida em confinamento, ou
sequer à prática diária de quase uma hora de exercício. Há que evitar
interpretações maldosamente materialistas. Tudo aconteceu devido à meditação transcendental
e à recitação quase ininterrupta do mantra om
mani padme hum. Não se trata da ideia pouco espiritual de que se uma pessoa
recita um mantra não come. Pode ser verdade. A questão, porém, é outra. A
balança pensou, ao dar conta dos meus exercícios espirituais para combate ao excesso
de peso, que eu ia enlouquecer e, por um acto de misericórdia, começou a devolver-me
números mais afáveis, embora na semana passada tenha hesitado. Assinámos hoje,
eu e a balança, um armistício e, continuando ela assim, haveremos de celebrar
um tratado de não beligerância. O dia está semi-radioso, o céu é uma manta multicolorida
de retalhos, suficientemente esburacada para deixar passar um sol temeroso e
pouco convicto dos seus poderes. Na avenida, passam mais carros do que tem sido
habitual e um transeunte, que ainda não chegou a acordo com a sua balança,
arrasta um peso excessivo sobre a calçada, movendo devagar as pernas,
descansando sob a sombra das árvores, olhando estupefacto para um lado e para
outro. Oiço o barulho de garrafas a cair num vidrão e recordo-me de que fui
acordado pelo ronco de um corta-relvas de uma empresa de jardinagem que cuida
dos espaços públicos. É uma empresa muito preocupada com aquilo que as pessoas
podem fazer na cama ao sábado de manhã e, por isso, elegeu-o para enviar os
seus batalhões de cortadores de relva, com os tanques de combate. Hoje é
sábado, dia 18 de Abril. Os dias passam sorrateiros, a minha caixa de email
continua a ser bombardeada e o telemóvel mostra-me duas fotografias da minha
neta mais velha com um ano de diferença. Abro a boca de espanto, mas logo a
fecho. O tempo passa. Não há nada como um truísmo para acabar.
sexta-feira, 17 de abril de 2020
Ser a quarentena
O enfolhamento das árvores caducifólias vai a bom ritmo, não
faltará muito para que a exuberância tome conta delas e as pessoas comentem o
quanto estão frondosas. Logo se recolherão na sua sombra, protegendo-se dos raios
desferidos por um Sol que se há-de tornar desabrido, senão mesmo inclemente. A
espécie humana tem o curioso destino de criar continuamente palavras. Depois
envolve-se nelas e pensa que fica ao abrigo das intempéries e da volubilidade
da natureza. Não fica, pois esta nunca se cansa de congeminar armadilhas para
capturar os seres humanos, humilhá-los na sua vaidade e submetê-los a leis que
eles não deram a si próprios. Não são pensamentos para se ter a uma
sexta-feira. Lembrei-me dos tempos em que ia a um restaurante ou ao cinema, mas
tudo isso foi há muito. Se a quarentena fosse apenas um espaço de quarenta
dias, tudo seria mais fácil, mas não. Quarentena é agora uma forma de existir e
não tarda uma maneira de ser. Deixamos de estar em quarentena e passamos a ser
a própria quarentena. Não estamos isolados, passamos a ser o isolamento. Enquanto
escrevo, vou bebendo água. Talvez tenha esperança de que a água me lave e
desinfecte por dentro. Oiço Hildegard von Bingen. Se fosse um filósofo teria
dito oiço a música de Hildegard von Bingen, não o sendo deixo-me levar pela
preguiça e caio no alçapão das metonímias. Penso, de imediato, que a metonímia
é mais verídica do que a expressão corrente, mas nada disso me salva de estar na
circunstância em que estou. Hoje é sexta-feira, dia 17 de Abril. O estado de
emergência vai continuar a emergir. Recebo um vídeo onde o meu neto aprende a trepar
para uma cadeira de adulto e logo tenta subir para uma mesa, mas a autoridade
diz-lhe que não se sobe para cima das mesas. O mundo está cheio de interditos.
Felizmente, diz-me a minha consciência.
quinta-feira, 16 de abril de 2020
Voltar à normalidade
Um tempo como o que vivemos é pródigo em linguagem esotérica. Por todo o lado vejo a expressão voltar à normalidade. É uma frase difícil de compreender. Nunca se volta, pois não podemos retroceder no tempo. Mais intrigante ainda é a palavra normalidade. Isso quer dizer o quê? Talvez seja eu que não saiba compreender a língua portuguesa e tenha sido dotado de um baixo poder interpretativo. A inteligência neste mundo não será coisa lá muito bem distribuída, e ter-me-á calhado um quinhão menor. Esta é uma hipótese que não ponho de lado e afinal pode ser que se viaje no tempo e exista mesmo uma normalidade. Não sei bem a razão, mas estou um pouco irritado com o S. Pedro. Insiste num tempo triste, como se lhe faltasse ânimo para entremear umas fatias de sol entre as côdeas desengraçadas da chuva e do vento. Também estas metáforas me deixam sem ânimo, sempre podia ter achado coisa melhor. Na rua, dois cães ladram. Um deles está exaltado e, não fora intervenção humana, reduziria o outro a farinha. A minha caixa de email não pára de receber mensagens. De tanto trabalhar, ainda me há-de cair para o lado, exausta. Numa notícia sou informado de que foi avistada uma estrela a dançar em torno de um buraco negro. E esse facto será mais um prova de que Einstein tinha razão. Não sou informado a que tipo de dança se entrega a estrela, mas espero que não seja o cancã ou o tango, não estamos em tempo dessas coisas. E depois nada garante que o buraco negro possua inclinações eróticas. Só me ocorrem coisas idiotas, mas tenho de ser compassivo com a minha imaginação, ou a falta dela. Hoje é quinta-feira, dia 16 de Abril. Daqui a pouco terei uma reunião online, depois hei-de ir espreitar o friso das orquídeas, as torres do castelo e o trânsito na Sá Carneiro. São exaltantes estes dias, talvez tenhamos de voltar à normalidade.
quarta-feira, 15 de abril de 2020
Arrumações e astrologia
Abril chegou a meio do caminho envolto em água fria, caída
das incertezas do céu. Ontem trovejou, mas hoje os deuses estão menos irados e
guardaram na algibeira relâmpagos e raios que não usaram para fulminar a
terra. Acumulam-se papéis na secretária. Tenho resistido à tentação de os
arrumar. Preciso de esclarecer o que entendo por arrumação de papéis, não vá
dar-se o caso de se imaginar que tenho um sítio onde, depois de devidamente
analisados e classificados, os guardo, para memória futura. Na minha linguagem,
arrumar papéis significa enviá-los para reciclagem, devolvê-los ao ciclo da
produção e consumo. Escrevo esta frase e quase me sinto um economista, o que
está longe de ser um elogio. Economistas são aquelas pessoas que estão sempre a
fazer previsões, mas que nunca acertam, nem mesmo depois dos factos consumados.
Não deveria serrazinar profissão tão distinta, de cujos humores depende a nossa
mercearia, não vão os seus cultores começar a ornear na praça pública contra
aqueles que os confundem com astrólogos. É o meu caso, mas não o digo a
ninguém. Uma antiga canção brasileira dizia que a dor da gente não sai no jornal, mas agora os jornais começam a
estar cheios de dor, estampam-na para que se torne viva, não vá ela, a dor, ser
apenas um ponto na curva de um gráfico, um número na contabilidade da vida e da
morte. Não sei o que pensar de tudo isto, mas isso também não é novidade. Oiço
o vento a murmurar, incomodado com as persianas que o tolhem. Vejo da janela algumas
pessoas, vão de máscara, o vento levanta-lhes o cabelo e empurra a máscara
contra o rosto, enquanto elas caminham, caminham, à procura de um destino. Hoje
é quarta-feira, dia 15 de Abril. Das colunas da minha cansada aparelhagem sai
uma música coeva de Bruegel, o Velho. Há dias em que me sinto como se tivesse
nascido nesses tempos, mas como se sabe sou dado ao exagero e cultivo a
hipérbole.
terça-feira, 14 de abril de 2020
Tudo é vaidade
A Primavera prossegue o seu caminho, um pouco desgrenhada. O
vento sopra, sopra, os ramos das árvores inclinam-se, mas logo voltam ao lugar,
pouco dóceis aos desígnios de Eolo. Passei a manhã a teletrabalhar e tenho a
tarde para resolver alguns problemas, mas são resoluções à distância, pois o
nosso próximo é aquele que se mantém ao longe. Começo a evitar as notícias, não
por elas, mas porque estão eivadas de profecias, vaticínios e augúrios. Nos
homens, o desejo nunca se cala, nunca se conforma com aquilo que há, nunca se
senta pacientemente à espere que chegue o que lhe pertence. Daí, abre a boca e
desata a fabricar futuros. Ora o futuro é uma coisa que me cansa tanto como o
presente, e este é o que se sabe. Vejo um vídeo do meu neto. Observo tudo o que
estou a perder, embora ele não dê por nada. Nos últimos dias não tenho visto
cinema e essa é uma alteração sensível. Outra é que também não tenho feito
palavras cruzadas. O que tudo isto quer dizer não faço a mínima ideia. Talvez a
maior parte das coisas que acontecem não queira dizer nada, limita-se a
acontecer e encontrar-lhe razões é um desporto que serve para mostrar a argúcia
do ego, uma vaidade. E aqui deveria dizer com o Eclesiastes vi tudo o que se faz debaixo do sol, e eis:
tudo vaidade, e vento que passa, mas não digo, guardo-o para outro dia, em
que não oiço o zumbir monótono de um aspirador. As acácias bastardas estão mais
compostas de folhas e na rua não passa ninguém. Daqui a pouco hei-de espreitar
as torres do castelo. Uma delas começa a ficar tapada pela ramagem de um
pinheiro manso. Hoje é terça-feira, dia 14 de Abril. O aspirador calou-se, os
pombos desenham círculos no ar e as horas desfazem-se em minutos, os minutos em
segundos e estes fiam o nada que a tudo envolve.
segunda-feira, 13 de abril de 2020
Um dia cinzento
O dia parece o fruto de uma imensa tristeza. Cobre-se com um
véu de cinza e esconde-se em cada beco por onde ninguém passa. Acompanho-lhe o
sentimento, mas será mais assisado quebrar esta lealdade e arvorar um sorriso
como se houvesse razão para uma imensa alegria. Desdobro diante de mim as
tarefas que tenho de realizar ainda hoje e pergunto-me se isso serve para
alguma coisa. A consciência, porém, diz-me que a ocupação é o melhor remédio
para estados de alma escuros. Olho-a com desprezo, mas ela não se faz rogada e
vinca a sua opinião, exorbitando funções. Volto às minha tarefas. Com elas
componho um puzzle, encaixo, com paciência, as peças, rio-me se me engano.
Ontem descobri um conjunto de textos que noutra época me interessariam, agora
não sei o que fazer com eles. Leio-os, mas é tanto o enfado, que o melhor é
esquecê-los. Oiço Andreas Scholl num Stabat
Mater de Marco Rosano, um compositor italiano actual. Deixo-me surpreender pela
música, fujo do fascínio que o mesmo tema tem na composição de Giovanni Battista
Pergolesi. Há obras que têm uma luz tão intensa que lançam uma enorme sombra
sobre todas as outras. Rosano também não é capaz de fugir por completo ao sortilégio
do seu compatriota. Esqueço tudo isso e deixo a música vir sobre mim. A
tristeza daquela mãe, porém, redime-me da melancolia da tarde que agora começa.
Vou almoçar como se fosse um dia normal. Hoje é segunda-feira, dia 13 de Abril.
Os campos da escola ao lado estão vazios, os cedros continuam a crescer e os
pássaros cantam iludidos pelo calendário.
domingo, 12 de abril de 2020
Estranha forma de vida
Ao acordar, naquele momento em que a consciência abandona o
estado penumbroso onde se entrega às habituais deambulações, numa negociação
difícil entre as pulsões do inconsciente e os imperativos do superego, veio-me
à memória um fado cantado por Amália Rodrigues. Estranha Forma de Vida. Pensei, então, que tudo se resumiria a
transitar da vida habitual para esta estranha forma de vida, até que se
tornasse um hábito e perdesse a estranheza, a inquietante estranheza que é a
dela. Depois, tudo isto se apagou. Há pouco sentei-me no chão de uma das
varandas e, enquanto lia, apanhava sol. Se a vida decorresse conforme o
habitual, a casa transbordaria e aqui encontrar-se-iam quatro gerações, em que
a pessoa mais velha tem mais 85 anos do que a mais nova. Nestes momentos, a
precisão aritmética torna-se central. No jornal, vejo que morreu Stirling Moss.
Não me lembro dele correr, mas quando me deu a febre da Fórmula 1, lá num dos
recantos da adolescência, ele era uma lenda ao lado de Juan Manuel Fangio. Num
dos capítulos da sua longa diatribe contra os deuses dos romanos, em A Cidade de Deus, Agostinho de Hipona lembra
que em Roma se tinha Fórculo como deus das portas, Cardea por deusa dos gonzos
e Limentino como deus protector dos umbrais. Contrariamente ao que os
historiadores contam, não foi o engenheiro Taylor que descobriu a
especialização do trabalho, mas as religiões politeístas que chegaram a um grau
tal de precisão que o deus que se ocupa das portas nada sabe da protecção dos gonzos,
das fechaduras nem dos umbrais. E tudo isto interessa para quê? Para nada,
claro. Hoje é domingo, dia 12 de Abril. Os católicos revivem a ressurreição de
Cristo fechados em catacumbas. O sol foi coberto por nuvens e eu, dentro de
minutos, tenho uma missão a cumprir.
sábado, 11 de abril de 2020
Realidade metafísica
Hoje, mais uma vez, ao olhar a rua, tive a sensação de que os quadros de Giorgio de Chirico tinham abandonado o mundo imaginário da arte e se tinham tornado realidade. A praceta que se vê de um dos lados da casa estava vazia, o café fechado, o sítio da esplanada sem os chapéus de sol, sem as mesas e as cadeiras que, noutros tempos, abrigavam pessoas, que ali tomavam café, faziam confissões, diziam trivialidades, animavam as manhãs antes que chegasse a hora de almoço. Do outro lado da casa, também a visão tem a mesma natureza da pintura metafísica. O bar da esquina fechado, a esplanada desfeita, os passeios com uma ou outra sombra fugaz, de alguém que é passeado à trela pelo seu cão. As árvores estão exuberantes, resplandecem se o sol toca a folhagem, sombreiam o chão indiferentes à ausência de pessoas. Os espaços públicos são agora puras projecções imaginárias, atravessados, uma vez por outra, por fantasmas arrastados pela sua própria sombra. Que novas geografias se hão-de fabricar. Oiço ao longe o roncar contínuo de uma máquina, mas não a vejo nem consigo perceber que tipo de engenho é. Um ruído contínuo, a música de fundo de um filme distópico. Ao longe, avisto o hospital, com as paredes maculadas pelos fungos e as janelas como seteiras por onde entra o sol e saem, como flechas, os olhares de quem por lá combate. Hoje é sábado, dia 11 de Abril. Oiço os pássaros meus vizinhos e penso que lhes deveria gravar as conversas. Depois, lembro-me que talvez elas estejam abrangidas pela protecção de dados e desisto da ideia. Com tanta proibição, nunca mais hei-de conseguir desvendar a sua linguagem. Rio-me e pergunto-me se já terei dados os primeiros passos em direcção à pátria da loucura. Não consigo ouvir a resposta.
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