Pela primeira vez, em meses, ouvi um bando de
pós-adolescentes algazarrear junto ao centro de línguas, na praceta aqui em
baixo. Não faço ideia se o centro reabriu ou se eles se juntaram ali para
descontrair de algum exame feito ou a fazer na escola ao lado. Estavam de
máscara, pareceu-me, mas as vozes elevavam-se com a força que só a inocência
lhes dá, mesmo que seja uma inocência que se julga culposa, crente de que uns
quantos desvios às regras lhes dá uma experiência mundana que porá todos os
velhos de boca à banda. Para aquelas idades, alguém com pouco mais de trinta
anos é um velho irremediável. Quando tiverem sessenta descobrirão que ainda não
são velhos. Continuam a florir os arbustos da escola. Ando há meses a tentar
recordar o nome daquelas plantas, mas ainda não o consegui. Talvez nunca o
tivesse sabido. Na casa de uma das minhas avós havia uma paliçada coberta por
umas trepadeiras que davam umas flores roxas que, abertas, tinham uma forma de
campânula ou sino. Que nome teriam elas? A Botânica não é o meu forte. Ontem o
meu neto veio visitar-me. Mal me vê puxa-me o dedo para vir para a secretária
onde não se cansa de bater no teclado. Depois, quer que eu o empurre na cadeira
do escritório. Estas viagens de cadeira de escritório já vão na terceira série.
Os dias deslizam para o buraco negro de onde, devido à intensidade do campo
gravitacional, nunca conseguem regressar. E com isto resolvi um dos grande
enigmas da humanidade. Por que razão não conseguimos viajar para o passado? A
resposta é simples. O passado não é um país estrangeiro onde as coisas se
fazem de forma diferente, como pensava o senhor Hartley, mas um buraco negro
onde tudo o que nele cai desaparece para sempre. Exausto por esta descoberta,
calo-me para não a estragar.
quinta-feira, 9 de julho de 2020
quarta-feira, 8 de julho de 2020
Carnaval eterno
Acordei ainda não eram sete da manhã. A temperatura na rua
tinha descido bastante, apressei-me a
abrir janelas e a pôr a casa sob o efeito de correntes de ar. Estava uma manhã
esplêndida. Cinzenta, fria. Um vento suave lavava o rosto da cidade encardido
pelo calor. As ruas pareciam transitáveis e dos prédios começavam a sair as
primeiras pessoas em direcção aos carros estacionados sob árvores, de onde se
desprende um fluido viscoso que se pega aos vidros. Um atleta paroquial,
equipado a rigor, passou na sua bicicleta de corredor, um homem de máscara
trazia um cão pequeno à tela, a vida mascarava-se de normalidade. Quando saí, o
feitiço tinha desaparecido. O Sol rompera as muralhas e tornara-se ameaçador.
Na esplanada do café da praceta, havia clientes nas três mesas que agora flutuam
distanciadas no estrado. Numa delas, a Marília conversava com o Zé Tó. Afinal
quem estava no outro dia a sambar para ela não era o Esteves nem o Lopes, mas o
Zé Tó, que, enquanto geólogo, andou por meio mundo à procura de petróleo. Esse
deambular é toda a metafísica que lhe coube, mas ninguém quer saber de
metafísica para coisa alguma. Os olhos já tiveram melhores dias, foi o que me
ocorreu, quando percebi o troca que fizera da outra vez. Passei por eles, olá,
olá, e continuei em direcção ao meu destino, pois hoje tinha um. Entrei nele
mascarado, estive por lá mascarado e saí mascarado. Embora a criatividade nos
disfarces ainda seja incipiente, o Carnaval está a tornar-se eterno. Não tarda
e todos sentiremos falta da Quarta-Feira de Cinzas.
terça-feira, 7 de julho de 2020
Perdido na floresta de calor
Almocei, depois de uma manhã entregue ao que o dever me
impõe. Agora, antes de continuar a dar atenção ao que me diz o imperativo
categórico, dou uma vista de olhos pela imprensa. Isto não vai acabar bem, foi
a ideia que se formou na minha mente. Não interessa o que é o isto. Seja o que for tem grandes
possibilidades de acabar mal. A temperatura está nos 38o e vai
continuar a subir. Lembrei-me da história do pastor e do lobo. Andamos desde
finais do XIX a gritar lobo, lobo, sem que se avistasse, talvez por cegueira ou
por não se gostar de abrir os olhos, lobo algum. O lobo guardou a sua visita
para estes dias. Está no meio do rabanho e ninguém acredita. Com este calor não
me ocorre nada mais edificante para partilhar ou, então, estou naquela fase da
existência em que as minhas referências existenciais são Esopo e os irmãos
Grimm. Há quem tenha opinião diferente. Um livro que tenho à minha frente, ao
abri-lo, enviou-me a seguinte mensagem: Acolhe-te
o paraíso dos loucos. Não devemos desdenhar os sinais. Se toda a gente
desse atenção aos sinais, talvez o lobo não andasse por aí e o rebanho pudesse
dormir mais descansado. As duas vezes que usei a palavra rebanho escrevi
rebalho. Isto preocupa-me. O que me levará a trocar o n pelo l? Desconfio que
há qualquer coisa a correr mal no convívio entre os meus neurónios. Talvez o
lobo já por lá ande e eu não tenha dado por isso. Tomo consciência do que me
espera nas próximas horas e enrolo-me no lençol da paciência e no cobertor da
piedade. É nestas alturas que perco a vergonha de ter pena até de mim mesmo.
Uma voz soletra age de tal maneira que
possas querer que a máxima da tua acção se torne em lei universal. Será a
autopiedade uma lei universal? Bocejo. Vou trabalhar.
segunda-feira, 6 de julho de 2020
Arrasto-me
Neste momento estão 38 graus, mas há a promessa de se chegar
aos 40. Não faço ideia como alguém consegue fazer alguma coisa que tenha
sentido, por pouco que seja. Se observo a minha mente, o que vejo é uma névoa
turva onde os parcos neurónios que não desertaram bóiam, mantendo uma distância
de segurança suficiente para cumprir as regras do combate à pandemia, sem
tentações de fazerem sinapses, conexões, de se entregarem a amplexos dos quais
haveria de nascer um sentido. O que me vale é não ser dado a fúrias
mediterrânicas e as minhas relações com a tragédia grega serem apenas as de um
leitor distante. O calor não fomenta em mim a inclinação para o crime, como
acontece com outros, mas o mérito que tenho nisso é nulo. Aconteceu ser assim.
Fico tolhido, olho o mundo com condescendência e arrasto-me na existência como
o mais impotentes dos seres que a vida se lembrou de retirar do nada para que
soubesse o que era uma tarde quente e seca. Toda esta conversa serve para dizer
que não tenho nada para contar, ao contrário de alguém que conversa no café da
praceta aqui ao lado. Não se cala e o som indistinto das palavras chega até a
mim. Uma outra voz, a espaços, corta-lhe interrompe e fala. Talvez seja a isto
que se chama conversar, mas não tenho a certeza. É em dias como o de hoje que
me lembro das sábias palavras, já aqui citadas, de Afonso X Se eu houvesse podido aconselhar Deus na
criação – atreveu-se ele a dizer – muitas
coisas teriam sido mais bem ordenadas. Queixo-me do mesmo, de Deus ter
criado as coisas sem me pedir opinião, ainda por cima com evidente propensão
para o igualitarismo mais prosaico, para não dizer rasteiro. Amemos ou odiemos o
calor tórrido, Ele envia-o em doses iguais para todos os que aportaram a esta cidade
esquecida pelo Céu. Consta que não fez o mesmo com o frio, pois a voz do povo
diz que Deus dá o frio conforme o
cobertor. Deveria evitar este recurso à cultura popular. Não abona a meu
favor. Só deveria ter grandes e nobres palavras, como pretendiam os gregos
antigos, que me elevassem e comigo ao leitor. Chega-me um vídeo. O meu neto de
braçadeiras amarelas dentro de água. Quase o invejo, mas tenho de acabar o
texto aqui.
domingo, 5 de julho de 2020
Expelir opiniões que ninguém pediu
Este parece-me um domingo dos antigos, daqueles que só
existiam no tempo imaginado da infância. O calor lança a tenaz sobre os seres
humanos e, enquanto estes esbracejam espavoridos, aperta-os lentamente até
sufocarem. Com a minha inclinação para a hipérbole, estou a dramatizar. As
pessoas, talvez a maioria, folgam com a chegada do tempo abrasador e usam-no
para poder partilhar um pouco dos seus corpos com os espectadores ocasionais. Afinal,
não fui a Lisboa. O alemão amigo do padre Lodo acabou por não vir, retido por
afazeres da mulher, uma espanhola. Não tardará, porém. Fiquei aliviado, pois
ainda não me apetece a capital. Tenho uma série de afazeres que guardei para este
domingo, contrariando o sábio conselho de não guardar para amanhã o que se pode
fazer hoje, dada por um astuto advogado a um camponês, num dos textos do livro
da segunda classe, talvez da terceira. Os livros dessa antiquíssima instrução
primária eram curiosos e deixaram uma legião de saudosos, que vão comprando as sucessivas reedições. Eram de tal maneira
verrumantes da consciência que, aí pela terceira ou quarta classes, pensava que
todos os nossos reis, rainhas e heróis nacionais eram não apenas seres dotados
de uma coragem superior, como de uma sabedoria sem fim e, acima de tudo,
juro-o, autênticos santos, todos com passaporte directo para o céu, sem terem
de passar num controlo de fronteiras nem fazer teste à COVID-19. Portanto, não
havia nenhuma ideologia nem condicionamento das consciência naqueles tempos,
mas estou impedido, enquanto simples narrador, de me meter em assuntos políticos,
e suspeitar que alguns daqueles heróis, se não a maioria, eram pouco dados à
santidade é um assunto perigoso nos dias de hoje. Só o calor teria poder para
destruir as minhas defesas e fazer com que eu me pusesse a expelir opiniões
que, a bem da verdade, ninguém me pediu nem quer saber. Passa do meio-dia, sombras
raquíticas escondem-se debaixo das árvores. Na Sá Carneiro, o trânsito é de um
domingo de Verão anterior ao surto epidémico. Tremo só de pensar que um dia se
dirá no ano vinte antes da pandemia ou o ano cinquenta e seis depois da
pandemia. Hoje o almoço será mais tarde. Tenho tempo para meditar na santidade
de todos aqueles heróis que foram morrer a Alcácer-Quibir, todos tão castos,
mas talvez a castidade ajude pouco em certos assuntos terrenos.
sábado, 4 de julho de 2020
Faltar à verdade
Entrei no café e depois de me sentar tirei a máscara. De
seguida, folheei a imprensa que tinha comprado. Uma columbina trouxe-me café e
o mais que omito para evitar comentários desassisados. Duas mulheres entram,
também elas convidadas de um baile de Carnaval, mas mal se sentam retiram o
disfarce. Fizeram bem, não precisam dele e o estarem a bater à porta dos trinta
apenas sublinha a sorte que a lotaria genética lhes decidiu conceder.
Embrenho-me na leitura das crónicas de uma plumitiva e depois de um plumitivo.
Ambos muito opiniosos, mas será para isso que lhes pagam as avenças. Cumprem o
contrato com palavras perfurantes e ademanes voluntariosos. Se o mundo a eles
tivesse sido entregue viveríamos todos no paraíso, concluo da leitura. De
súbito, percebi o erro que cometo quando evito frequentar espaços públicos. Uma
das minhas vizinhas bafejadas pela hereditariedade diz, numa ira contida, quase
sussurrada, ainda audível, que se ele mentisse ainda era perdoável, agora
faltar à verdade é inadmissível. Não sei quem é o ele, mas fico-lhe grato e a
dever-lhe a revelação mais importante da minha existência. A verdade é um
acontecimento. Uma pessoa pode faltar à verdade como falta ao trabalho, a uma
aula, à missa, a um jogo, ao jantar para que foi convidado, à festa de
aniversário a que não deve faltar. Elas continuam a conversa conspirativa, mas
eu penso sobre o que é mentir, esse mero desacordo entre o que se diz e o que
acontece, e faltar à verdade, uma falta de comparência, não estar no sítio em que
ela marca encontro. Olho a minha vizinha com atenção e achei-a ainda mais bela
e desejável, na roupa leve que a veste e na ira branda que lhe toca o rosto. Ela
levantou uma mão e com os dedos esguios compôs o cabelo, disfarcei o olhar,
fechei o jornal, coloquei a máscara, paguei e saí. Havia gratidão no meu andar
e até ao sol violento que me acolheu saudei como se fora um velho amigo, a quem
se perdoa uma travessura. Tenho de me apressar, a verdade espera-me em casa.
sexta-feira, 3 de julho de 2020
Caminhadas e caminhantes
Tenho de beber água. Foi o primeiro pensamento que me
ocorreu quando me sentei para escrever. Já fiz 6 quilómetros e não bebi
qualquer líquido. Sinto a boca seca e a energia esvai-se, envolvendo-me numa
nuvem sonolenta que, como uma ave de rapina, cai sobre o meu depauperado corpo.
Levantei-me cedo e aprontei-me rapidamente para ir caminhar. Os caminhantes,
uma espécie de penitentes que se flagelam por pecados triviais, diferenciam-se
pelas horas que escolhem para a penitência. Os da manhã querem lavar a alma das
aventuras oníricas que o sono lhes proporcionou. Os do entardecer são
trabalhadores esforçados que, ao mexer as pernas, se aliviam do peso das
responsabilidades. Os da noite são mais secretos e não são evidentes as razões
que os põem a caminho. Evito especular sobre aquilo que os move. Na caminhada
matinal encontrei a Lu. Sempre foi assim que foi conhecida a Lúcia, a irmã mais
velha da Marília do Dirceu. Olá, disse-me ela. Olá, respondi. Temos que lutar
contra o tempo, acrescentou e eu digo que sim, embora sem saber como se luta
contra tempo. Isto foi no instante de nos cruzarmos, depois ainda oiço uma voz
feminina a dizer bom-dia doutora e a voz da Lu a responder bom-dia, mas não
olho para trás e se a conversa continuou não dei por isso. A Lu, quando a
família foi para Brasil, decidiu ficar por cá, estava a acabar os estudos, como
se dizia, e participava com esmero na nova ordem, da qual o resto da família
fugia. Quando li a primeira vez a Antígona, foi sobre ela que construí a imagem
da desventurada heroína grega, só que o Creonte tinha sido deposto e ela não
tinha irmãos para pelejarem por bandos inimigos. A realidade nem sempre acompanha
a perfeição da arte, o que mostra o erro de certo filósofo que derramava
certezas sobre este ser o melhor dos mundos possíveis. Acima escrevi pecados
triviais. Como pude fazer uma coisa dessas? Não há pecados triviais. Podem ser
veniais, aqueles que merecem perdão, mas todos os pecados são extraordinários,
rompem com a ordem, embora uns desordenem mais que outros. Os mais amigos do
caos são pecados capitais aos quais se aplica pena também ela capital, embora a
relação entre uma coisa e outra não seja linear. Continuo com sede e a teologia
não é o meu forte, apesar de a minha rua – uma estranha rua em semicírculo com
nome de jornal local – ser habitada por não poucos anjos, mas também a eles não
lhes interessa a teologia e, por isso, se falam comigo não é sobre esse tipo de
assuntos, embora não deixem de ter uma certa curiosidade por palavras como
lascívia, luxúria, concupiscência, voluptuosidade. Eu tento desviar o assunto,
falo-lhes em pecados capitais como a ira, a avareza, a preguiça, mas elas dizem
que não querem saber disso para nada. Que lhes descreva uma mulher voluptuosa,
uma cena lasciva. Um dia, se a voltar a encontrar, hei-de perguntar à Lu como
se luta contra o tempo. Enquanto isso vou pensar como posso satisfazer o pedido
dos anjos meus vizinhos.
quinta-feira, 2 de julho de 2020
Desaguisados e protozoários
Não sei o que me deu hoje de manhã para pisar a balança. Irritou-se
e devolveu-me o peso em tom de ameaça. Saí de cima dela e ouvi-a rosnar. Se
tornas a pisar-me em dia útil, faço pior. Vai fazer alguma coisa pela vida.
Tentei serená-la com desculpas e promessas de que nada farei para estragar a
bela amizade que nos dias de confinamento – e restaurantes fechados – tinha
nascido entre nós. Não é a melhor coisa do mundo começar o dia com um
desaguisado. Quando me sentei à secretária, entreguei-me a escrever umas
patetices, mas agora estou livre delas e sinto-me aliviado do fígado. Oiço o
som insistente de uma sirene, mas não faço ideia se é fogo, desastre ou crime.
Talvez seja apenas alguém doente que urge levar para o hospital. Talvez seja
outra coisa qualquer, pois desconheço todas as razões que permitem ligar uma
sirene e encher a atmosfera com a angústia implorativa daqueles gritos mecânicos.
No outro dia fiquei a observar um carreiro de formigas, não das pequenas, mas
das outras que se encontram nos campos, mais encorpadas e apessoadas. Marchavam
com disciplina, como se tivessem uma alma militar. Nunca sabemos, na verdade,
que tipo de alma têm seres como os insectos, os pássaros e os protozoários. Não
tenho a certeza, mas julgo que a palavra protozoário foi a única coisa que
retive das lições de ciências naturais. Mesmo a palavra célula tenho dúvidas se
foi lá que a aprendi. Tenho de ir beber café e comer qualquer coisa, de
preferência sem calorias, sem sabor, sem odor, sem prazer.
quarta-feira, 1 de julho de 2020
Bocejo
Bocejo, não porque a realidade seja um tédio, mas porque
tenho sono. Às seis da manhã acordei com sede, o que me tirou da cama. Bebida
água, fiquei a ler, mas já não me lembro o quê. Quando voltei a adormecer fui
acordado pelo despertador. A manhã estava esplêndida, no céu não se prometia
uma invasão de calor e um vento suave refrescava a paisagem, fazendo tremer as
folhas que, mal ele se recolhia, ficavam em sossego, à espera da reverberação
matinal. Ainda não saí de casa, mas também ninguém espera por mim. O telemóvel
está sempre a dar-me informação. Chega ao cúmulo de partilhar comigo quais são
as aplicações que lhe estão a gastar bateria. Se eu quero que ele as feche,
pergunta-me. Ora, ora, se eu fosse fechar as aplicações que me gastam a bateria,
o que seria de mim? Tornei a bocejar, no exacto momento em que se ouviu uma
buzina agastada. O que quererá dizer esta coincidência? Abro a boca na mesma
hora que alguém carrega na buzina. Um acaso, diz-me o anjo benfazejo, não quer
dizer nada. Falso, grita irritado o amigo do capeta. Não há acasos, tudo está
milimetricamente determinado. Encolho os ombros e deixo os anjos a
digladiarem-se sobre questões metafísicas. Estão no território deles e o mais
avisado é não me meter. Vou dormir a sesta.
terça-feira, 30 de junho de 2020
Nada de sedições
Ir às compras é um filme, como agora oiço dizer, talvez
porque se suspeita no acto todo um enredo do qual se espera um desenlace feliz.
Noutros tempos talvez se dissesse é um romance, mas as pessoas só lêem livros
de auto-ajuda, como se quisessem descobrir em si o poder de uma graça que as
salvasse. Os compradores deambulam pela superfície comercial mascarados, mantêm
distâncias, tentam descobrir quem se esconde por detrás de uma máscara, se é
alguém conhecido, um Pierrot ou uma Columbina, se àqueles olhos
corresponderá um rosto adequado, se saberá usá-la, aumentando em muito as
possibilidades especulativas de quem por ali é obrigado a andar. A chegada a
casa também é um filme, mas tão cansativo que ninguém o quererá ver. Hoje
passarei a tarde em videoconferências. A necessidade é uma deusa cruel, à qual
nunca podemos furtar-nos a pagar o tributo. Recebi um email do padre Lodo,
aquele jesuíta de que falei ontem. Padre Lodo é assim que ele é conhecido na
Companhia e entre amigos, mesmo os que são pouco dados ao catolicismo, amigos esses
que ele cultiva com esmero, não sei se com a esperança de os converter. Sempre
é um jesuíta. Quer jantar comigo em Lisboa, para que eu conheça um antigo aluno
dele, um alemão de nome Hans Castorp. Não o esperava tão cedo em Portugal,
ainda ontem não sabia que ele vinha, escreve como se se desculpasse. Que não me
preocupe, ele fala muito bem espanhol e entre português e espanhol haveremos de
nos entender. Eu não me preocupo, mas não me apetece ir a Lisboa, não me
apetece todos estes rituais concebidos por um génio maligno. Pensarei no
assunto. Não vejo as netas há semanas e talvez deva aproveitar a ocasião. Logo
hei-de responder. Os termómetros começam a subir por estes lados. O calor
penetra na pele e sinto-a rasgar, abrir pequenas fendas que se vão dilatando,
para que o corpo se torne uma chaga viva. Se as pessoas não fogem daqui, não
tarda haverá procissões de ulcerados. Recuso-me a fazer de calendário, quero lá
saber que dia da semana ou do mês é hoje. O tempo é um contínuo sem fim e todas
as divisões que lhe inventamos são uma sedição contra a ordem natural do mundo,
a qual, pelo menos hoje, prezo muito. Amanhã, se verá.
segunda-feira, 29 de junho de 2020
Evitar a mentira
Ontem menti quando disse que me sentara à varanda e via
pássaros e anjos a voarem entre telhados. Não que seja infundada a ideia de
haver serafins e querubins pousados no topo dos edifícios da rua onde habito.
Qualquer um dos meus vizinhos, e não são poucos, corroborará o que digo. Anjos,
há-os e não poucas vezes vejo-os a conferenciar ou a deslocarem-se pelos ares
de um edifício para outro. A minha falta à verdade refere-se a estar sentado à
varanda, pois nem sequer estive em casa. Deambulava junto ao mar e foi aí,
quando passeava pela ilha do Baleal, como tantas vezes tenho feito, que
encontrei perto da casa dos jesuítas, um edifício sobre a falésia, excessivo
para o lugar, mas de onde se pode contemplar em sossego o Atlântico, que
encontrei, dizia, alguém que não via há muito, o velho Lodovico Settembrini,
que tantas vezes veio a minha casa. Como o conheci, graças a um padre jesuíta
que foi meu professor na Faculdade de Letras, e de como ele, na juventude um
inflamado iluminista e maçon, se converteu e entrou para a Companhia de Jesus,
talvez fale noutro dia. O mundo está cheio de metamorfoses e aquelas que se
passam no espírito dos homens não são as mais pequenas. Basta enumerar as
transfigurações do meu pensamento, se é que se pode chamar pensamento ao
arrebanhar de meia dúzia de ideias obscuras e mal cosidas, sem lastro
conceptual e esqueleto lógico. Há porém quem prefira dizer que não se trata de
mudanças no pensar, mas a prova de que possuo um carácter volúvel e a
volubilidade não dá boa fama a ninguém. Hoje não falarei do meu amigo jesuíta.
Tenho não poucas coisas práticas para resolver e foi-me dado, apesar da
volubilidade, uma inclinação para levar o dever a sério, como se tivesse sido
educado por pais pietistas, daqueles de extremo rigor como só os havia em
Conisberga, o que não foi o caso. Uma mensagem no telemóvel recorda-me que
esperam um texto que ainda hei-de inventar. Escrever um diário cansa, mais
valia que me dedicasse a apanhar borboletas. Hoje é segunda-feira, dia 29 de
Junho. A Terra continua a ser um planeta do sistema solar. Não faço ideia das
consequências desse facto, mas sinto-me mais tranquilo e conformado com a
realidade tal como é, fazendo a mim próprio a promessa de evitar mentir nestes
textos, mesmo que eles não passem de ficções de um narrador sem nada para
narrar.
domingo, 28 de junho de 2020
Nem uma epopeia para narrar
Cheguei a meio da tarde sem nada para narrar. Sou um
narrador digno de compaixão. Se tivesse competência, mesmo a um domingo
encontraria uma gesta para descrever, uma situação épica para partilhar, uma
tragédia para contar. Bem me esforcei. Saí de casa, caminhei, fui a um café,
depois fui trocar um candeeiro que tinha comprado, mas que não funcionava. Este
episódio não seria destituído de mérito, pois acabei por não o trocar, já que
funcionava na perfeição, só que, motivado por não ter os óculos ou pela
estupidez natural que me saiu em sorte, não li a inscrição ON/OFF. O vendedor e
eu rimo-nos, ele com vontade de me chamar idiota, eu com vontade de corroborar
o pensamento dele, mas o comércio é uma coisa civilizada. Ele não perderá nada
em evitar dizer o que pensa e eu lá hei-de voltar para comprar outro candeeiro,
só para mostrar que, apesar de idiota, sou um aprendiz esforçado e que à
segunda tentativa consigo pô-lo a acender e a apagar, mesmo sem óculos, mesmo que
lá esteja escrito ON/OFF. Isto, porém, não dá uma epopeia, nem uma tragédia e
para comédia o enredo é curto. Também é verdade que cheguei muito tarde ao
mundo. Tudo o que era digno de ser narrado já o foi. Resta sentar-me na
varanda, acender um cigarro, apesar de não fumar, deixar o fumo enovelar-se e
subir aos céus como se fosse incenso, enquanto pássaros e anjos voam de um
telhado para o outro. Na praceta passa alguém que conheço bem, mas fico grato
por estar onde estou e de não ser visto. Hoje é domingo, dia 28 de Junho.
Celebram-se 182 anos que Vitória foi coroada rainha de Inglaterra, ela que se
chamava Alexandrina Vitória. Há 106 o arquiduque Francisco Fernando, príncipe herdeiro
do império Austo-Húngaro, foi assassinado, o que contribuiu para o início de
uma ampla carnificina a que, posteriormente, se deu o nome de primeira guerra
mundial. Ainda no dia de hoje se celebram os 101 anos da assinatura do Tratado
de Versalhes, que pôs fim à carnificina e lançou os alicerces de onde emergiu a
segunda. Não me tornei um divulgador de efemérides, mas estas informações
servem para mostrar que se não escrevo uma epopeia, o problema não estará no
assunto, mas no talento do autor, que se recusa a pôr-me a escrever sobre tão
elevados temas.
sábado, 27 de junho de 2020
Complemento oblíquo
Acordei cedo e acabei por ir caminhar pelas ruas. Fiz seis
quilómetros para ir de casa e chegar a casa. Sou dado a coisas inúteis como
deslocar-me para chegar ao mesmo sítio. Fora eu bafejado pela lotaria genética
e evitaria humilhações destas. Quem se desloca quer ir de um sítio para o
outro. Como nunca soube a onde queria chegar acabo sempre, por mais que me
esforce a andar, por ir dar ao sítio preciso em que me encontrava. Nisto
sinto-me próximo dos pilotos e fórmula 1. Andam ali às voltas no circuito, a
velocidades estonteantes, a vida em risco, para chegarem à meta de onde
partiram. Eu sou como eles, mas não uso carro e ando devagar, pois se é para
chegar ao mesmo sítio, ao menos que demore mais tempo possível. O jornal que
costumo ler substituiu o ranking do
coronavírus pelo ranking das escolas.
Em ambos se faz notar o desejo de uma vacina que trate as viroses que por aí
proliferam. Estou ensonado. Por desfastio abro uma gramática de língua
portuguesa e deparo com a belíssima denominação complemento oblíquo. De todos os complementos, o que mais amo é
este. O que são, ao pé do oblíquo, os complementos directos, indirectos e
agente da passiva? Nada. Só o oblíquo me faz pensar na chuva oblíqua e leva a
minha mente, como se entrasse em transe místico, a recitar arrebatada Atravessa esta paisagem o meu sonho dum
porto infinito / E a cor das flores é transparente de as velas de grandes
navios / Que largam do cais arrastando nas águas por sombra / Os vultos ao sol
daquelas árvores antigas... E aqui está o problema que é o meu. Se em vez
de andar a pé viajasse num navio, num veleiro, num grande transatlântico,
haveria de sair de um porto e ir dar a outro e tudo faria sentido, mas a água
não é o meu elemento e assim sou coagido a viajar por terra para chegar ao
lugar onde estava. Dias como os de hoje parecem-me funestos para a sanidade
mental. A semana foi terrível e, na verdade, fartei-me de trabalhar para fazer
aquilo que tinha feito. O que me salva os dias é o complemento oblíquo, mas
perde-me o olhar oblíquo que me deitam por não ter vergonha de escrever inanidades
e publicá-las. São o retrato da minha vida, a minha verdade, o que mais posso
fazer? Hoje é sábado, dia 27 de Junho. Os dias estão a encolher e ninguém
protesta. Oiço um galo a anunciar a aproximação da derradeira etapa do dia. É
inverosímil, mas mesmo numa cidade se podem ouvir galos. A gramática mostra-me
uma frase monstruosa e começo a temer se não encontrarei nela um exemplo
extraído destes textos. Tenho de ir comprar um candeeiro para ligar à ficha USB
do computador e uma extensão para me ligar à realidade.
sexta-feira, 26 de junho de 2020
O que se avista de uma varanda
Fui à varanda que dá para a Sá Carneiro. De passagem
espreitei o friso das orquídeas. Ao contrário do que acontece comigo, estão
luxuriantes. Deveria ser proibido usar palavras como esta. Recuperaram dos três
dias a que foram votadas ao abandono. São muito sensíveis. Um fim-de-semana
fora e há logo amuos, chiliques, fanicos e outras cenas avulsas. Chegado à
varanda olhei o castelo. O maldito pinheiro continua a crescer, a alcaidaria é
agora uma nesga branca e uma das duas torres que avisto está quase a
desaparecer por detrás da ramagem verde. Do bar saiu alguém. Parece o Esteves,
aquele que não tem metafísica. Vejo-o a abrir um maço de cigarros e penso que
faz sentido. Outrora, havia tabacarias, agora compram-se cigarros num bar, num
café, onde calha. O Esteves deixa a esplanada do bar, o cigarro aceso, o fumo a
subir aos céus, e aproxima-se do meu prédio. Afinal não é o Esteves, mas o
Lopes, um rapaz do meu tempo. Também sem metafísica, mas ainda vai bem, todo pimpão.
Passou mesmo diante da varanda. Talvez nem seja o Lopes. Pode ser que já tenha
morrido. É muito parecido com ele, talvez um irmão. Era uma família grande.
Encontrou uma rapariga também do nosso tempo, a Marília, debaixo duma sombra,
mesmo diante daquilo que foi um banco. Era a ela que o Gonzaga queria, mas
ficou sempre presa ao Dirceu. Não devia falar destas coisas conhecidas de todos
aqui na terra. Eles hesitam, não sabem bem o que fazer, mas lá se decidiram a
trocar uns beijos. Quase o oiço dizer isto a nós não nos ataca, somos da velha
guarda. A Marília foi para o Brasil, umas coisas políticas do pai e, ela que
antes hesitava entre um estilo neoclássico e um romântico, voltou de lá cheia
de samba. O Gonzaga, coitado, é que nunca casou. O pior aconteceu ao Dirceu,
foi desta para melhor há uns anos. Agora é o Lopes, ou será o Correia?, que
está com ademanes sambados e a Marília viúva, esquecida do Gonzaga e do Dirceu,
os carros a passar e o céu cheio de nuvens, uma luz toldada, e eu sem saber se
ainda há um frémito no coração da brasileira, que afinal é bem portuguesa, aqui
da terra, andámos todos na escola. Quem diria, o pimpão do Lopes, ou será o Correia?
É difícil ver os traços de um rosto quando se está num quinto andar. Hoje é
sexta-feira, dia 26 de Junho. Tenho de ir dar uma vista de olhos aos jornais,
para ver se o mundo ainda existe, se uma epidemia não anda por aí à solta que
impeça o Lopes, ou será o Correia?, de cortejar o samba da Marília. Preferia-a
quando ela era uma musa arcádica, mas há gostos para tudo.
quinta-feira, 25 de junho de 2020
O zimbório zumbe
Depois de almoço, quase frugal e quase abstémio, fui
assaltado por uma palavra. Entrou-me na consciência e não me tem largado. A
quem devo apresentar queixa por esta violação da liberdade de pensamento? Não
faço ideia por que razão zimbório canta dentro de mim. Não avisto nenhum e não
me deu um súbito interesse pela arquitectura, por cúpulas e dispositivos afins.
Há na palavra uma sonoridade exuberante e talvez seja isso que me tem prendido
a ela. Não deveria escrever tudo o que me passa pela cabeça, não contribui nem
para a minha sanidade mental nem para a reputação, ambas já muito desgastadas.
Observo ao longe uma rapariga absorta, não há como o eufemismo para suavizar a
marcha do tempo. Conheci-a numa outra encarnação ou talvez apenas imagino que a
tenha conhecido. Abre os olhos, mas a realidade escapa-lhe, como a beleza se
lhe escapou, como os sonhos se finaram na blusa de seda em que nenhum olhar,
excepto o meu, pousa. Um cão pára junto a uma árvore e, alçando a perna, marca
o território, num assomo de proprietário. O zimbório, porém, não deixa de
zumbir em mim. Descubro que uma nova tradução de A Montanha Mágica foi colocada no mercado. Li o romance de Mann na
tradução de Herberto Caro, para os Livros do Brasil. Depois, comprei a da D.
Quixote e ofereci a que lera. Perante o encómio da nova tradução, já decidi que
a vou comprar, depois alinho-as lado a lado na estante. Quando me der a vontade
de reler a obra, pego nelas e vou pesá-las. Lerei a mais leve. O critério é
mau? Eventualmente, mas mais vale ter um critério mau do que nenhum. Ou será ao
contrário? Hoje é quinta-feira, dia 25 de Junho. As palavras associam-se dentro
de mim. O zimbório zumbe na cúpula ou na cópula, ou apenas na consciência vazia
que para evitar o naufrágio se entrega às leviandades que a assaltam. O dever
chama-me.
quarta-feira, 24 de junho de 2020
O pior é a Kryptonite
Chega-se a uma janela ou a uma varanda, aspira-se o ar, em
lentos haustos, e percebe-se uma contaminação geral da atmosfera. Perplexidade,
ignorância sobre o que fazer, apreensão pelo que está para chegar. Nada disto é
novo, era apenas um problema individual ou de grupos restritos. Uma doença
aqui, um acidente acolá, uma morte noutro lado. Também havia catástrofes de médias
ou grandes dimensões, mas eram catalogadas na etiqueta – acho que deveria dizer
hashtag, o que acrescentaria
modernidade a este escrito – de acidentes, dos quais se haveria de procurar
responsáveis para nos tranquilizar e assegurar que estamos não apenas no melhor
dos mundos possíveis, mas também no dos impossíveis. Vale-nos o canto dos
pássaros e o ramalhar do arvoredo empurrado por um zéfiro benevolente. Na
avenida, passam carros. Nalguns, o solitário condutor vai de máscara, talvez
com medo de se contaminar a si próprio. Pode ser apenas uma reminiscência
genética de algum avô que, emigrado para o longínquo Far-West, se tenha entregado ao comando de uma bando de ladrões de
gado, ou então de uma longínqua avó educada no rigor do Islão. Nunca sabemos o
que se esconde no enxame genético que fez de nós colmeia para viver uns tempos.
Desde que se descobriu a existência do código genético, convencemo-nos que possuímos
um, mas a realidade é outra. O código genético é que nos possui e nos dobra às suas
deambulações combinatórias e fantasias químicas. Espero que não venha ninguém
acusar-me de não crer no livre-arbítrio. Eu acredito piamente e todos os dias lhe
acendo uma vela, para ver se ele olha por mim, tornando-me um sujeito autónomo,
cheio de iniciativa e pronto a dobrar à sua vontade qualquer obstáculo. O pior
é a Kryptonite. Hoje é quarta-feira, dia 24 de Junho. Na Sá Carneiro, um casal
caminha desgarrado, ele à frente e ela atrás, segundo uma ordem ancestral
combinada com o cansaço de um prolongado convívio. Saltitam de sombra em
sombra, ela afogueada, ele decidido, como se tivesse pressa de chegar a algum
lado ou de fugir dela.
terça-feira, 23 de junho de 2020
Um narrador sem assunto
A barafunda veio para ficar, foi o que ouvi quando, hoje de
manhã, caminhei pelas ruas. Não foi um grande passeio, mas um pequeno giro de
desentorpecimento mental. Chegado a casa fui informado de que a orquídea branca
está completamente desaustinada. Uma qualquer euforia tomou-lhe a vida e ela continua
a desfazer-se em flores. Está nisto há bem mais de um ano e não tem aspecto de
querer parar. As folhas, todavia, estão a trocar o verde pelo amarelo. A vida
corre-me num torvelinho, os neurónios estão em turbilhão e o tempo está cada
vez mais quente. Dedilho as tarefas que tenho pela frente e não me parece que
os próximos dias sejam promissores. A tarde avança com os seus pelotões
sombrios. Marcham em cadência militar, batem as botas cardadas no chão, olham
impantes sem nada ver. Nas janelas, os mortais observam-nos com temor, não vão
eles apontar-lhes o lança-chamas e deitar fogo à casa, à vida, a sabe-se lá o
quê. O que achas disto tudo, perguntaram-me no outro dia. Encolhi os ombros e
disse que não achava nada. Já são poucas as coisas sobre as quais tenho opinião
e a minha esperança é a de deixar de ter opinião seja sobre o que for. Na
passadeira, afogueada e vestida de Verão, uma mulher jovem deixa que os olhos
repousem sobre ela, fingindo que não sabe, mas a passadeira é curta e no
passeio a luz e as sombras mesclam-se num tecido que turva os olhares. Hoje é
terça-feira, dia 23 de Junho. Há 192 anos Miguel de Bragança foi
aclamado rei de Portugal. Eis uma informação que não serve para nada, a não ser
para dar um matiz histórico ao fim desta narrativa de um narrador sem assunto
nem personagens.
segunda-feira, 22 de junho de 2020
A loucura normal
É o senhor? Sim, sou eu. Está em casa? Estou, estou. É que
eu tenho uma encomenda para lhe entregar. O andar é… Não posso subir por causa
desta coisa, tem o senhor de descer… Está bem, se é por causa dessa coisa, eu
desço. Espere, vou ver se cabe na caixa do correio. É uma ideia. Olhe, cabe
mesmo. Óptimo, muito obrigado. Está então a encomenda lá em baixo, ainda por
cima vinda da China para me deixar ler noite dentro, e eu aqui em cima. Bem
tenho de me despir e vestir para ir à rua. Não posso esquecer de levar máscara
para viajar no elevador. Abro a porta, chamo com a ponta da chave o elevador.
Ele vem e eu digo ao diabo, abro-o com as mãos e desço. Também escancaro a
porta da entrada com as mãos. Vou ao correio, resgato a encomenda e
correspondência avulsa e, sem nunca tirar a máscara, entro no elevador, saio,
reentro em casa já descalço, fecho a porta, desinfecto as mãos e tiro a máscara,
depois de pousar em lugar seguro o que tirei da caixa do correio, dispo-me,
penduro a roupa de ir à rua, visto-me, desinfecto as mãos, abro a encomenda,
deito o plástico envolvente para reciclagem, em lugar seguro. Abro a caixa,
deito-a no sítio para reciclagem e penso que o dispositivo, que já deve andar
em viagem há umas três semanas, ainda por cima protegido por plástico
hermeticamente fechado, não precisa de ser desinfectado, mas desinfecto-o, não
vá o diabo tecê-las e ele é muito dado a tecelagens. Ainda por cima uma coisa
vinda da China, sabe-se lá por onde andou. Depois, desinfecto-me a mim. A
seguir deveria marcar consulta num psi qualquer. Não o faço, mas lembro-me do
título de um filme de Marco Ferreri, baseada num livro de Charles Bukowsi, Contos da Loucura Normal, a Ornella Muti
ia muito bem no filme, mas já não me lembro de nada. Isto é um filme, anoto,
feito de contos de gente enlouquecida, e a loucura está a tornar-se normal, embora
a Ornella Muti já não tenha 25 anos, nem eu. Sim, estamos todos a enlouquecer,
tanto os que se cuidam, como os que se descuidam e os que acham que umas festas
dionisíacas vêm mesmo a calhar, pois Apolo anda distraído, também de máscara e venda
nos olhos. Hoje é segunda-feira, dia 22 de Junho. A temperatura está a subir e
a vida tornou-se uma trapalhada sem fim. Se não tivesse a tarde ocupada iria
rever o filme do Ferreri. Sendo assim, enlouqueço mesmo sem filme.
domingo, 21 de junho de 2020
Começa o conflito
Hoje é o primeiro dia de Verão e a temperatura já ousa
passar os 30 graus, prometendo escalar o conflito nos próximos dias. Tenho de
imaginar estratégias de autodefesa, mas ando demasiado ocupado e não tenho
tempo para frequentar o von Clausewitz e o Sun-Tzu. Comecei a trabalhar ainda
antes das nove da manhã e tenho uma tarde e noite dedicadas ao culto das
necessidades. Ontem fiz uma caminhada à noite. A cidade e o movimento eram
iguais aos de outros tempos. Uma pessoa caminha furtiva entre sombras, deixa-se
guiar pelo hábito e vai olhando para o que acontece. Uma vez por outra, lá
passa um viandante ou então alguém que ainda não tem vergonha de correr em
público. Um grupo de jovens em quase pós-adolescência faz umas acrobacias de
bicicleta, fendendo a noite com o seu gargalhar cheio de incertezas. Depois, as
trevas tomaram conta do mundo. Hoje ainda não espreitei a avenida, desconfio
que as pessoas se preparam para os almoços em família, caso a tenham. De resto,
o vento eriça as folhas das árvores, fá-las tremer e ondular, enquanto as
sombras se escondem debaixo das copas e a luz dá uma coloração de antimónio ao
verde cinza das oliveiras. A minha mente parece um depósito vazio, mas não vale
a pena enchê-la, de tão esburacada que está. Hoje é domingo, dia 21 de Junho.
Leio nos jornais que a polícia tem agora uma nova função, a de dispersar as
pessoas que se juntam às centenas talvez com a esperança de se infectarem e de
lançar o país no caos. Não há nada como medo, pensei. Estás pouco iluminista
hoje, disse-me o daimon que vive em mim. Pois estou, talvez nunca tivesse
acreditado muito no progresso da razão e da moralidade humana. Calo-me, antes
que me torne um reaccionário adepto do absolutismo e o texto comece a tornar-se
desmesurado.
sábado, 20 de junho de 2020
Divagações por territórios inóspitos
Avanço com pouca diligência por um lugarejo perdido no
Tennessee. Nesses anos, os que ligaram uma guerra mundial a outra, a lei seca
criou uma coorte de bootleggers,
perseguida com afinco pelas autoridades, o que prova que é a lei que faz o
criminoso. Falo do primeiro romance de Cormac McCarthy, O Guarda do Pomar. Aquele é um universo estranho para um europeu e
essa não será a menor das virtudes da literatura, colocar-nos em mundos excêntricos,
fazer a imaginação raptar-nos da nossa instalação sedentária e obrigar-nos a
territórios inóspitos e vidas extravagantes. Também um leitor americano poderia
pensar o mesmo se confrontado com uma narrativa passada nas terras em que os
homens teimam, não se sabe bem porquê, a pegar touros bravos de caras, touro e
homem a olharem-se nos olhos, a espreitarem-se, a estudar como se hão-de
encaixar e acabar com aquela incerteza, para que haja aplausos e a banda
filarmónica se desfaça em música. Eu sei que o universo das touradas é um
território minado, pronto a explodir numa paróquia desejosa de pegar fogo por
tudo e por nada. Não sou dado a verónicas e a chicuelinas, nem uso palavras como faena ou tenho especial predilecção
pelo paso-doble, mas grandeza, mesmo
se inútil, haverá no homem que enfrenta sem nada nas mãos um animal daqueles, ainda
que cansado e sangrado, grandeza, mesmo que tinta de loucura, haverá no matador
que joga a sua vida contra a de um miura. De resto, a tauromaquia não me
interessa para nada, mas isso não a distingue de milhares de outras coisas que
também não me interessam. Há pouco, ao espreitar, a Sá Carneiro, o movimento
dos carros parecia a de um sábado pré-pandémico. As pessoas na rua conversam, enquanto
o Sol sobe no céu e as sombras vão minguando na Terra. Uma mosca pousou na
parte exterior do vidro da janela, mas logo partiu. O fim-de-semana desdobra-se
diante de mim, tem ainda as mãos limpas, sem sombras nos dedos ou sangue nas
unhas. A inocência todavia é coisa que se perde com facilidade e, com o passar
das horas, a exaltante candura inicial dará lugar à cínica condescendência de
quem vive com o que tem de ser, antes de chegar a melancolia elegíaca com que
os ombros se encolhem perante o que está a chegar, descobrindo no fim-de-semana
as mãos pretas de sujidade e as unhas tintas de sangue. Talvez tenha acordado
com a velha disposição para a hipérbole. Hoje é sábado, dia 20 de Junho. O
solstício de Verão está marcado para as 22h e 44m e os dias começarão a
declinar. O Tennessee naqueles dias escolhidos por McCarthy para o seu primeiro
romance era um lugar difícil, mas também, chegados os calores, o abrigo da
Serra de Aire, com o seu sistema de grutas e acontecimentos inusitados, não é
fácil.
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